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Pensamento Judaico

O Mais Humilde dos Homens

Desolado, mas não vencido. Dominado por um sentimento de impotência e frustração, ele permanece, não obstante, inabalável e cheio de confiança. O “mais humilde de todos os homens da face da terra”, mas também a voz mais orgulhosa e autorizada, no tocante à sua herança espiritual:

E Moisés veio e falou… todas as palavras desta Torá. Porque isto não é para vós coisa vã, pois é a vossa vida; e por esta mesma coisa prolongareis os dias na terra que estais passando o Jordão a fim de herdá-la. (Deuteronômio 32:44-47)

Foi precisamente essa terra e o fato de que a veria tão somente “de longe”, a despeito de todos os seus esforços para alcançá-la, que o amargurou e lhe causou tão profunda dor. Ele sabia, no entanto, separar as coisas e colocar o interesse da nação acima de seus problemas pessoais. Não há qualquer sombra de dúvida ou vacilação em sua voz, quando adverte o povo sobre o que deve fazer, a fim de “prolongar seus dias” na terra que, para ele, estava dolorosamente “fora de alcance”. Ele é tão claro e franco quanto possível:

Aplicai o vosso coração a todas as palavras que hoje testifico entre vós, para que as recomendeis a vossos filhos, para que cuidem de cumprir todas as palavras desta Torá. (ibid. 45)

“E Moisés acabou de falar todas estas palavras a todo o Israel” e despediu-se de seu povo. No mesmo dia, recebe a ordem de subir a montanha, para onde se iria para sempre. Sua morte não seria diferente da de qualquer outro homem que “tivesse acabado de falar”. Quando os filhos de Israel, seu rebanho, avançassem em direção à terra para a qual Moisés os vinha conduzindo, até mesmo o local da tumba do “fiel pastor” cairia no esquecimento.

Moisés não tinha qualquer ilusão a respeito. Não esperava, nem desejava, que lhe erguessem um sepulcro imponente. Sabia que o povo prosseguiria em seu caminho e que sua sepultura logo seria abandonada, o que não parecia aborrecê-lo. Tudo que lhe importava era que sua herança espiritual não fosse esquecida pelos filhos de Israel, para onde quer que fossem. Suas últimas palavras expressavam esse desejo, não em benefício próprio, mas em benefício deles, a fim de que pudessem “prolongar seus dias”.

Colocando o interesse de seu povo acima do seu, Moisés foi recompensado de um modo que ultrapassou, em muito, até mesmo as mais elevadas expectativas. A Torá – embora dada e sancionada pelo próprio Deus – será sempre associada ao nome de Moisés e chamada de Torat Moshe, a Torá de Moisés ou “A Lei de Moisés”.

Séculos mais tarde, a profecia que trouxe ao mundo as mais nobres ideias de moralidade e as mais sublimes visões do futuro, encerrar-se-ia com a solene advertência do profeta Malaquias (3:22):

Lembrai-vos da Torá de Moisés, Meu servo, a quem ordenei, em Horeb, estatutos e preceitos para todo o Israel.

O judaísmo não é uma religião originada ou baseada em uma pessoa ou pessoas. O ano litúrgico, como é representado no calendário judaico, está cheio de feriados que marcam eventos da vida do povo de Israel; contudo, nenhum feriado celebra a vida de qualquer indivíduo, sequer a de Moisés. No século 19, alguns judeus, que estavam prestes a se assimilar inteiramente ao mundo gentio, criaram como parte daquilo que imaginavam ser o preço a pagar pela emancipação política, a aberração chamada de “fé mosaica” e se denominaram “alemães” ou “franceses” de “credo mosaico”. A designação – ou o conceito em si – jamais obteve aceitação.

Sempre houve uma clara distinção entre Moisés-indivíduo e a Torá de Moisés; ambos são reverenciados, mas de forma diferente. A Torá, na verdade, embora inseparavelmente ligada a Moisés, seguiu caminho próprio ao longo do tempo.

No Talmud Babilônico (Tratado Menachot 29b), encontramos uma história fascinante, contada pelo Rabi Judá, em nome de Rav (séculos 2 e 3):

Quando Moisés subiu às alturas, encontrou o Santíssimo – bendito seja Ele! –, absorvido em colocar “taguin” na Torá (pequenos traços em forma de coroa dispostos em cima de determinadas letras no rolo da Torá). Quando Moisés, assombrado, quis saber o significado daqueles taguin, o Eterno respondeu: “Surgirá um homem, ao fim de muitas gerações, chamado Akiva ben Iossef, que irá extrair de cada um destes sinais uma quantidade enorme de leis.” “Senhor do Universo”, disse Moisés, “permiti que eu o veja”, ao que Deus lhe respondeu: “Vire-se!”

No mesmo instante, Moisés encontrou-se na casa do Rabi Akiva (um dos maiores sábios dos séculos 1 e 2). Sentou-se atrás da oitava fileira de discípulos do Rabi Akiva e ouviu o rabino explicar a Torá. Moisés ficou bastante aborrecido quando descobriu que era incapaz de acompanhar ou entender aqueles ensinamentos. Somente quando atingiram um determinado tópico e os discípulos perguntaram ao mestre: “Como sabe disto?” e este respondeu: “É uma lei dada a Moisés no Sinai”, é que Moisés se tranquilizou.

Certamente, Moisés não ficou aliviado pela atribuição desse “crédito”. Esse tipo de tola vaidade não condiz com o “mais humilde de todos os homens”. O fato de seu nome ter sido mencionado não eliminou a razão óbvia de seu aborrecimento, pois continuou sem conseguir acompanhar os profundos estudos da Torá feitos pelo Rabi Akiva e seus discípulos. Moisés tranquilizou-se ao ouvir seu nome, por se convencer de que era a Torá original que estavam estudando, embora não entendesse o que falavam. Não se preocupou por não conseguir acompanhá-los. Percebeu que, com o passar do tempo, muda-se a linguagem do discurso e, devido a isso, seria bem possível que chegaria a época em que ele mesmo não entenderia sua própria Torá.

O que o perturbou, no início, foi o medo de que estivessem estudando outra Torá e não a mesma com nova roupagem. O temor desapareceu ao ouvir Rabi Akiva mencionar a fonte de origem de tudo: “A Lei dada a Moisés no Sinai”.

Moisés, que conduziu seu povo da libertação à liberdade, sai aparentemente de cena, mas permanece para sempre como parte dela. “Moisés desperta novamente a cada geração” – disse o Zôhar, o clássico manifesto do misticismo judaico.

Através das gerações, foram muitas as tentativas de captar a imagem de Moisés, na arte e na literatura. Cada geração descobre novamente o “seu” Moisés. Recentemente, deparei-me com uma interessante análise textual, que falava de Moisés como o protótipo do trabalhador comunitário judeu. Preparado por Chaim Lauer, o culto subchefe executivo da Federação Israelita da Grande Washington, o texto tem o título de “Você empregaria este homem?” e aparece sob a forma de um curriculum vitae de um certo Morris Amramson Rabênu:

Dados pessoais:
Idade – 80 anos
Estado civil – casado
Filhos – 2

Empregos anteriores:
Pastor de ovelhas (negócio familiar)
intervalo (para viagem)
Oficial/cadete (exército egípcio)

Histórico escolar:
aulas particulares especialmente de teologia, história e arquitetura
ouvinte em cursos na Universidade Faraó, em Cartum
Experiência com criação de animais.

Saúde:
Excelente
Problemas esporádicos de fala

Hobbies:
Passeios de barco em rios
Alpinismo
Entalhe em pedra

Publicações:
Nenhuma

Referências:
Batia, Princesa do Egito
Jetró, sacerdote de Midian

Notas da entrevista, comentários e referências:
a) o mais humilde dos homens de todos os tempos
b) tendência à violência
c) um verdadeiro “príncipe”
d) bondoso com animais
e) fica sem comer por longos períodos
f) tão brilhante que reluz
g) casou-se com pessoa de credo diferente, mas talvez esteja separado dela
h) exceto por uma única bem-sucedida, mas limitada, campanha de fundos, não tem experiência efetiva de angariação
i) fala muito em ir para Israel – mas não penso que chegou a fazê-lo.

Você acertou. Morris Amramson Rabênu não conseguiu o emprego na Federação Israelita local.

Nada feito. Não conseguiríamos que ele fosse aprovado pela liderança leiga, mesmo que o quiséssemos…

 

Por Pinchas H. Peli

O Rabino Pinchás H. Peli (1930-1989) ocupou lugar de destaque na vida intelectual e religiosa de Israel. Foi amigo e discípulo do Rabino Joseph B. Soloveitchik e de Abraham Joshua Heschel, bem como chefe do Departamento de Literatura Hebraica da Universidade Ben Gurion, em Beer Shéva. Escritor e palestrante renomado nos meios judaicos e não judaicos, um de seus 11 livros – Torá Hoje – no qual apresenta seus modernos e inspirados comentários sobre as porções semanais da Torá, foi publicado pela Editora Sêfer.

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Comentário

  • Como sempre, os blogs apresentados são da melhor qualidade e nos ajudam, “judeus laicos” como diria Amós Oz, a compreender e amar a religião que recebemos de nossos pais.
    Parabéns.

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