A leitura do Pirkê Avót (Ética dos Pais) a cada Shabat dos meses de verão é um costume que data dos tempos dos nossos primeiros sábios.
Na maioria das comunidades ashkenazitas, a leitura é iniciada no Shabat posterior a Pêssach e concluída no Shabat anterior a Rosh Hashaná. A cada semana se lê um capítulo, de modo que o Pirkê Avót inteiro é completado uma vez no Shabat anterior a Shavuót, uma segunda vez no Shabat da Porção Balac, e uma terceira vez no Shabat da Porção Reê. Já que entre a Porção Shofetím [quando tem início a quarta leitura do Pirkê Avót] e Rosh Hashaná há apenas três ou quatro Shabatót, se costuma ler dois capítulos em cada um dos Shabatót anteriores a Rosh Hashaná. Um recurso mnemônico para lembrar dos Shabatót nos quais a leitura de Pirkê Avót é reiniciada no verão é a palavra néfesh (alma), cujas letras hebraicas são formadas pelas iniciais das porções semanais da Torá correspondentes: Nassó, Pinchás e Shofetím. As comunidades sefaraditas têm o costume de completar a leitura de Pirkê Avót uma única vez, começando no Shabat posterior a Pêssach e concluindo no Shabat anterior a Shavuót.
Segundo os Rabinos Saadiá Gaón e Sar Shalom Gaón, o costume da leitura do Pirkê Avót após a reza de Minchá no Shabat foi instituído pelos sábios em memória de nosso mestre Moisés, que faleceu na tarde do Shabat. Consta no Talmud que “se um líder morre, todo o estudo é interrompido”; ou seja, não se marca um estudo público de Torá para essa ocasião. Assim, para evitar que as pessoas deixem de estudar a Torá completamente, os sábios determinaram que esses capítulos sejam apenas lidos, e não estudados. Antes de Minchá é permitido estudar Torá em público, mas depois de Minchá cada um deve estudar por conta própria.
* Costuma-se também recitar três versículos extraídos do Livro de Salmos [119:1, 71:19 e 36:7 para os ashkenazitas, e 36:7, 71:19 e 119:1 para os sefaraditas] após a prece de amidá de Minchá no Shabat, como lembrança de nosso luto por Moisés. O Zôhar explica que esses três versículos são ditos em memória de Moisés, José e David, que faleceram na tarde do Shabat depois de Minchá.
* Também é costume, em um espírito de luto pela morte de Moisés, não dirigir aos outros a saudação de shabat shalom após Minchá. Se alguém for assim saudado, deverá responder em voz baixa.
O Rabino Sar Shalom Gaón cita uma passagem do Talmud de Jerusalém como fundamento para esse costume:
O Rabi loshiá ensinou que o versículo (Malaquias 3:22) declara: “Lembrai-vos da Torá de Moisés, meu servo.” Moisés, por ter recebido e transmitido a Torá, merece também uma recordação eterna.
O Rabi Zeira ensinou que o versículo (Deuteronômio 34:8) declara: “Assim se cumpriram os dias de pranto do luto de Moisés” – os dias de pranto se cumpriram mas a recordação não cessou, e em memória dele os estudos devem ser interrompidos nessa hora.
O Ramá, baseado no Zôhar e no Tur, escreve:
Não se costuma marcar estudos [públicos nas tardes do Shabat] entre Minchá e Arvit. Ao invés de estudar, recitamos o Pirkê Avót no verão e [os 15 salmos que começam com] Shir Hamaalót no inverno – cada comunidade segundo o seu costume.
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Os nossos sábios ofereceram várias outras razões para a leitura de Pirkê Avót nos meses de verão:
Segundo o Machzór Vitri, já que as pessoas se congregam nas sinagogas para escutar a leitura da Torá [na reza de Minchá], convém aproveitar a oportunidade para ensinar-lhes nessa hora os valores éticos contidos nesse tratado.
Conforme mencionado, algumas comunidades costumam fazer a leitura de Pirkê Avót apenas durante o período de seis semanas entre Pêssach e Shavuót. O Abudraham explica que como fazemos nesses dias a contagem de Sefirát Haômer até a outorga da Torá, é justo que nos preparemos, pois o Rabênu Ioná escreveu o seguinte:
A Torá só pode repousar sobre um indivíduo desprovido de maus traços de caráter e repleto de boas virtudes.
O Ohêv Yisrael escreve que assim como aqueles que saíram do Egito se purificaram durante o período compreendido entre Pêssach e Shavuót como preparativo para o recebimento da Torá, é adequado que também nos purifiquemos através do estudo desse tratado, que tem como teor o ensinamento de normas de conduta ética, para que refinemos o nosso caráter e reconheçamos a grandeza da Torá e de quem a estuda.
O Midrash Shemuel explica que nos meses de verão o homem fica mais suscetível à doença do que nos de inverno. O povo de Israel, ao fortalecer o seu lado espiritual através do estudo de Pirkê Avót na época em que fica mais sensível, também fortalece o seu lado físico e se protege de todos os tipos de males.
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O Tratado de Avót continha originalmente cinco capítulos. Posteriormente foi acrescentado um sexto capítulo – constituído de uma beraita conhecida como Kinián Hatorá (Aquisição da Torá). Esse sexto e último capítulo é de fato muito adequado ao Shabat anterior à festa de Shavuót.
O Ticun Issachar assinala que, quando o primeiro dia de Pêssach cai no Shabat, há sete Shabatót entre Pêssach e Shavuót na Terra de Israel. Então, nesse sétimo Shabat [que cai logo antes de Shavuót], deve-se fazer a leitura do primeiro capítulo do Tratado de Derech Érets ao invés de reiniciar o Pirkê Avót, uma vez que o seu conteúdo é muito similar; além disso, os sábios escreveram: Derech érets cadmá latorá – “o comportamento digno precede a Torá.” Para alguns estudiosos, quando o oitavo dia de Pêssach cai no Shabat fora da Terra de Israel, deve-se então ler o primeiro capítulo de Pirkê Avót, e o primeiro capítulo de Derech Érets deve ser lido no Shabat anterior a Shavuót.
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Alguns sábios acham que Moisés não morreu na hora de Minchá do Shabat, e sim no anoitecer da véspera do Shabat, pois logo antes de sua morte ele escreveu um Sefer Torá para cada uma das tribos, e isso não pode ter ocorrido no Shabat. As duas opiniões relacionadas com o momento exato da morte de Moisés podem ser conciliadas da seguinte maneira: Moisés morreu, de fato, na véspera do Shabat ao anoitecer. No entanto, devido à santidade do Shabat, os judeus não assumiram o luto, tirando esse trágico acontecimento do pensamento. Quando o Sol começou a se pôr no final do Shabat, eles voltaram a recordar a desgraça que tinham sofrido. Para eles, foi como se Moisés tivesse acabado de morrer naquela hora. E assim, desde então, a sua morte é lembrada como se tivesse ocorrido perto do fim do Shabat.
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O Tratado de Avót faz parte das Mishnaiót da ordem de Nezikín (Danos), e está situado entre os Tratados de Avodá Zará e de Horaiót. Por que ele foi fixado nessa ordem, que trata de temas relacionados a legislação e justiça? O Rambam (Maimônides), na sua introdução ao Tratado Zeraím (Sementes), escreve: “Quem mais precisa desses conceitos [os ensinamentos éticos de Avót] são os juízes. Um ignorante que se comporta de maneira imoral, não prejudica a ninguém além de si mesmo; mas um juiz imoral e corrupto prejudica tanto a si mesmo quanto a toda a sociedade.”
O tratado é chamado de Avót – literalmente: “Os Pais” – por ser uma coletânea de conceitos éticos e morais ensinados pelos nossos antepassados, os sábios de Israel. Esses ensinamentos, assim como toda a Torá, foram transmitidos de geração em geração, numa cadeia ininterrupta desde Moisés. As lições de ética do Pirkê Avót podem ser consideradas como “os pais” – os protótipos – de toda a ética e moralidade que os nossos sábios ensinaram.
Ao estudar o Pirkê Avót, a pessoa poderá sentir, por um lado, que jamais conseguirá alcançar padrões de comportamento ético tão elevados. Por outro lado, ela poderá achar que alguns dos ensinamentos são tão óbvios e básicos que quem não os cumpre é verdadeiramente malvado. Sendo assim, cabe questionar: que sentido tem então o estudo desse tratado?
Para solucionar essa dúvida, os sábios estabeleceram que antes de começar a leitura de Pirkê Avót deve-se ler primeiro a Mishná introdutória do último capítulo do Tratado de San’hedrín (90a), que declara: “Todo Israel tem um quinhão no Mundo Vindouro.” E ao concluir a leitura, deve-se ler uma Mishná do Tratado de Macót (23b), que declara: “o Santíssimo quis recompensar Israel; por isso, outorgou-lhe em abundância a Torá e as mitsvót.”
Nenhum judeu deve pensar que o comportamento exigido dele pela Torá está além da sua capacidade e destina-se apenas aos justos e piedosos – aos que vivem no “Mundo Vindouro” aqui mesmo neste mundo físico. Pelo contrário: todo judeu tem uma porção no Mundo Vindouro – uma parte de seu interior, que o mantém conectado continuamente ao mundo espiritual.
Da mesma forma, nenhum judeu deve considerar desnecessários os conselhos e ensinamentos dos sábios. Embora um indivíduo possa ser capaz de cumprir naturalmente muitas partes da Torá, mesmo sem ter sido ordenado a fazê-lo, é preciso ter em mente que Deus determinou os Seus mandamentos graças à Sua infinita bondade; ao outorgar-nos essas leis e padrões de comportamento como mitsvót, cumprimos a Sua vontade como se fosse a nossa, e somos recompensados por fazê-lo. Assim, mesmo se aos nossos olhos alguns dos ensinamentos do Pirkê Avót aparentam ser óbvios, a pessoa ao estudá-los está estudando a Torá que foi outorgada no Sinai, e será recompensada por isso.
Vale notar que a Mishná do Tratado de San’hedrín, se traduzida literalmente, declara: “Todo Israel tem um quinhão para o Mundo Vindouro” e não “no Mundo Vindouro.” O Rabino Chayim Volozhin explica que se os nossos sábios tivessem optado por essa última frase, as pessoas poderiam assumir erroneamente que o Mundo Vindouro viesse a ser um lugar já pronto, e que bastaria comportar-se meritoriamente para garantir uma porção nele. Os sábios, portanto, utilizaram a primeira frase para indicar que o Mundo Vindouro é um lugar que se expande de acordo com as boas ações do homem. Cada filho de Israel tem um quinhão – um elemento de santidade e pureza – que pode expandir a sua porção do Mundo Vindouro.
Extraído da obra:
O Livro do Conhecimento Judaico
Rabino Eliyahu Kitov
656 páginas