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Uma Reflexão sobre Ambientalismo

por Rabino Ury Cherki

 

Na sua opinião, o que é mais importante: a vida do nosso planeta ou a vida humana?
Quer saber o que o judaísmo pensa a respeito disso?

Poderíamos dizer simplesmente que a proteção do meio ambiente é fruto do amor pela natureza e do desejo de viver em um ambiente limpo e cultivado. Porém, se cavarmos mais fundo, veremos que por trás da aspiração de proteger o meio ambiente se esconde um desejo oculto de criar a unidade entre o homem e a natureza.
Deve-se estar ciente da singularidade do homem em contraste com a natureza, mas também não se deve esquecer a unidade de toda a existência. 

No entanto, grande cautela é necessária ao discutir o ambientalismo, pois muitos dos “movimentos verdes” no mundo são inspirados por uma teoria ecológica radical que afirma que o próprio planeta é a maior e mais importante “criatura viva” do universo e é o seu bem-estar que é de suma importância, não a vida humana. Devemos ter a certeza de que os humanos permanecem no centro e não são deixados de lado em favor da preocupação com
a própria natureza. Quando alguém está ciente do valor da moralidade, ainda mais, a conexão com a natureza eleva a si mesmo e a natureza juntos. Por outro lado, se o homem não estiver ciente do valor da moralidade, a crueldade da natureza acabará por dominá-lo. 

A qualidade do meio ambiente é uma questão moderna com a qual as gerações anteriores, aparentemente, não estavam particularmente preocupadas. Pode-se supor com segurança que, em épocas anteriores, havia maior equilíbrio no mundo. O homem, de fato, fez uso dos recursos naturais e certamente trouxe danos a eles, mas, como a escala do dano foi pequena, a Terra pôde se recuperar.

Em nossos tempos, os grandes danos que o homem traz ao planeta criou a necessidade de um tratamento direto dos problemas ambientais. Assim, nas últimas décadas, assistimos ao surgimento de movimentos “verdes” em todo o mundo, com o objetivo de salvaguardar o meio ambiente e proteger o planeta dos danos causados ​​pela atividade humana. A proteção da qualidade do meio ambiente é um tema amplo que inclui a proteção de animais, reservas naturais, manutenção da camada de ozônio e outros recursos naturais.

Ao mesmo tempo, parece que a popularidade das questões relacionadas ao meio ambiente se deve não apenas ao desejo de resolver problemas específicos que podem incomodar os seres humanos, mas a uma visão de mundo mais ampla e profunda, como veremos a seguir.

 

Por favor, mantenha o local limpo

Nosso primeiro passo será ler a Mishná no tratado Baba Batra, cap. 2 (TB Baba Batra 24b):

Deve-se distanciar as árvores vinte e cinco côvados da cidade e, nos casos de árvores de alfarroba e de sicômoro, que têm muitos galhos, deve-se distanciá-las cinquenta côvados (…) Por que se deve distanciar as árvores da cidade? Ula diz: Por causa da beleza da cidade.

Árvores muito próximas a uma cidade são prejudiciais à sua beleza e, portanto, devem ser distanciadas pelo menos 25 côvados.

A Mishná continua:

Deve-se distanciar as carcaças dos animais, as sepulturas e um curtume – local em que se processa os couros – cinquenta côvados da cidade. Pode-se estabelecer um curtume apenas no lado leste da cidade. O Rabi Akiva diz: Pode-se estabelecer um curtume em qualquer lado de uma cidade, exceto no oeste.

Isso é para afastar odores desagradáveis ​​da cidade, como o cheiro forte de peles processadas. Como na Terra de Israel os ventos tendem a soprar de oeste para leste, os curtumes devem ser colocados de tal forma que os ventos mais comuns levem o cheiro para longe da cidade, e não para dentro dela.

Outra fonte aparece no TB Baba Cama 30a e enfatiza a obrigação de manter a limpeza de uma cidade:

Todas as pessoas que abrem suas calhas e drenam o esgoto de suas casas para o domínio público não têm permissão para fazê-lo durante o verão, mas têm permissão para fazê-lo durante a estação chuvosa.

Era necessário limpar periodicamente essas calhas e caixas de esgoto, e a Mishná permite isso nos meses de inverno, pois a chuva lava o esgoto.

Assim, podemos ver aqui a obrigação dos moradores de uma cidade em zelar pela manutenção da qualidade do meio ambiente de sua cidade.

 

A Bela Terra de Israel

No entanto, os Rishonim [sábios que viveram aprox. do século XI ao século XV] qualificaram a importância que se dá a essas fontes discutindo a manutenção do meio ambiente. O Rabenu Nissim de Gerona (o “Ran”) escreveu neste comentário sobre essa discussão que essas leis só se aplicam à Terra de Israel:

Como Ula não disse que o motivo é evitar danos, mas embelezar a cidade, é óbvio que se refere a lugares na Terra de Israel, pois não somos tão rigorosos quanto à beleza dos lugares fora da Terra.

Fora da Terra de Israel, não é necessário se preocupar com o campo estético.98 Isso não se aplica a todos, no entanto. As nações do mundo devem cuidar de seu meio ambiente. Mas, enquanto os judeus estavam espalhados entre as nações, havia a necessidade de nutrir neles um sentimento de distanciamento das paisagens da região. Essa sensação de estranhamento serve para despertar o desejo por outro lugar, pela Terra de Israel.99

O Rabi Iossef Caro (Chóshen Mishpat 155:22) acrescentou outra qualificação: “Parece-me que, mesmo na Terra de Israel, esta lei não se aplica atualmente, quando, por causa de nossos pecados, ela está nas mãos dos gentios, até merecermos.” Portanto, até o retorno da independência nacional, não permitimos que os residentes gentios da Terra de Israel cultivem seu meio ambiente. Enquanto a terra não for governada pelo povo judeu, os judeus não estão interessados ​​em cultivá-la.

A partir disso, percebe-se que o descaso com o meio ambiente anda de mãos dadas com o sentido do exílio. Qualquer um que sinta que ainda está no exílio continua a longa tradição judaica de negligenciar a beleza de seu entorno. Há uma visão subjacente aqui, uma espécie de protesto contra a estética dos não-judeus. O estado dos shtibels [pequenas sinagogas] nos bairros ultra ortodoxos é um bom exemplo da tendência de desconsiderar o ambiente estético. Pois não é razoável supor que todos os proprietários de cada um sejam simplesmente indigentes. O valor atribuído à manutenção da qualidade do meio ambiente, então, é influenciado por processos históricos, políticos e nacionais.

 

Duas visões opostas

Duas histórias sobre dois indivíduos importantes que estiveram ativos nos últimos duzentos anos demonstrarão a grande diferença entre a atitude em relação ao meio ambiente dentro da Terra de Israel e fora dela.

A primeira história é sobre o Rabino Samson Raphael Hirsch (1808-1888), que viveu e atuou na Alemanha durante o século XIX. O Rabino Hirsch foi o primeiro rabino judeu a determinar que a existência do povo judeu no exílio era uma situação positiva e desejável. Ele afirmou que os judeus no exílio devem viver em seus estados anfitriões como cidadãos leais em todos os sentidos e, dessa forma, levar os gentios à santidade. Certa vez, quando estava de férias na Suíça, o Rabino Hirsch ficou impressionado com a vista dos Alpes suíços. Ele ficou tão impressionado que declarou: “Quando eu for para o céu e Deus me perguntar se eu dei uma olhada em Seu mundo, eu lhe responderei: ‘É claro, eu fui para a Suíça!’”

A segunda história também aconteceu na Suíça, algumas décadas depois, em plena Primeira Guerra Mundial.
O Rav Kook, que estava na Suíça durante a guerra, era hóspede na casa de um colega na cidade de St. Gallen. O Rav Kook não estava de bom humor, e seu anfitrião percebeu isso e sugeriu que eles fizessem uma caminhada nos Alpes. Quando ele viu a vista maravilhosa, suspirou e clamou com uma voz dolorosa:
“Ó Jerusalém, cercada por montanhas!”100

Vemos aqui que a visão de mundo de alguém é expressa também em reações emocionais espontâneas. E entre as duas reações acima, a do Rav Kook reflete mais a autêntica identidade judaica.

 

As Boas Maneiras Precedem a Torá

A manutenção da qualidade do meio ambiente está incluída no que os sábios chamavam de dérech érets, ou seja, boas maneiras. Essa expressão se refere à moralidade básica universal, a maneira pela qual qualquer ser humano deve se conduzir. Toda sociedade humana desenvolve regras para um comportamento pessoal adequado, e a fonte original dessas regras está embutida na natureza honesta do homem. As pessoas entendem por si mesmas que é correto cumprimentar uma pessoa conhecida quando se passa por ela na rua e que se deve proteger os arredores. Esse é um comportamento adequado geralmente aceito. Sobre esse tipo de conduta, os nossos sábios disseram (Vaicrá Rabá 9:3): “Dérech érets precede a Torá.”

Às vezes, entre aqueles que estudam a Torá, encontramos uma tendência de rejeitar o valor do dérech érets, alegando que a Torá foi dada a Israel para substituir a moralidade básica. Isso é semelhante à afirmação de que se deve amar o próximo apenas porque é um mandamento da Torá e, se não fosse mandamento da Torá, não haveria tal obrigação de mostrar amor aos outros.

Essas afirmações e outras do tipo estão incorretas. Existem muitos mandamentos na Torá que seríamos obrigados a cumprir mesmo sem um mandamento explícito, mas eles estão escritos na Torá para elevar tais atos ao nível de mitsvá [preceito]. A mitsvá de amar o próximo eleva esse amor do nível de dérech érets a um plano superior: a um sentimento que expressa a revelação da vontade de Deus no mundo.101

Nesse sentido, podemos ver a sociedade secular em Israel – que tem o dérech érets como um valor central na vida – como uma forma de reação à posição religiosa, que vê o dérech érets como algo não essencial.

 

Homem, Natureza, Santidade

Quais são os valores centrais do ambientalismo? Poderíamos dizer simplesmente que proteger o meio ambiente é fruto do amor pela natureza e do desejo de viver em um ambiente limpo e cultivado. Porém, se cavarmos mais fundo, veremos que por trás do objetivo de proteger o meio ambiente se esconde um desejo oculto de criar unidade entre o homem e a natureza.

Estamos todos muito familiarizados com a separação entre o homem e a natureza. As religiões monoteístas procuram subjugar a natureza corporal para impedir que ela controle o homem. O judaísmo também parece ser um parceiro nessa batalha religiosa contra a natureza. Por exemplo, quando os israelitas entraram em sua terra, eles foram ordenados a travar uma guerra de destruição contra a idolatria, que visava adorar as forças da natureza. Os moradores da terra adoravam árvores robustas e grandes montanhas – eles adoravam a natureza em todo o seu poder e glória. Toda essa cultura idólatra foi o que os israelitas foram ordenados a destruir para salvar o homem de ficar totalmente submerso no mundo da natureza.

Vemos também, em tempos posteriores, que um elemento da hostilidade do judeu à natureza permanece, mesmo quando a idolatria não é mais amplamente praticada. Em relação
à Bênção da Lua Nova [Bircat Halevaná], os rabinos ensinaram (Maguen Avraham, Ôrach Chayim 424:8) que não se deve olhar diretamente para a lua enquanto se recita a bênção, para não encorajar uma visão idólatra do mundo.

Por outro lado, também encontramos no judaísmo tendências opostas. O judaísmo, como verdadeira religião monoteísta, acredita que a luz de Deus permeia toda a Sua criação. Por exemplo, os rabinos ensinaram que é indesejável andar descalço (Remá, Ôrach Chayim 2:8). Não há proibição em relação
a isso; só é algo considerado indelicado. A razão é que existe uma forma de impureza no solo e, portanto, deve-se usar algo que separe os pés do solo. Há um lugar, no entanto, em que andar descalço não é um problema – o Templo Sagrado. No Templo, é proibido andar com sapatos. Nesse local, não há impureza nem mesmo na terra e, para se conectar com a santidade que ali permeia, é preciso andar descalço. De acordo com alguns dos rabinos, isso se aplica a toda a Terra de Israel, porque seu solo é sagrado.

 

Homem, animal e planta

Em seu comentário sobre a Torá, o Rabi Joseph Caspi (1297-1340) traz o mandamento de shilúach haken [espantar uma ave mãe antes de pegar os seus ovos] em nosso contexto:

A razão deste mandamento, que pode ser claramente vista, é a mesmo de “Não matarás um animal e sua prole no mesmo dia” e “Não cozinharás um cabrito no leite de sua mãe”, ou seja, nos distanciar da crueldade. A Torá está simplesmente nos ensinando bons traços de caráter. Mas, ao lado disso, digo que nossa Torá perfeita queria nos dar ideias perfeitas e que tivéssemos o máximo de conhecimento da realidade. Portanto, pretendeu-se aqui duas intenções.
A primeira, esclarecer para nós o nível de nossa realidade e, como resultado, remover de nós as propriedades da vaidade e do orgulho. E isso porque é sabido que a nossa categorização inclui a matéria e, sob esta, as plantas e, sob aquela, os seres vivos e, sob aquela, as criaturas que falam, isto é,
o homem, e isso abrange todos os fundamentos da realidade.

O Rabi Caspi está afirmando que, por meio do mandamento de shilúach haken, a Torá está nos ensinando uma importante lição de humildade. Está nos ajudando a nos livrar do traço da arrogância. Tudo é composto de matéria e, portanto, explica o Rabi Caspi, a matéria é aquilo que une todas as criaturas materiais. Homem, cadeiras, mesas, nuvens, o Sol, animais – são todos feitos de matéria. Portanto, a matéria é a categoria mais inclusiva neste mundo. A segunda categoria mais inclusiva é a das plantas. As plantas também são feitas de matéria, mas nem toda matéria é planta. E assim, a matéria inanimada é, nesse sentido, de maior importância do que a matéria vegetal.

E fica claro que muitas pessoas, muitas vezes, pensam com uma falsa presunção que não há nada comum entre nós e os outros animais ou plantas, como repolho e outros vegetais, ou com os campos.

O ser humano pensa que não tem ligação direta com outros animais, mas isso é um erro. Existe uma parceria oculta entre o homem e o animal. E, por essa razão, é proibido pela Torá causar sofrimento desnecessário aos animais, e a Lei Judaica enfatizou muito esse princípio.

O filósofo francês René Descartes (1596-1650) afirmou que os animais não têm emoções – o que levou seus alunos e seguidores posteriores a realizar experimentos em animais sem anestésicos. Esses eram experimentos terrivelmente cruéis, e os animais gritavam de dor. Mas os alunos de Descartes diziam que os gritos não eram de sofrimento, mas apenas um reflexo instintivo, como o som que sai de um tambor quando é tocado.

A posição do judaísmo em relação aos animais é diametralmente oposta à de Descartes, conforme escreve o Rabi Joseph Caspi mais adiante:

Para nos distanciarmos de tal tolice, a Torá deu vários mandamentos, alguns relacionados à matéria inanimada, outros às plantas, outros aos seres vivos e outros ao homem.

Existem mandamentos em todas as categorias acima. Há mais mandamentos relacionados a ter misericórdia das pessoas do que dos animais, e há mais mandamentos pedindo misericórdia para com os animais do que para com a matéria vegetal, e há mais pedindo para respeitar a matéria vegetal do que respeitar a matéria inanimada. Em qualquer caso, a Torá tem uma atitude respeitosa em relação a todos.

A seguinte história exemplifica essa atitude: o justo de Jerusalém, o Rabino Ariê Levin (1885-1969), estava andando com o Rav Kook. Enquanto caminhavam, o Rabino Levin arrancou uma folha. Quando o Rav Kook viu isso, ficou chocado. Ele não entendia como alguém pode acabar com o fluxo da vida no mundo, que sustenta tudo. Pois, uma vez que aquela pequena folha foi arrancada, foi desconectada do fluxo da vida. Devemos concluir disso que o Rav Kook não comia vegetais? Certamente não. Mas tudo depende do propósito: se arrancar a folha serve
o uso do homem, então isso é algo apropriado. A folha arrancada se juntará à vida da alma humana. Mas arrancar uma folha sem qualquer motivo, sem o objetivo de preencher qualquer necessidade, é simplesmente cruel.

Para resumir o comentário do Rabi Caspi, podemos ver que, por um lado, ele reconhece que há um destino comum tanto para o homem quanto para o animal, bem como para a planta e até para a matéria. Por outro lado, ele não tem problemas em fazer distinções entre os diferentes níveis de criaturas.

 

Homem e Natureza – o Movimento Verde

Em contraste com a abordagem moderada do Rabi Caspi, em nossos dias, existem novas escolas de pensamento ecológico que constituem uma grande ameaça à cultura democrática e a toda a civilização humana. Essas escolas afirmam, e nem sempre conscientemente, que não há diferença entre os vários tipos de criaturas.

De um modo geral, quando falamos de ambientalismo, queremos dizer tentativas de reduzir a poluição do ar e da água, proteger florestas e animais e afins – e tudo isso com base na preocupação com a vida e o bem-estar humanos. É mais agradável e saudável respirar ar puro, beber água limpa e apreciar
a vegetação. Esse é o objetivo amplamente declarado.

No entanto, sob a superfície, esconde-se um raciocínio totalmente diferente. A maioria das pessoas, mesmo a maioria dos ambientalistas, não está ciente de que muitos dos “movimentos verdes” no mundo se inspiram na Hipótese de Gaia – uma teoria ecológica radical desenvolvida pelo cientista britânico James Lovelock (1919-2022) na década de 1970. Lovelock, que publicou vários livros e artigos sobre o assunto, afirma que o planeta é um superorganismo – a maior e mais importante “criatura viva” do universo – e é sua existência continuada que é de suma importância. Ele se relaciona com o aparecimento do homem no planeta como um fenômeno temporário sem grande significado. Se fôssemos obrigados a escolher entre o bem da grande criatura biológica que é o planeta e o da raça humana,
a decisão seria claramente em favor do planeta.

Lovelock, por exemplo, se opôs à morte dos cervos após o desastre nuclear de Chernobyl. O abate de animais que haviam se tornado radioativos visava evitar danos futuros aos moradores da região que vivem de sua carne. Mas Lovelock protestou vigorosamente contra a ação com a convicção de que o ato era muito pior do que permitir que uma pequena parcela da população humana contraísse câncer.

Deve-se notar que as ideias de Lovelock têm uma base científica. Ele afirmou com razão que o globo age consistentemente para regular as várias forças que estão ativas nele, algo que indica que o homem é apenas uma das muitas criaturas no grande círculo de vida do planeta. O problema com essa visão é que ela rejeita o valor da moralidade e da vida humana em favor da vida da natureza. Não é surpresa, então, que tenha sido justamente na Alemanha que as teorias de Lovelock ganharam grande popularidade, porque os alemães demonstram uma forte tendência ao paganismo do tipo que inclui uma crueldade oculta. Uma vez que se coloca a vida dos animais em um nível em que eles são considerados “criaturas melhores que os seres humanos”, como diz o ditado popular, lança-se as bases para o próximo holocausto.

É preciso muita cautela, então, quando se discute o ambientalismo. Devemos ter o cuidado de esclarecer para que fins estamos trabalhando. Devemos ter a certeza de que os seres humanos permanecem no centro e não são deixados de lado em favor da preocupação com a própria natureza.

A nação de Israel é conhecida como o povo que trouxe ao mundo a moralidade e a conquista das forças mais obscuras da natureza. Quando alguém está ciente do valor da moralidade, ainda mais, a conexão com a natureza eleva a si mesmo e a natureza juntos. Por outro lado, se o homem não estiver ciente do valor da moralidade, a crueldade da natureza acabará por dominá-lo. As leis básicas da natureza, como o egoísmo, a sobrevivência do mais apto, etc., tomam conta de sua consciência e moldam sua visão de mundo. O homem faz parte do mundo natural e, ao mesmo tempo, possui um elemento cuja fonte não está na natureza, mas no que está acima da natureza.

 

O Atrevimento de Orar em um Vale Aberto

No TB Berachót 34b é trazida uma declaração do Rabino Cahana: “Aquele que reza em um vale aberto, sem paredes, mostra atrevimento diante de Deus.” Segundo os Gueonim – sábios que atuaram aproximadamente entre os séculos VII e XI –, a razão do Rabino Cahana é tangencial: para que as pessoas que transitam nos espaços abertos não o distraiam da oração. Sendo assim, em um lugar onde não há pessoas transitando, não deve haver problema em orar ao ar livre. Os Rishonim, no entanto, entenderam isso como um apelo para que as orações não fossem realizadas nos campos, porque a oração deve ser realizada em uma instalação murada. De acordo com esse entendimento,
o Rabino Cahana estava preocupado que tal ato pudesse se tornar uma experiência idólatra e, portanto, se opôs à oração ao ar livre.102

Devemos acrescentar que o Rabino Cahana não proibiu explicitamente a oração nos campos, mas apenas a criticou. Poderíamos dizer que a questão realmente depende do nível espiritual da pessoa: alguém que está no nível do rei David – que, ao orar no campo, se unificava com o espírito vivo da santidade escondido na natureza – pode orar no campo, mas para alguém que não está em um nível espiritual tão grande é melhor que esteja cercado por divisórias que o separem do mundo natural.

Em termos práticos, mesmo quando se reza dentro de casa, deve-se deixar uma janela que ligue as pessoas que rezam à natureza do lado de fora: a Lei Judaica exige que os locais de oração tenham janelas, e os rabinos escreveram em nome do Zôhar (Shulchan Aruch, Ôrach Chayim 90:4; ver também Caf Hachayim) que se deve orar em um lugar de onde o céu possa ser visto e que tenha doze janelas. Essa lei expressa a dualidade que caracteriza a relação entre o homem e a natureza. Por um lado, é preciso estar ciente da singularidade do homem em contraste com a natureza. Por outro, não devemos esquecer a unidade de toda a existência.

 

O que está em cima e o que está em baixo

Para concluir, vejamos uma ideia que se encontra no poema escrito pelo Rabi Abraham ibn Ezra, que aparece na liturgia do Iom Kipúr:

Inclinarei meu rosto ao chão, pois nada está abaixo dele.Cairei diante do Altíssimo, pois nada está acima Dele.

Há uma dificuldade com esses versos do Ibn Ezra. Quando ele diz: “Inclinarei meu rosto ao chão, pois nada está abaixo dele” – ora, o chão é de fato o lugar mais baixo ao qual alguém pode se curvar. Mas então o que se segue não é claro: “Cairei diante do Altíssimo.” Como se inclinar ao lugar mais baixo pode ser equivalente a cair diante do Altíssimo?

O Rabino Iehudá Leon Ashkenazi explicou que, nesses versos, o Ibn Ezra está sugerindo um grande segredo. Quando ele diz “nada” [en], esse também é um nome de Deus, como em “O Infinito” [En Sof]. E assim, o Ibn Ezra está dizendo que Deus, que é chamado de En, está abaixo do solo – “pois En ​​está abaixo dele”.

Embora na superfície haja uma hierarquia no mundo – a terra está abaixo e os céus estão acima –, em outro sentido, oculto, a luz de Deus se encontra precisamente nos lugares mais baixos. Portanto, o Ibn Ezra diz: “Inclinarei meu rosto ao chão, pois nada [En] está abaixo dele” – e é precisamente neste lugar que “Cairei diante do Altíssimo, pois nada está acima Dele”.

A Presença Divina é encontrada mesmo nas partes mais baixas do mundo, e essa é a razão interna da preocupação do povo judeu com a natureza e o meio ambiente.

 

O que você acabou de ler é extraído do capítulo 15 do livro
“SANTIDADE & NATUREZA – Sobre as raízes da vida”,
publicado pela Editora Sêfer.

 

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NOTAS

98. O Rabino Moshe Schreiber (o “Chatam Sofêr”) determinou isso sem rodeios, dizendo: “[O Talmud] está claramente discutindo [uma situação] em que o povo de Israel está na Terra de Israel, porque, fora dela, deixe que permaneça em desolação completa!”

99. Bialik escreve em nome de Achad Haám (trecho de Halachá Veagadá): “O que diz um homem de halachá? ‘Aquele que está no caminho e engajado em estudo e interrompe o seu estudo e diz: ‘Que bela árvore; que belo campo’ é considerado como se fosse culpado de um crime capital.’ Os homens de beleza entre nós esgotaram o nosso suprimento de flechas atacando essa miserável Mishná, mas os homens de alma ouvirão mesmo nela, nas entrelinhas, uma emoção e grande preocupação com o destino da nação que ‘está no caminho’ e não tem nada de próprio além do livro, e para quem qualquer ligação significativa com o lugar em que reside pode se tornar uma sentença de morte.”

100. Citando o Salmo 125:2.

101. Ver também o Maharal, Tiféret Israel, cap. 1.

102. Ver também a obra do Rabino Iossef David Azulay (o “Chida”), Pétach Enáyim, sobre esta discussão.

 

 

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