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Pensamento Judaico

A bondade de estranhos

Qual é a diferença entre o liberalismo de Rawls e o liberalismo do modus vivendi?

Qual é a diferença entre o liberalismo de Rawls e o liberalismo do modus vivendi? O liberalismo de Rawls sustenta que pessoas podem ter convicções religiosas diversas, mas não as expõem em praça pública. Na esfera política de Rawls, o idioma corrente é o que ele chama de “a linguagem da razão pública”. Isto se assemelha à norma adotada por alguns judeus alemães no século 19: “Seja um homem na rua e um judeu em casa.” Práticas e assuntos religiosos são de caráter particular. Em público, usa-se o idioma comum e essencialmente secular que filtra as diferenças religiosas.

Há, no entanto, outra concepção. Muito mais antiga, ela nos alerta a não deixarmos em casa nossas convicções religiosas ou convenções culturais quando sairmos à praça pública. Elas são parte de quem somos e daquilo que somos – na rua, na urna eleitoral, num posto de governo. Mas, se as levarmos conosco, a praça pública se tornará uma arena de discórdia e intolerância. Quer falemos de eutanásia voluntária, pesquisa de células-tronco, clonagem, preservação das espécies, ética ambiental ou de qualquer outro entre a infinidade de assuntos que nos dizem respeito, o debate aberto revelará conflitos substantivos para os quais não existe um método de resolução neutro. Num cenário assim, o que podemos esperar de melhor é seguir convivendo, mesmo em desacordo. A um consenso, nós não chegaremos. Mas criaremos um modus vivendi, um modo de vivermos em conjunto e em paz.

Este era o tipo de política no qual Sir Isaiah acreditava. Ele estava convencido da impossibilidade de construirmos uma sociedade ideal, uma sociedade na qual nossas múltiplas ideias sobre o bem comum fossem simultaneamente colocadas em prática. Sua citação favorita quanto a este contexto, a qual ele atribuía a uma tradução do professor R. G. Collingwood das palavras de Immanuel Kant, era: “À parte o caráter tortuoso da humanidade, nada de reto jamais foi criado.” A título de nota de rodapé, eu acrescento que Kant, por sua vez, estava citando a Bíblia: “Não conseguiremos consertar o que está errado” (Eclesiastes 1:15).

A visão de humanidade de Isaiah Berlin, é fato, contraria um dos grandes conceitos do judaísmo, a Era Messiânica. Nós acreditamos, sim, que o mundo perfeito um dia virá a existir. Mas, se Berlin estava certo, isto significa que não será assim. Não se deve, porém, ampliar o conflito. A resposta judaica a “O Messias já chegou?” é, sempre, “Ainda não”. (Um amigo nosso chama seu encanador de Messias: esperado diariamente, ele nunca vem.) De qualquer maneira, Samuel, o sábio rabínico do terceiro século, acreditava que: “A única diferença entre nossos tempos e o tempo messiânico é que [então] o povo judeu não mais estará sob o domínio de outras nações.” De acordo com Samuel, a natureza humana não passará por transformações miraculosas. O que acontecerá é que o povo judeu simplesmente retornará à sua terra. Ao contrário de Berlin, o judaísmo acredita no poder dos seres humanos para transcender a guerra e a violência. Esta é a esperança profética. Até lá, os Sábios mantêm sua crença numa política de coexistência definida pela generosidade, e não por gestos grandiosos. Exatamente como Berlin.

Darkê shalom é uma expressão vigorosa do liberalismo do modus vivendi, um conjunto de princípios para viver com urbanidade ao lado de pessoas cujas crenças e maneiras são incompatíveis com as nossas. Apesar das profundas diferenças, devemos nos comprometer com a cidadania comum e contribuir para o bem-estar de outras comunidades além da nossa. Este é o significado político da paz segundo a concepção rabínica, distinta da visão profética. A paz anunciada pelos profetas se dá no âmbito daquilo que Francis Fukuyama, seguindo Hegel, chama de “o fim da história”. Nossos Sábios criaram um modelo de paz sob medida para o caráter tortuoso da humanidade. Por essa razão, ele fala tão de perto à nossa situação em meio ao pluralismo religioso e cultural das democracias liberais do Ocidente.

Por acaso ou providência, tive a oportunidade de participar de um projeto que colocou em prática uma proposta de darkê shalom Em 2002, Elisabeth II celebrou seu jubileu de ouro como rainha. Perguntei a mim mesmo qual seria a maneira mais apropriada para a comunidade judaica ou as comunidades religiosas em geral expressarem sua gratidão e render-lhe tributo. Veio à memória uma conversa que havia tido com o Príncipe Charles e o arcebispo de Canterbury alguns anos antes. Na ocasião, discutimos caminhos que pudessem melhorar as relações entre diferentes comunidades e fortalecer o senso de cidadania entre os jovens. Uma das ideias sugeridas foi pedir a cada uma das comunidades religiosas da Grã-Bretanha que encorajasse seus membros a praticar um ato de bondade para com alguém que não fosse de sua fé –  estender a mão da amizade por sobre as fronteiras.

A ideia foi resgatada, ganhou corpo e recebeu o apoio do príncipe de Gales. O programa – “Respeito” – foi lançado na Inglaterra na primavera de 2002 e, mais tarde, no mesmo ano, chegou à Escócia. Todos os nove grandes grupos religiosos da Grã-Bretanha tomaram parte: cristãos, judeus, muçulmanos, hindus, sikhs, budistas, jainistas, zoroastristas e bahaístas. “Os caminhos da paz” estavam em ação. Ficou claro que alcançar a paz cívica exige mais que tolerância mútua, mais que uma atitude do tipo “viva e deixe viver”. Darkê shalom é um preceito ativo e não passivo; é fazer o bem a outros e mostrar, assim, que os filamentos da nossa humanidade comum, com sua multiplicidade de cores, são parte da textura social que confeccionamos juntos. Nesse momento, quando ressurge a tensão entre minorias étnicas e religiosas, “os caminhos da paz” são o caminho a seguir.

 


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Trecho extraído da obra Para Curar um Mundo Fraturado,  A Ética da Responsabilidade
Autor: Jonathan Sacks
Editora Sêfer
Páginas: 354

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