As bênçãos de Bilám acabaram por se transformar em uma terrível maldição. Este canalha, que acabou de se elevar para além de seus limites e de perceber a grandeza de Israel, retorna ao esgoto da maldade ao voltar sua animosidade contra este povo. Antes de se despedir de Balác, o decepcionado rei de Moab, Bilám aconselhou-o como proceder para derrotar definitivamente o povo de Israel:
“O Deus deles odeia a depravação.”
Tratado San’hedrin 106
Deus, explicou Bilám, oferece abrigo ao povo de Israel durante todo o tempo em que este mantém um comportamento casto. Uma lei bíblica implica a relação de causa e efeito entre licenciosidade sexual e derrota militar dos soldados de Israel. Faça-os pecar com a prostituição e a vitória será tua.
De fato, sua intriga foi bem sucedida. As moabitas puseram-se a agir e, como consequência:
“…começou o povo a errar com as filhas de Moab.”
Números 25:1
A continuação é nada mais do que natural:
“E convidaram o povo aos sacrifícios de seus deuses e o povo comeu,
e prostrou-se aos seus deuses.”
Números 25:2
A consequência destas coisas foi que Deus irou-se e fez surgir uma peste:
“E os que morreram, da praga, foram vinte e quatro mil.”
Números 25:9
Foi neste contexto que acabou por ocorrer o assassinato do príncipe de uma das tribos, o primeiro assassinato político da história de Israel. Um assassinato que, se por um lado teve o poder de estancar a praga, por outro foi cometido diante dos olhos de todos como resultado das divergências entre as “duas culturas”: aquela que seguia a moral de Moab, destruindo a célula familiar, e aquela fiel aos princípios do espírito, conforme ensinados por Moisés.
O assassino, em vez de ser preso por estar aumentando o antagonismo existente no povo, recebeu um “Prêmio Divino da Paz”. Foram estes os termos da proclamação:
“Pinchás, filho de Eleazar… desviou Minha ira de sobre os filhos de Israel, ao levar Minha vingança entre eles,
e assim não consumi os filhos de Israel com Minha ira. Portanto dize: Eis que lhe dou a Minha aliança da paz.”
Números 25:11-12
Aqui oculta-se um paradoxo, pois além da questão da justiça em relação aos atos de Pinchás (pelos quais é julgado na continuação do episódio), a recompensa que recebeu é deveras estranha. Seria a paz um prêmio à violência? Poderia o amor pela paz ser a recompensa de um fanático inflexível em suas posições?
Além disso, uma regra que tomamos como lei e que se destaca em todo o mundo bíblico é que “todos os critérios de Deus, bendito seja, oferecem um critério Divino semelhante em contraposição ao critério do homem” (Midrash). Esta é uma regra válida tanto para a punição como para a recompensa que ele venha a merecer. Como esta regra teria sido expressa no caso que examinamos? Para isto devemos nos aprofundar nos acontecimentos e compreendê-los desde suas origens.
A questão que se impõe é a seguinte: como o conselho de Bilám pôde fazer surgir uma praga? O que este conselho tinha de tão poderoso a ponto de ameaçar de destruição o povo de Israel? O segredo nos é revelado pelo próprio Bilám, na famosa frase que proferiu:
“Quão belas são suas tendas, ó Jacob, as tuas moradas, ó Israel.”
Números 24:5
A beleza que Bilám viu nas tendas é explicada:
“Pois viu suas aberturas, que não estão direcionadas umas às outras.”
Rashi
Bilám pôde perceber a virtude da castidade que reinava no acampamento de Israel. Uma sociedade cujas portas das casas não ficam uma defronte à outra é uma sociedade mais pura e saudável. Esta disposição nos revela uma autocontenção no relacionamento humano. Mostra que as pessoas conseguem sobrepujar seus instintos de bisbilhotar as casas alheias. Esta é uma qualidade de vida que Bilám não conheceu nas culturas das quais provinha. Ele observou o acampamento de Israel e viu o respeito profundo que cada um nutria pela privacidade alheia. Neste estado de espírito, as pessoas não remexem na vida do outro, não nutrem o ciúme, não fofocam e não invejam a casa ou a família alheia. Esta é a castidade, no sentido amplo da palavra, que Bilám observou pairar sobre o acampamento de Israel, ao avistá-lo do topo de alguma colina do reino de Moab. E foi esta visão que o fez exclamar surpreso:
“Quem pode atingir a estes seres humanos, que conhecem seus pais e suas famílias?”
Midrash Bamidbar Rabá 2:3
Não há força neste mundo capaz de derrotar este povo, enquanto seu lar e sua família se basearem nos valores mencionados. Esta é uma lei tão forte como uma lei da natureza.
O conselho – sussurrou Bilám – é fazer com que saiam destes limites. Ataque a “pureza da família israelita” por meio da excitação dos instintos do mal. Assim, o povo de Israel se igualará ao seu povo e poderás derrotá-lo.
De fato, as filhas de Moab cumpriram bem a tarefa à qual foram incumbidas. De acordo com nossos sábios, elas “arrombaram as cercas do mundo”. A harmonia e a espiritualidade que reinavam no povo de Israel foram abaladas. Uma “pane de sistema” tomou conta do acampamento.
Para aumentar o constrangimento, tal libertinagem tomou conta também de alguns dos líderes do povo. Mostrou especial excelência nestes assuntos o príncipe da tribo de Simão, que quase causou uma anarquia total no acampamento. Foi assim que aconteceu:
“E eis que um homem dos filhos de Israel veio e trouxe a seus irmãos uma midianita, diante dos olhos de Moisés e dos olhos de toda a congregação dos filhos de Israel, enquanto eles choravam à entrada da Tenda da Assinação.”
Números 25:6
Este versículo abriga um grande drama. O homem que se aproximou de Moisés era Zimrí, filho de Salú, príncipe da tribo de Simão. Ele não apenas ultrapassou os limites da moral hebraica, mas desafiou a Moisés, insinuando que o líder, que exigia pureza de todos, não seria melhor do que os outros.
“Filho de Amrám” – disse o príncipe ensandecido, apontando sua amante. “Filho de Amrám, esta é permitida ou proibida?” Disse-lhe Moisés: “Proibida.” Disse-lhe Zimrí: “Aquela que tomastes é midianita” (referindo-se a Zipora, a midianita, mulher de Moisés). “Imediatamente” – acrescenta o Midrash – “afrouxaram-se as mãos de Moisés e ‘desapareceu’ de sua mente a lei específica para este caso, e se debulharam todos em pranto” (Midrash Bamidbar 20).
Não importava que a comparação fosse incorreta e maldosa, pois a força deste tipo de atitude é deixar as pessoas sem graça e sem ação. Ele conseguiu enfraquecer os líderes, levando-os até o ponto em que começaram a a chorar sem poder encontrar alguma saída para a crise.
E então, do meio da multidão, surge Pinchás:
“E tomou uma lança em sua mão. E foi atrás do homem de Israel…
E atravessou a ambos, ao homem de Israel e à mulher…
E se deteve a mortandade.”
Números 25:7-8
Um único golpe de lança abalou o povo, devolvendo-lhe a sanidade mental e o equilíbrio espiritual. Conforme o dito popular, “céus tenebrosos só se clareiam com uma tempestade”.
De fato, o ato de Pinchás purificou o ambiente deteriorado que reinava no acampamento. Mas seria tal violência permitida? Obviamente que a Torá e o Talmud delimitaram de forma muito clara os estreitos limites da lei que permite matar alguém. Foi por este motivo que os sábios daquela geração quiseram expulsar Pinchás do acampamento.
No entanto, a bênção Divina legitimou-o. Legitimou a Pinchás, e não aos outros. Aquele que fizer de Pinchás seu modelo de vida e seguir os passos da violência, certamente não compreendeu a bênção divina profundamente.
Mas por que Deus outorgou-lhe a paz? Assim entenderam os grandes comentaristas:
“Como recompensa por ter aplacado a ira e a cólera Divinas, foi abençoado com a virtude da paz, para que não se irritasse ou se encolerizasse, e também com a finalidade de contrabalançar a possibilidade de que a atitude de Pinchás – o assassinato com suas próprias mãos – pudesse manter vívido em seu coração um sentimento inadequado de valentia. Mas como foi uma ação perpetrada em nome dos Céus, veio a bênção, para que ele estivesse sempre tranquilo e em paz. E para que isto não se transformasse em remorso dentro de seu coração.”
Haamec Davar
Por meio daquele ato, que restituiu a paz e a harmonia ao acampamento de Israel, Pinchás ultrapassou seus próprios limites: matou um homem com suas próprias mãos, violando sua paz de espírito. A violência, em qualquer circunstância, corrompe o homem.
A bênção Divina com a virtude da paz foi uma recompensa de acordo com a própria virtude de Pinchás. Devolveu-se a paz ao espírito daquele que trouxe a paz ao acampamento. Com isto Deus nos mostrou que, apesar de seus atos terem sido necessários, Pinchás necessitava de uma cura que lhe trouxesse paz e harmonia pessoal.
Apesar da aprovação Divina, o nome de Pinchás não foi sugerido como possível herdeiro de Moisés na liderança do povo, mesmo tendo ele demonstrado ousadia, sagacidade, capacidade de liderança e perseverança em momentos de crise. Seu fanatismo, afirma um dos mestres do chassidismo, foi o que o afastou do cargo de líder. Nesta mesma porção semanal, Deus determina que, à frente do povo, deve haver um líder que possa suportar as divergências de opinião dos seus integrantes (Rashi) – alguém como Josué!
Extraído da obra REFLEXÕES SOBRE A TORÁ
Esta obra reúne uma seleção de comentários sobre as porções semanais da Torá lidas a cada manhã de sábado em todas as sinagogas do mundo. Originalmente publicadas na coluna Parasha Ufishra, presente nas edições das sextas-feiras do diário israelense Maariv durante 16 anos, os textos tornaram-se um grande sucesso junto ao público leitor graças à linguagem simples e direta de Moshe Grylak, consagrado educador e estudioso de fama mundial.