Escrita pelo mestre Maimônides há mais de 800 anos, essa obra não é uma leitura fácil e exige algum conhecimento prévio sobre a Bíblia e o pensamento filosófico. Mas sim, definitivamente vale a pena estudá-la, não só para descobrir a genialidade do autor como para acessar uma infinidade de informações que serão úteis na compreensão de outras matérias.
Moisés Maimônides, o mais profundo pensador religioso e intelectual do seu tempo, foi o auge da Idade de Ouro da “judiaria” espanhola. Nasceu em Córdova em 1134, mas, quando era ainda rapaz, a Espanha caiu sob o domínio dos almóadas (unitários), uma tribo árabe que entrara no país vinda da África do Norte. Os novos senhores da Espanha eram fanáticos ferozes e as suas perseguições forçaram muitos não-muçulmanos a fugir do país. Entre os fugitivos contava-se Moisés ben Maimon que, após um período errante e sérias privações, se estabeleceu em Fostat (Velho Cairo). Aí escreveu, entre outras obras importantes, o seu famoso More Nevuchim (“Guia dos Perplexos”), que lançou as bases para todo o desenvolvimento da filosofia judaica e permanece como exemplo da fé racionalizada mesmo para aqueles que não puderam seguir Maimônides completamente.
Guia dos Perplexos
Obra completa
Autor: Maimônides
Editora Sêfer
Páginas: 536O Guia dos Perplexos é a obra-prima filosófica daquele que é considerado um dos maiores sábios judeus de todos os tempos: o Rabi Moshe ben Maimon – o Rambam, também conhecido como Maimônides. Escrito há mais de 800 anos e contendo 178 capítulos divididos em 3 partes, está sendo publicado na íntegra somente agora em português, com base nas mais respeitadas fontes históricas, religiosas e acadêmicas, em linguagem acessível e criteriosamente anotado
Como ibn Daud, Maimônides (ou Rambam) tinha a maior veneração por Aristóteles como o mais elevado representante, depois dos profetas de Israel, do poder intelectual humano, e foi na filosofia de Aristóteles que procurou encontrar uma interpretação racional da fé e da tradição religiosas de Israel. Com este fim, empregou o método alegórico por meio do qual acomodou o texto bíblico ao ensino de Aristóteles. Isto não significa que Maimônides afastasse a doutrina bíblica onde tal acomodação não era possível. Embora racionalista, insistiu com persistência que havia algo inerentemente deficiente na razão humana, que assim não podia ser aceita como teste final da verdade e que, consequentemente, a última palavra estava com a revelação. O que isto significa é que Maimônides estava preparado para se deixar guiar pela razão em todos os pontos não-essenciais, desde que aquilo que considerava vital e absoluto no ensino bíblico não fosse afetado. Esta distinção entre o essencial e o não-essencial é a maior contribuição de Maimônides para o domínio do pensamento religioso judaico, e em parte alguma está mais bem ilustrado do que na forma como trata o problema da Criação.
Enquanto todos os predecessores de Maimônides faziam da doutrina da Criação um problema religioso que procuravam defender com todos os argumentos que podiam reunir a seu favor, Maimônides foi o primeiro a separar esta questão do domínio da religião. Tudo o que interessava à religião, segundo o seu ponto de vista, era salvaguardar o elemento da vontade Divina na Criação, sem o qual toda a doutrina bíblica da intervenção Divina no processo natural e histórico não poderia manter-se. Sendo este o caso, o problema real da Criação, da posição religiosa, era se o mundo era produto de causa e efeito ou da livre atividade da vontade Divina. O primeiro ponto de vista, ligado à concepção aristotélica de Deus como causa primeira de quem o mundo provinha por necessidade, como, por exemplo, os raios do Sol provêm do calor do mesmo astro, era totalmente incompatível com a atitude religiosa, e tinha de ser rejeitado como tal; mas havia o ponto de vista platônico que, embora também apresentasse a teoria da eternidade do Universo, concebia Deus como um artesão a trabalhar sobre qualquer matéria informe preexistente e que, como tal, não excluía necessariamente o elemento da vontade Divina trazendo o mundo à existência. O mundo existia desde a eternidade porque o Divino Artesão sempre quisera que ele existisse. Consequentemente, este último ponto de vista nada tinha de objetável em si da posição religiosa. A única objeção que podia ser feita contra ele é não estar de acordo com a narração literal do Gênesis, que representa Deus como tendo chamado o mundo à existência em certo ponto do tempo. Isto, contudo, não era considerado por Maimônides como uma objeção grave, visto que, se este ponto de vista pudesse ser racionalmente demonstrado verdadeiro, o texto escritural podia ser interpretado em consequência. Na verdade, contudo, todos os argumentos filosóficos a favor deste último ponto de vista são inconclusivos, de forma que não há razão para nos afastarmos do ensino escritural sobre esta questão.
A aceitação por Maimônides da teoria da eternidade do Universo (no sentido platônico), uma vez comprovada, invalida o fato da Criação como evidência existencial de Deus. Maimônides, por isso, prossegue para provar a existência de Deus mesmo com a assunção de que o mundo existia desde a eternidade. Para este fim, enuncia 26 proposições derivadas da física de Aristóteles, baseadas principalmente na impossibilidade da existência de uma série infinita de causas. Por este meio, Maimônides prova de várias maneiras a existência de Deus como Ser necessário, como primeiro Movimentador e como primeira Causa, em que a série finita de causas termina. Omitindo as suas provas demasiadamente técnicas para serem aqui reproduzidas, pode contudo mencionar-se que elas incluem as duas já apresentadas acima por ibn Daud, exceto que, em Maimônides, elas são mais elaboradas, na medida em que lhe permitem provar ser Deus um Ser Primordial infinito, incorpóreo e sem composição, eterno e único.
Mas, embora Maimônides estivesse disposto ao compromisso na doutrina da Criação no tempo, não se afastava da de Creatio ex nihilo (criação a partir do nada) a favor da noção platônica de uma matéria eterna e incriada, pois, aceitar que qualquer coisa pudesse ter existido desde toda a eternidade além de Deus e independente Dele, seria uma séria infração à unidade de Deus. A suprema preocupação de Maimônides de salvaguardar inviolada a doutrina da absoluta unidade Divina levou-o a devotar grande parte do primeiro dos três livros que compõem o seu “Guia” a um estudo sistemático e exaustivo de todas as expressões e frases antropomórficas existentes na Bíblia, a cada uma das quais só ele, de todos os filósofos judeus, atribui alguma importância metafísica definida. É esta mesma preocupação que determinou a sua insistência na interpretação negativa dos atributos Divinos. A doutrina dos atributos negativos já desempenhara importante papel na história da especularão metafísica, judaica ou não-judaica, antes de Maimônides, mas a sua forma de abordar o assunto é mais elaborada e completa do que a dos seus predecessores, e as suas exigências mais severas. O seu propósito era ensinar a mais elevada e mais absoluta concepção da unidade de Deus, pois qualquer coisa que ficasse aquém disto era, aos seus olhos, pior do que a idolatria. Nenhuma asserção positiva acerca de Deus é permissível. Atribuir a Ele qualquer qualidade positiva é acrescentar qualquer coisa à Sua essência, pondo assim em perigo a Sua absoluta unidade. Isto não significa negar a Deus as perfeições enunciadas pelos vários predicados, mas, sendo idênticas à Sua essência, tais perfeições são incognoscíveis, e como tal não podem ser indicadas senão indiretamente, isto é, negando-lhe todas as perfeições que nos são cognoscíveis (conhecidas). Todas as afirmações referentes a Deus devem, portanto, compreender-se no sentido negativo. Por exemplo, a afirmação de que “Deus vive” significa que Ele não é inanimado. De forma nenhuma implica a mesma ideia de quando dizemos de um homem que ele vive. O atributo da vida aplicado ao homem e declarado de Deus nada tem de comum além do nome. O mesmo se aplica a todos os outros atributos que procuram descrever a essência de Deus, tais como sábio, poderoso, possuído de vontade. Todos devem ser encarados como negações invertidas, levando a confirmar a Sua unidade, porque em negações não está envolvida pluralidade alguma.
A essência Divina, apesar dos atributos predicados de Deus, está para além da compreensão humana. Os atributos, tal como são declarados, não são nem idênticos à natureza Dele nem capazes de definirem-No. Todo o nosso conhecimento de Deus está confinado ao fato de que Ele existe e à compreensão dos efeitos da Sua atividade no mundo, na Criação e na providência. As ações de Deus no mundo são descritas por aquilo a que Maimônides chama de “atributos de ação”, que incluem os atributos morais revelados por Deus a Moisés no monte Sinai. A Divina Providência abrange toda a Criação. Mas existe uma providência especial para aqueles seres humanos individuais que se colocam na relação certa para com Ele, sendo essa providência graduada de acordo com a intensidade e a proximidade desta relação.
A chave para a relação certa com Deus é o Seu conhecimento. Este conhecimento é, em primeira instância, intelectual, e como tal inclui o domínio daquelas ciências físicas e metafísicas – lógica, filosofia, medicina, matemática e astronomia – que conduzem a uma verdadeira percepção do ser e essência de Deus, tanto quanto é dado ao espírito humano atingir. Tal conhecimento serve de elo de comunhão com Ele nesta vida e prepara a alma para a bênção de uma vida eterna com o Criador no Além que, no ponto de vista de Maimônides, é uma vida de bem-aventurado conhecimento.
Aqui Maimônides seguia a linha aristotélica de pensamento que considera a perfeição intelectual o objetivo mais elevado da existência humana. Contudo, apesar da exaltação feita por Maimônides, sob a influência aristotélica, do conhecimento intelectual de Deus, insistiu ainda em outro aspecto da noção do Divino com que o conhecimento intelectual se completa. É o conhecimento do caráter moral e da bondade de Deus que a reflexão constante sobre a Sua providência, ao estender-se a toda a Criação, leva consigo. Este conhecimento, uma vez adquirido, conduz ao amor a Deus. Este amor, porém, não significa o desejo místico de união com Ele, mas a decisão de imitar Suas vias no caminho do amor e da justiça.
Com esta correlação de conhecimento com ação moral, Maimônides liberta-se dos laços que o prendem a Aristóteles e toma posição na base clássica do pensamento judaico que concebe a imitação de Deus como a maior excelência que o homem pode atingir.
Em conformidade com o seu elevado apreço do Conhecimento, Maimônides concorda com o ponto de vista platônico, ou grego em geral, de que a profecia é uma faculdade natural que pode ser adquirida por todos aqueles que se submetam ao treino necessário e possam elevar-se à exigida perfeição moral e intelectual. Isto está em completo contraste com o ponto de vista defendido por Judá ha-Levi, que, como vimos, vê a profecia tal qual uma dádiva especial de Deus ao povo de Israel e sendo condicionada pelo preenchimento de preceitos rituais e residência na Terra Santa. É também contrário ao ensino talmúdico que considera a profecia como um dom especial de certos indivíduos escolhidos por Deus. Contudo, nem aqui Maimônides podia escapar à influência do ponto de vista judaico e temperou a sua aceitação da noção grega com a declaração de que homens que satisfizessem todas as condições podiam mesmo assim ver a profecia ser-lhes recusada pela vontade de Deus.
A concepção de Conhecimento de Maimônides é também a base para a sua interpretação dos mandamentos da Torá. O fim dos mandamentos é a perfeição moral e intelectual do homem. Eles existem não só para regular a conduta humana, mas também para iluminar o homem no seu pensamento e torná-lo acessível às mais elevadas verdades intelectuais e metafísicas relacionadas com Deus e a relação do homem para com Ele. Sendo este o caso, a mera prática dos mandamentos sem uma apreensão intelectual do seu significado não pode conduzir ao mais elevado pensamento e à vida com Deus que este acarreta. Daqui a tentativa de Maimônides, na terceira parte do seu “Guia”, em oferecer explicações racionais para os mandamentos da Torá.
Na sua interpretação, Maimônides demonstra grande originalidade. Muitos deles, na sua opinião, foram destinados a contrabalançar ritos e costumes pagãos que estavam em voga na época da Divina legislação. Um exemplo típico seria o sistema sacrifical que, em certas partes, se destinava a afastar o povo do modo geralmente prevalecente de adoração pagã. Maimônides, na verdade, na sua busca da origem de muitos preceitos, antecipa muitas posições modernas e, como foi com justiça observado, “a sua importância no estudo científico da religião ainda não foi inteiramente compreendida”.
A reverência de Maimônides para com o intelecto humano determinou também a sua atitude perante os milagres. Embora não negue a possibilidade de milagres, tenta na medida do possível reduzir os elementos milagrosos nas Escrituras a processos naturais. Na verdade, pouca importância dá aos milagres como prova da verdade de qualquer religião. A fé – ele afirma – deve repousar na verdade intrínseca, e não em milagres, que podem ser de natureza enganadora.
Foi a mesma reverência pelo intelecto humano que o levou a dar explicações alegóricas à história bíblica do Paraíso, assim como a identificar as anjos mencionados nas Escrituras com forças ou elementos na natureza ou com homens divinamente inspirados. Embora aceitando a existência dos anjos como sendo as “inteligências separadas das esferas” que figuram na cosmologia grega, negava, contra a crença tradicional, que eles viessem à terra sob a forma humana. Da mesma forma, negava a existência de demônios e afirmava que todas as referências a eles feitas no Talmud e no Midrash deviam ser compreendidas simplesmente como expressões figurativas de pragas físicas.
Pela mesma razão, trata as descrições das condições idílicas da era messiânica, retratadas pelos profetas, como metafóricas. A era messiânica, segundo ele, não diferiria materialmente do presente, mas, sim, representaria um tipo mais elevado de sociedade, com padrão no conhecimento da unidade de Deus e na Sua retidão. Para esta consumação, Maimônides reconhecia que o cristianismo e o islamismo tinham um papel importante a desempenhar, preparando o caminho para toda a humanidade abraçar a inteira verdade do conhecimento de Deus com o advento dos tempos messiânicos. Da mesma forma, para ele, as descrições da bem-aventurança do Paraíso e torturas no Inferno, em termos físicos, que aparecem nos Midrashim, são metáforas e meras tentativas para exprimir, sob forma popular, imponderáveis espirituais. A real bem-aventurança do Paraíso consiste na comunhão espiritual com Deus; o verdadeiro sofrimento no Inferno, na alienação Dele.
Maimônides aplicava a mesma reverência pelo intelecto humano na sua concepção do poder de Deus. Os absurdos lógicos, afirmava, estão fora do âmbito da Divina onipotência. Deus não pode fazer de um círculo um quadrado nem fazer uma coisa existir e não existir simultaneamente.
A convicção de Maimônides de que a vida eterna e a bem-aventurança dependem do conhecimento intelectual de Deus levou-o à sua formulação dos princípios fundamentais do judaísmo. A primeira tentativa para formular uma espécie de credo aparece numa passagem mishnáica que nega um quinhão no mundo futuro àqueles que rejeitem a revelação ou a ressurreição (que está associada com a imortalidade), e ao epicurista que não acredita no governo moral do mundo (Mishná San’hedrin 10:1). O caminho indicado por esta Mishná foi seguido por subsequentes gerações de mestres judeus, e é em conexão com esta passagem que Maimônides, no seu “Comentário sobre a Mishná”, formula o seu credo, o qual é diferente dos formulados pelos seus antecessores na medida em que aceita crenças essencialmente derivadas de especulações filosóficas como condição da bem-aventurança eterna.
De acordo com a enumeração de Maimônides, os artigos do “Credo” judaico (Ani Maamin) são os seguintes: (1) Crença na existência de um Criador e na Sua Providência; (2) Crença na Sua unidade; (3) Crença na Sua incorporalidade; (4) Crença na Sua eternidade; (5) Crença em que só a Ele é devida adoração; (6) Crença na palavra dos profetas; (7) Crença em que Moisés foi o maior dos profetas; (8) Crença na revelação da Torá a Moisés, no Sinai; (9) Crença na imutabilidade da Lei revelada; (10) Crença em que Deus é onisciente; (11) Crença na retribuição neste mundo e no outro; (12) Crença na vinda do Messias; e (13) Crença na ressurreição dos mortos.
Os motivos que determinaram a escolha de crenças de Maimônides para inclusão no seu credo tornam-se evidentes ao analisá-las. O seu objetivo era, por um lado, dar relevância a certos conceitos filosóficos a respeito de Deus e, pelo outro, combater as afirmações específicas do cristianismo e islamismo em assuntos de doutrina religiosa.
O “Guia” de Maimônides produziu uma profunda impressão. Foi traduzido para o hebraico duas vezes durante a sua vida e, através destas traduções, exerceu uma tremenda influência sobre o pensamento judaico mesmo fora do mundo judaico de língua árabe. O “Guia” também influiu, através de sua tradução para o latim, sobre os cristãos latinos durante a Idade Média, e não menos sobre Tomás de Aquilo. Na comunidade judaica propriamente dita, o “Guia” de Maimônides tornou-se o texto filosófico adotado pelas classes cultas, especialmente em Provença, onde, sob a influência da forte imigração judaico-espanhola, os judeus haviam chegado a participar na cultura judaico-islâmica. Ainda maior e mais espalhada foi a influência do seu “Credo”, o qual, antes de ter passado um século, se tornara o tema para os poetas da sinagoga, o que levou finalmente à sua incorporação, em duas formas distintas – poesia e prosa – no livro de orações diárias judaico.
Extraído do livro BREVE HISTÓRIA DO JUDAÍSMO, do Rabino Isidore Epstein.
Descrição concisa e inteligente da origem e desenvolvimento dos ensinamentos, práticas, pensamento filosófico e doutrinas místicas da religião e moral judaicas ao longo de 4.000 anos de história dos judeus.



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