Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Acharê extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer
Levítico, Capítulo 18
1 E o Eterno falou a Moisés, dizendo: 2 “Fala aos filhos de Israel, e dirás a eles: Eu sou o Eterno, vosso Deus! 3 Segundo as obras da Terra do Egito, na qual estivestes, não fareis, e segundo as obras da Terra de Canaã, à qual Eu vos levo, não fareis. E não andeis segundo os seus costumes. 4 Os Meus juízos cumprireis, e os Meus estatutos guardareis para segui‑los; Eu sou o Eterno, vosso Deus! 5 E guardareis os Meus estatutos e os Meus juízos, cumprindo os quais o homem viverá por eles – Eu sou o Eterno!
4-5. Os Meus juízos. Os Meus juízos e os Meus estatutos – e somente os Meus – devem regular a sua vida social e moral. Normalmente, a Escritura menciona “estatutos” ou “costumes” antes de “juízos” e outros tipos de mandamentos. Aqui, no entanto – na introdução aos “estatutos” mais sagrados e importantes –, a Escritura menciona os “juízos” primeiro! Isso parece nos ensinar que a ordem social também se apoia na ordem moral. Os juízos sobre os quais Deus estabelece Sua sociedade humana só podem ser cumpridos por pessoas cuja concepção e nascimento, educação e vida, estão sob a ordem e orientação dos estatutos de Deus referentes à moralidade da vida conjugal e da vida familiar.
Foi dito no Torat Cohanim que os juízos são “coisas escritas na Torá que, se não estivessem escritas, deveriam ser escritas”, enquanto estatutos são “aquelas coisas em relação às quais o mau instinto retruca e em relação às quais as nações retrucam” – isto é, coisas contrárias à nossa natureza sensorial e ao mundo não judaico.
A verdade é que tanto os juízos quanto os estatutos são igualmente expressões da sabedoria e justiça Divinas. Porém, uma vez que os assuntos e relacionamentos regulados pelos juízos se encontram no âmbito das relações sociais entre pessoas e objetos, eles são facilmente captados pela mente humana no tocante à sua essência, justiça e propósito na sociedade, o que não é o caso em assuntos e relacionamentos regulados pelos estatutos. Consideremos, por exemplo, a natureza física e espiritual da psique humana, a característica da vida sensorial que se desenvolve a partir dela e sua relação com o propósito espiritual e moral do homem. Essas coisas não são claras para o homem e são reveladas apenas para Deus, que é o seu Criador. Portanto, os motivos por trás dos juízos são facilmente compreendidos, e por outro lado, os estatutos parecem sem sentido ou sem propósito – de acordo com o julgamento superficial de pensadores judeus e não judeus.
Por essa razão, grande importância é atribuída à observação do Torat Cohanim, de que o versículo 4 primeiramente liga o cumprimento aos juízos e a guarda aos estatutos, enquanto o versículo 5 une posteriormente os juízos aos estatutos e confere guarda e cumprimento a ambos. Esclareçamos as nossas palavras:
Acima, mencionamos a opinião dos nossos sábios a respeito da guarda da Torá (ver os comentários sobre Gênesis 26:5 e Êxodo 15:26). O dever inicial da guarda é o “estudo” – estudar a Torá com devoção e entendê-la de forma clara e abrangente, pois quando a Torá é abandonada num canto e não é estudada e compreendida, falta-lhe a primeira condição para o seu cumprimento.
À primeira vista, poderíamos pensar que o estudo dos juízos é algo menos essencial, e talvez totalmente desnecessário. Afinal de contas, eles são os mandamentos chamados de “racionais” – que o homem reconhece, depois de alguma reflexão, que são evidentes. Por outro lado, deve-se ter muito cuidado com o cumprimento dos juízos (e talvez apenas esse cumprimento – sem estudo – seja suficiente), visto que o dano social causado pela negligência em seu cumprimento é óbvio.
No tocante aos estatutos, o total oposto é verdadeiro. À primeira vista, fica claro que o estudo dos estatutos é uma necessidade absoluta, pois eles são os mandamentos chamados de “dogmáticos” – sua origem é apenas a revelação de Deus, e a mente humana nunca poderá revelar as suas razões. Por outro lado, haverá aqueles que se contentarão em estudar os estatutos, mas não serão cuidadosos em seu cumprimento, pois o benefício proveniente disso e o prejuízo causado pela negligência em praticá-los não são tão claros.
Portanto, de fato, a Escritura diz primeiro “Os Meus juízos cumprireis” (versículo 4), pois, até certo ponto, o homem é capaz de cumprir os juízos da justiça Divina mesmo antes de ter aprendido as leis reveladas pelos Céus. Toda pessoa cuja realidade interior não foi corrompida possui uma consciência geral de justiça, e seu raciocínio lógico lhe dita as obrigações que uma pessoa tem em relação a seus semelhantes. Essa consciência geral de justiça também é a voz de Deus. No entanto, esses juízos, somente dos quais brotará a salvação para a sociedade humana – o juízo como Deus o vê – requerem um estudo da palavra de Deus revelada ao homem, não menos do que os estatutos – “E guardareis os Meus estatutos e os Meus juízos”.
Uma grande distância separa o juízo de Deus de todos os juízos que decorrem da criação política humana. Esses últimos decorrem principalmente de considerações superficiais que visam à utilidade pública. Frequentemente, nada mais são do que restrições legais aos direitos humanos – moderadas e ponderadas. Esses juízos buscam manter a coletividade do público social por meio da força motriz do utilitarismo. Por outro lado, “verdadeiros são os julgamentos do Eterno”, que representam a verdade absoluta das coisas e das relações entre elas, e derivam da essência intrínseca das coisas. Portanto, são “todos igualmente justos” (Salmo 19:10) – pois eles não reduzem alternadamente os direitos de uma pessoa em benefício de seus semelhantes, mas sempre agem com justiça para com todas as pessoas. Eles conferem a cada pessoa o mesmo status e exigem dela o mesmo esforço condizente com sua essência e condição. O juízo de Deus nada mais é do que a implementação prática da verdade. Portanto, é dito nos Salmos, em relação às nações – em contraste com o povo da Torá de Deus –, que não apenas os “estatutos”, mas também “Seus juízos elas desconhecem” (ibid. 147:20).
Da mesma forma, embora a Escritura aqui (versículo 4) diga primeiro “e os Meus estatutos guardareis” – ou seja, que os estatutos requerem “guarda” primeiro, um estudo aprofundado e constante, pois, caso não tivessem sido revelados pela palavra de Deus, nenhum homem teria sabido deles –, a Escritura acrescenta imediatamente “para segui-los”, pois o propósito da guarda e do estudo é o cumprimento na prática. “A teoria não é o principal, mas sim, a prática” (Ética dos Pais 1:17), ou, conforme a linguagem do Torat Cohanim: “‘Guardareis para segui-los’ – não coloque o estudo como teu propósito, mas a ação.” E ainda: “O estudo tem grande valor porque conduz à ação” (TB Kidushin 40b). Além disso, a pessoa adquire o verdadeiro conhecimento da Torá apenas se estuda com o propósito de cumprir: “‘Há plena compreensão para todos que os praticam’ (Salmo 111:10) – não foi dito ‘para todos que os estudam’, mas ‘para todos que os praticam’” (TB Berachót 17a). A compreensão do que é “bom”* é alcançada apenas por aqueles que não apenas estudam a Torá Divina, mas também a cumprem.
A Escritura (versículo 5) então une os juízos aos estatutos e requer a guarda e o cumprimento para ambos, pois somente se ambos iluminarem o espírito e forem manifestados na vida do indivíduo e da sociedade é que o propósito final – a perfeição humana – poderá ser alcançado.
Também foi dito no Torat Cohanim, em relação ao estudo da Torá: “‘Para segui-los’ – faça deles o principal e não faça deles algo secundário; ‘para segui-los’ – que a sua argumentação seja baseada apenas neles; que você não misture neles outros elementos do mundo; que você não diga: ‘aprendi a sabedoria de Israel, agora aprenderei a sabedoria das nações do mundo’; por isso foi dito: ‘para segui-los’ – você não tem permissão para se livrar deles.” Em outras palavras, o propósito de seus esforços deve estar “neles”; eles devem ser o seu objetivo, a coisa absoluta, e não devem se tornar secundários a outro elemento principal ou condicionados à outra coisa. Sua mente deve absorvê-los e produzir por seu intermédio; vocês estão proibidos de misturar neles elementos estranhos. Não digam a si mesmos: já aprendi a sabedoria de Israel, adquirirei agora também a sabedoria das nações do mundo. Portanto, foi dito: “para segui-los”, você está proibido de se retirar do âmbito deles.
A frase de abertura desse trecho – “faça deles o principal e não faça deles algo secundário” – parece ter como objetivo nos proteger de mal-entendidos, para que não entendamos – com base na continuação do texto – que devemos fechar os olhos completamente para toda e qualquer sabedoria adquirida de fontes não judaicas, ou que somos obrigados a abster-nos de qualquer sabedoria que não esteja diretamente relacionada com a Torá. Afinal, as palavras “faça deles o principal e não faça deles algo secundário” dão a entender que temos permissão para estudar também outras áreas da sabedoria – desde que façamos da Torá nossa ocupação principal, e que a sabedoria que adquirimos da Torá seja considerada absoluta e certa.
Outras sabedorias serão consideradas ferramentas de auxílio, e elas devem ser estudadas apenas se forem capazes de ajudar no estudo da Torá, e devem estar subjugadas a esse estudo como algo secundário em relação a algo principal. A veracidade da Torá deve permanecer para nós como algo absoluto e independente, e um parâmetro para medir todos os resultados obtidos de outros ramos da sabedoria. Somente aquilo que é consistente com a verdade da Torá pode ser aceito por nós como verdade. Devemos colocar a Torá como a única meta dos nossos esforços, e tudo que percebemos e criamos em nossas mentes deve ser avaliado do ponto de vista da Torá e seguir os seus caminhos. Consequentemente, não aceitaremos ideias que sejam inconsistentes com essa visão, não aceitaremos conclusões baseadas em outras suposições e não as misturaremos nas palavras da Torá.
A Torá não deve ser vista como equivalente às outras ciências, como se a Torá fosse apenas um ramo entre os outros ramos da sabedoria. Não deixaremos que passe por nossa mente a ideia de que, assim como há uma sabedoria e verdade judaicas, também há sabedorias e verdades não judaicas equivalentes a elas em sua importância e autoridade, e que depois de termos absorvido suficientemente a sabedoria da Torá, nos voltaremos com esse mesmo espírito para a sabedoria das nações do mundo. Se fizermos isso, e confrontarmos em nossas mentes sabedoria ao lado de sabedoria e a verdade ao lado de verdade, não teremos crenças e opiniões uniformes e nos perderemos devido à inconsistência das nossas ideias e concepções.
Em vez disso, assim como temos certeza de que a Torá veio de Deus e de que todos os outros ramos da sabedoria descobertos pelos seres humanos são apenas produtos humanos, contendo os resultados da compreensão limitada do homem da essência das coisas, da mesma forma temos certeza de que existe apenas uma verdade e apenas uma sabedoria que pode nos servir como parâmetro e escala para avaliar todas as outras sabedorias, válidas apenas sob esta condição.
Portanto, mesmo quando estudamos e nos engajamos em outras sabedorias, nunca devemos abandonar o fundamento da Torá ou nos desviar dos seus objetivos. Todos os nossos esforços mentais devem ser dedicados às palavras da Torá – pois “você não tem permissão para se livrar deles”.
Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Acharê extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.