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Parashá Semanal - Leitura da Torá

O amanhecer de uma redenção

Brevíssima coletânea de comentários sobre a porção LECH-LECHÁ extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.

 

Gênesis, Capítulo 15

5 E o fez sair para fora e disse: “Olha para os céus e conta as estrelas, se podes contá-las.” E disse-lhe: “Assim será tua descendência!” 6 E (Abrão) colocou toda sua confiança no Eterno, e (Deus) lhe considerou isso um ato de justeza. 7 E disse a ele: “Eu sou o Eterno, que te tirei de Ur dos Caldeus, para dar-te esta terra por herança.” 8 E disse: Senhor Eterno! Pelo que saberei que hei de adquiri-la?  9 E disse a ele: “Toma para Mim três novilhas, três cabras, três carneiros, uma rola e um filhote de pombo.” 10 E Ele tomou tudo isto, partiu-os ao meio e pôs cada parte diante da outra, e o pássaro não partiu.

  1. Olha para os céus e conta as estrelas. Caso a mensagem Divina se referisse apenas ao número incontável das estrelas, não haveria necessidade de fazer Abrão sair para vê-las, uma vez que sua imensa quantidade é um dado conhecido por todos, de modo que a utilização das estrelas como símbolo de sua descendência também deve representar algo a partir de suas características e qualidades, para além de sua numerosidade. Isso é válido em todos os casos em que o ditado Divino é acompanhado de um sinal ilustrativo, sempre ensejando a ampliação e o aprofundamento da mensagem transmitida.

Neste caso, Abrão havia desistido de ter filhos, e por isso não via sentido em ser abençoado, momento em que Deus fê-lo sair para ver as estrelas e refletir sobre um mundo que é regido por uma ordem completamente diferente da ordem terrena. Na terra, não podemos ver algo que tenha sido criado diretamente por Deus, já que tudo que enxergamos foi criado a partir de outras criaturas em seu desenvolvimento casual e natural. Logo, do ponto de vista da terra, onde tudo é regido de acordo com regras estabelecidas, a desistência de Abrão era tão entendível quanto incontestável, pois, de fato, não havia qualquer razoabilidade que ele viesse a ter filhos. Contudo, do ponto de vista dos céus que Deus o ordenou observar, a criação de Deus salta aos olhos, e Abrão não tinha por que desistir. Desde então, qualquer pessoa que queira enxergar a forma de uma realidade criada por Deus sem intermediários deve observar os céus e as estrelas. Em resumo, foi esta a mensagem de Deus a Abrão: “Abandona teus cálculos de ordem natural e observa a ordem do mundo dos astros.”

Assim será tua descendência. Assim será teu povo: como a obra que é realizada diretamente pelas mãos de Deus, e não como resultado de causas naturais, mesmo que seja em oposição a todos os condicionamentos da natureza. No caso, Abrão ficaria mais trinta anos sem ter filhos, perdendo suas últimas chances de ter filhos por vias regulares e vendo a sua esperança se tornar, cada vez mais, motivo de zombaria. Apenas então, quando “todo aquele que ouvir, se rirá de mim” (adiante 21:6), nasceria o primeiro filho do povo de Deus. Portanto, nada reflete melhor a existência de Israel do que a imagem das estrelas, pelo fato de terem sua existência emanadas diretamente de Deus. Mesmo aqueles judeus que estão nos rincões do mundo, desprezados e rebaixados, parecem-se com as estrelas e estão vinculados diretamente a Deus. Do meio de toda e qualquer desgraça, eles permanecem judeus, seguem Seus caminhos e, assim, obtêm liberdade, elevando-se por sobre as forças da natureza e postando-se sob a Providência Divina que os “chama por seu nome”.

  1. colocou toda sua confiança (veheemin) no Eterno. O fato de estar escrito veheemin, ao invés de vaiaamin (e acreditou) indica que a crença de Abrão era continuada e não decorria das palavras que ele recém escutara de Deus. Como sabemos, Abrão viveu toda sua vida regido por uma fé irrestrita, como já havia declarado acima (versículo 2) ao usar a expressão “Senhor Eterno”, conforme explicamos. Agora, tendo sido agraciado com uma fala de Deus sobre o futuro de seu povo, Abrão reviveu e renovou a sua fé.

A emuná (fé) é um dos pilares do judaísmo. Vale ressaltar, portanto, que a definição usual da fé como “a crença nas palavras do próximo” esvazia o conceito de seu real significado. A fé como um mero ato intelectual, ou como uma simples opinião, é algo que todos praticam, acreditando que suas crenças são verdadeiras e baseando-se nas promessas e nas conclusões que tomam a partir de outras pessoas. Este entendimento da fé provocou que seu conceito se tornasse idêntico ao conceito da religião como um todo, sendo a fé um dos princípios da religião: a definição da pessoa religiosa é aquela que “acredita” em fundamentos que não podem ser apreendidos pelo intelecto, o que faz com que não há uma diferenciação entre o que é fé e o que é religião. Desta forma, a religião foi alienada da vida, passando a ser uma lista de princípios a serem acreditados e um sistema de declarações religiosas que são requeridas a quem desejar ter o passe de entrada ao “mundo vindouro”.

De certo modo, podemos desfazer esse desentendimento e definir a crença intelectual no que é dito por outrem como uma “crença para com alguém”, enquanto a crença de Abrão – e a crença religiosa como um todo – é a “crença em alguém”. Mais do que submeter a sua própria opinião à opinião de outrem, a “crença em” faz com que a pessoa confie e se assegure de Deus em seus pensamentos e em seus atos, fortalecendo-se Nele e seguindo Seus passos, deixando de lado sua ansiedade e sua angústia. Como a matéria na mão do artesão, o crente se entrega completamente a Deus. Assim era a crença de Abrão.

considerou isso um ato de justeza. A palavra tsedacá (ato de justeza) mencionada no versículo deriva do significado de tsédec, que é satisfazer, acalmar, cumprir. Em outras palavras, dar ao próximo o que ele necessita, fazer e querer o bem. Tsédec é algo que conserta o mundo e fomenta a felicidade geral e particular, sendo o ápice e o propósito final da regência Divina no mundo. No presente caso, Abrão acreditou plenamente em Deus e em Sua bondade, apesar de sua infertilidade, e Deus considerou isso como um ato de justeza. Ou seja, Abrão atingiu sua perfeição, consertando o mundo à sua maneira, ao dar um exemplo a todos os seres humanos sobre como se deve acreditar em Deus: entregando-se incondicionalmente nas mãos de Deus em prol de um futuro que lhe fora prometido, mesmo sem enxergar e sem entender como tudo isso seria possível. Enquanto os descendentes de Abrão cumprem sua obrigação ao guardar os 613 mandamentos da Torá, Abrão possuía apenas a missão de acreditar e entregar toda sua vida aos desígnios de Deus e à Sua educação. Sua tarefa não era fácil, estando sozinho e isolado, e sem ter vivenciado ou testemunhado previamente a atuação da Providência Divina. De toda forma, Abrão cumpriu sua atribuição com excelência e fundou a base de um futuro que logo lhe seria revelado.

  1. que te tirei de Ur dos Caldeus. A presente comunicação de Deus com Abrão culminará adiante (versículo 13) com a notícia de que “tua descendência será peregrina em terra que não lhe pertence”. Como um remédio à amargura daquela diáspora, Deus mencionou logo de início que “Eu sou o Eterno, que te tirei de Ur dos Caldeus”, deixando claro que a saída do Egito também se daria pela intervenção direta de Deus, tal qual foi a retirada de Abrão de sua cidade natal. Desta forma, por todo o tempo que os descendentes de Abrão estivessem no Egito, eles poderiam se inspirar na história de salvação de seu patriarca.

Com efeito, a saída de Abrão de Ur dos Caldeus não foi uma simples migração. Segundo os nossos sábios (Bereshit Rabá 38:13), Abrão sofreu uma tentativa de assassinato por parte de um rei tão poderoso como Nimrod, e de acordo com a nossa tradição, ele foi atirado numa fornalha ardente da qual saiu ileso apenas por milagre. Neste sentido, é plausível supor que a palavra Ur, cujo significado é “fogo”, aluda a esse episódio, tornando a mensagem do versículo ainda mais incisiva: “Eu sou o Eterno, que te tirei do fogo dos Caldeus.”

Eventualmente, não foi por acaso que a escravidão do Egito tenha sido representada por um “forno fumegante e uma tocha de fogo” (versículo 17) no ritual do “pacto entre os pedaços”. Ou seja, na reprodução simbólica do que viria a ser a diáspora, ficou externada a mensagem de que, do mesmo modo que a fornalha de fogo serviu como um teste e um desafio à fé de Abrão, a diáspora do Egito serviria para refinar e forjar o povo judeu.

  1. Pelo que saberei que hei de adquiri-la? O sentido literal do versículo pode dar a impressão de que Abrão perguntou a Deus “como poderei saber que herdarei a terra?”. Entretanto, conhecendo a trajetória de vida de Abrão, toda ela permeada pela fé e pela crença, não é razoável supor que Abrão estava por pedir a Deus que emitisse um sinal que evidenciasse a Sua promessa. Do mesmo modo, não há como interpretar que Abrão perguntou a Deus “em mérito de que herdarei a terra?”, pois certamente essa sentença estaria formulada de outra forma.

Na verdade, a pergunta de Abrão foi esta: “Como hei de saber que chegou a hora de conquistar a terra?”. O surgimento desta dúvida se deu pelo fato de que, até a presente passagem, Deus havia prometido que daria a terra à descendência de Abrão, mas ainda não havia mencionado que seus filhos a receberiam “por herança”. Em hebraico, o verbo lirósh (herdar) não é um verbo exclusivamente passivo, mas também denota o ato de quem se apodera de algo, e não faltam exemplos desta acepção do verbo lirósh na Escritura. Sendo assim, cabia entender qual seria o sinal que era chegada a hora de conquistar a Terra Prometida.

Além disso, a confiança de Abrão estava em alta, uma vez que ele acabara de sair de uma vitória triunfal contra os quatro reis que colonizavam o vale do Jordão, ressaltando-se, ainda, que Abrão não recebera uma ordem expressa de Deus para participar daquela guerra, tendo-o feito apenas por ter sentido que era essa a sua obrigação. É provável que a experiência desta guerra levara Abrão a acreditar que a conquista de Israel se daria nos mesmos moldes.

Em resumo, com essa pergunta, muito antes de pedir uma garantia à palavra de Deus, Abrão expressou a fé que lhe transbordava e que excedia à sua existência.

  1. E disse a ele. O cerne da resposta a Abrão veio adiante (versículos 13-16), quando Deus lhe informou que ele não herdaria a terra, mas sim, a sua descendência, e não aquela imediatamente posterior a ele, pois sua descendência ainda passaria por um longo período de duro e amargo exílio, no qual viveriam por três gerações como estrangeiros desprovidos de pátria e como escravos. Somente a quarta geração retornaria à terra.

Era este o tempo necessário para que a corrupção dos habitantes locais atingisse seu grau máximo e causasse a sua própria extinção. Na linguagem do versículo (16), “porque não se completou a medida do pecado do Emoreu, até aqui”. Devido à busca desenfreada pelos prazeres supérfluos, estes povos de certo iriam preencher a sua quota de iniquidade. Alternativamente, o povo que herdaria aquela terra iria se desenvolver em meio à escravidão e ao sofrimento, a fim de se tornar dignos de tal regalo.

Ou seja, se Abrão pensava que iria participar de todos esses acontecimentos, uma vez que a aliança fora firmada com ele, Deus o informou que nada disso ocorreria em seu tempo, pois “Tu, porém, irás a teus pais em paz” (versículo 15). Na prática, tudo isso apenas foi revelado a Abrão para que ele pudesse incutir coragem e esperança em seus descendentes, e, de fato, foi por causa desta visão que os judeus foram capazes de ansiar pela redenção mesmo nos piores momentos de diáspora e escravidão.

De um modo sui generis, esta revelação suplantou os limites das palavras, o meio mais usual para se transmitir uma mensagem, sendo fincada no coração de Abrão por meio de símbolos, sinais e representações. Conforme o versículo passa a narrar, Deus propôs a realização do “pacto entre os pedaços” pelo qual Abrão vivenciaria, por meio dos diferentes milagres realizados, o medo e a angústia de uma noite interminável e a imensa alegria de acompanhar o amanhecer de uma redenção. Deste modo, as ideias de diáspora e redenção deixaram o plano abstrato para ganhar vida e tomar corpo, vindo a ser transmitidas não apenas como uma profecia sobre o futuro, mas como uma verdade que já fazia parte da realidade.

Após esta introdução, cabe agora desvendar a relação entre os símbolos e suas representações.

Toma para Mim três novilhas. De acordo à forma literal com que essa orientação foi transmitida a Abrão – “Toma pra mim novilha meshuléshet…” –, aprendemos que Abrão foi ordenado a formar três grupos que contivessem, cada um deles, uma novilha, uma cabra e um carneiro. Como veremos a seguir, todos estes animais foram abatidos, cada grupo representando uma das gerações que passariam pelas provações e privações da escravidão. De forma detalhada, cada um desses animais corresponde e representa uma das características da personalidade humana suspensas no período da escravidão.

novilhas. Sendo parte da família bovina, a novilha representa aqui o animal que se encontra a disposição do seu dono para ser usado em sua força laboral, numa expressão de vigor e energia. Neste sentido, o touro era o animal sacrificado pelas pessoas públicas que atuavam no serviço a Deus, como líderes, sábios e sacerdotes que houvessem cometido um pecado e precisassem de expiação. Entretanto, diferentemente do touro que atingiu o ápice de seu desenvolvimento, a novilha simboliza a força que ainda está por se desenvolver, similar ao estágio incipiente em que se encontrava o nosso povo. Tal qual aquelas novilhas, a força de atuação daquele jovem povo estava por ser sacrificada por três gerações seguidas.

cabras. No universo dos sacrifícios, as cabras, e o rebanho em geral, representam a forma como os povos e as pessoas se relacionam com Deus enquanto Líder e Pastor, conforme expresso em diversos versículos da Escritura. Em vários casos, a cabra sacrificada representava o caráter nacional de Israel. Não obstante, em vários outros, o rebanho era sacrificado pelos indivíduos que não atuavam como representantes do público. Em todo caso, a representação da cabra e do bode tem a ver com a força e a independência do bode, os quais se expressam pelo seu nome – êz (bode) tem as mesmas letras de óz (força). Ou seja, o bode se submete à vontade de seu dono e segue os passos de seu pastor, mas é teimoso e renitente com todos os demais, e por isso ele representa o valor da pessoa capaz de se indignar e se opor, de ser leal ao seu dono e de ser irredutivelmente inseduzível. É de acordo com esta lógica que o bode era oferecido como sacrifício de expiação pelo pecado daquele que não se cuidou e não se deteve num momento de distração ou de desejo. De toda forma, o sacrifício do bode representava aqui a supressão do senso de independência e soberania que se abateria sobre o nosso povo no período da escravidão.

carneiros. O carneiro é aquele que chegou à maturidade e conquistou uma ascendência sobre seus pares. Por isso, ele simboliza os abastados que possuem posses e influência. Por esta razão, ele era oferecido como sacrifício por quem cometesse um pecado relacionado a bens materiais, bem como por quem se excedia em seus direitos e privilégios, inclusive por quem incorria no crime de prevaricação. O carneiro, então, representa o estado de quem é desigual, por suas posses ou por sua posição na sociedade. Em nosso caso, o abate de três carneiros representava o arrebatamento das posses e demais direitos que acorreria com Israel no período de sua diáspora.

uma rola e um filhote de pombo. No próximo versículo, estas aves são chamadas pelo nome mais genérico de “pássaro”, que é o protótipo das aves puras na Escritura. Diferente das aves predadoras cujo sinal mais marcante são suas longas unhas, o pássaro é caracterizado principalmente por suas penas, e apesar de não ser forte e de ser incapaz de se opor e de se rebelar, o pombo consegue escapar do domínio humano por sua aptidão para voar. Neste significado, o pássaro representa o povo de Israel, limitado em força, mas abundante em liberdade. Nos sacrifícios, o pombo é oferecido pela pessoa destituída de bens e direitos, a quem nada resta além de sua existência. Alternativamente, os pombos também são oferecidos por quem sai de um estado de impureza, representando a recuperação daquele que retoma sua vitalidade e liberdade. Em nosso caso, os pássaros não foram abatidos, representando assim o último recurso que o nosso povo conseguiu manter naquela situação tão adversa para que pudesse voltar a viver em liberdade.

  1. partiu-os ao meio. Abrão dispôs todos estes animais diante de Deus, que então os cortou ao meio – e a sequência dos versículos deixa claro que o sujeito da presente sentença é Deus, e não Abrão. Embora este ato tenha representado a cessação da força, da independência e dos direitos dos judeus, conforme explicamos, ele simbolizou sobretudo o medo da morte que se abateria sobre aquelas três gerações.

e pôs cada parte diante da outra. As partes foram acomodadas uma diante da outra como se quisessem se reunir novamente, algo que viria a acontecer posteriormente quando (versículo 17) “um forno fumegante e uma tocha de fogo passaram por estas metades”. Esse fogo purificou, iluminou e reuniu as partes que até então estavam separadas.

e o pássaro não partiu. Como adiantamos, Deus não quebrou a força interna que possibilita que uma pessoa se alce e supere as dificuldades e os sofrimentos que se apresentam em seu caminho. Ou seja, mesmo nos momentos em que os judeus estiverem expatriados e desterrados, escravizados e torturados, isolados e presos, eles ainda hão de se manter esperançosos, prontos e afeitos à redenção.

Torá Interpretada - Editora Sêfer

 

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção LECH-LECHÁ extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.

 

 

 

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