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Parashá Semanal - Leitura da Torá

A queda espiritual da humanidade

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Bereshit extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer

 

Gênesis, Capítulo 6

1 E foi quando o homem começou a se multiplicar sobre a face da terra e a nascerem-lhe filhas, 2 viram os filhos dos senhores que as filhas do homem eram formosas, e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram. 3 E o Eterno disse: “Meu espírito não será para sempre o juiz do homem, porque ele também é carne, e por isso os seus dias serão 120 anos.” 4 Os gigantes estavam na terra naqueles dias, e também depois, quando conheceram estes filhos dos senhores as filhas do homem, e lhes deram filhos; estes são os valentes que sempre houve, homens de renome. 5 E o Eterno viu que era grande a maldade do homem na terra, e que toda imaginação dos pensamentos do seu coração era todo dia exclusivamente má. 6 E o Eterno Se arrependeu de ter feito o homem na terra e Se afligiu em Seu coração. 7 E o Eterno disse: “Farei desaparecer o homem que criei de sobre a face da terra – desde o homem até o animal, o réptil e a ave dos céus, porque Me arrependi de os haver feito.” 8 Mas Noé achou graça aos olhos do Eterno.

 

1. E foi quando começou o homem a se multiplicar sobre a face da terra. Até o tempo em que a humanidade passou a se multiplicar e a ocupar cada vez mais a extensão da terra, os seres humanos precisavam se casar e se reproduzir com aqueles que estavam à disposição. A partir de um determinado momento, cada pessoa passou a ter a prerrogativa de escolher com quem gostaria de se relacionar e formar a sua família. Neste contexto, o presente versículo inicia um relato que vem explicar o que motivou a acentuada queda espiritual que a humanidade experimentou naquele período: a contínua ocorrência de casamentos entre os filhos dos senhores que vinham da linhagem de Shet com as filhas dos homens que vinham da linhagem de Caim.

2. viram os filhos dos senhores que as filhas do homem eram formosas. Conforme mencionado no capítulo anterior, a humanidade se encontrava dividida entre as linhagens dos filhos de Caim e a dos filhos de Shet. Enquanto os filhos de Caim tentavam construir as suas vidas exclusivamente à base do trabalho e da inovação tecnológica, apartando-se completamente de Deus e da espiritualidade – um caminho que culminou numa profunda resignação e na falta de qualquer rumo –, os filhos de Shet estavam condicionados desde sempre a restaurar o estado degradado em que a humanidade se encontrava. Por isso, todas as distinções originais do ser humano foram mencionadas no início do relato das gerações de Shet (acima 5:1-3): “imagem”, “semelhança”, “bênção” e “adám” (ser humano), sendo observado ainda que (5:2) “macho e fêmea os criou”, ressaltando que todas as distinções do ser humano eram comuns tanto aos homens quanto às mulheres.

No entanto, a elevação espiritual dos filhos de Shet não era forte nem constante o suficiente para que pudessem suportar impunemente a união com as filhas dos descendentes de Caim que, como sabemos, passavam por um rápido processo de apagamento da Divindade em suas vidas. Todavia, os filhos de Shet não se atentaram a isso na hora de eleger uma esposa e colocaram os seus olhos apenas no quesito da beleza, negligenciando o futuro de seus filhos, que haveriam de crescer sob a tutela dessas mulheres. Com a sucessiva repetição de matrimônios desse tipo, um problema que inicialmente poderia ser contornado passou a se avolumar a tal ponto que as características dos filhos de Shet acabaram se perdendo em meio à absorção que tiveram na descendência dos filhos de Caim.

3. E o Eterno disse: “Meu espírito não será para sempre o juiz do homem, porque ele também é carne.” Em reação ao que se passava com os seres humanos, Deus declarou que o Seu espírito não exerceria para sempre o papel de “juiz do homem” – a voz Divina que julga e discerne dentro da existência humana. Embora essa voz Divina seja capaz de exercer uma enorme influência sobre o ser humano, ela também pode acabar sendo corrompida e enfraquecida, deixando seu lugar à força dos sentidos sensoriais que passam a dominar toda a existência humana. Assim, quando Deus viu que os filhos da linhagem espiritual escolhiam as suas mulheres sem o arbítrio de qualquer escala de valores, Ele decidiu que haveria de fixar um prazo e um limite para que esse embate fosse travado dentro do ser humano “porque ele também é carne”, possui os seus instintos e impulsos, tem um corpo que se desperta aos prazeres materiais e que renega o espírito Divino. Por tudo isso, essa batalha não poderia ser tão prolongada, “e os seus dias serão 120 anos”

4. Os gigantes estavam na terra naqueles dias, e também depois. A expressão nefilim (“que caíram”) que a Torá empregou neste versículo se refere a um grupo de seres de enormes dimensões, que ainda restavam na época da entrega da Torá e que eram chamados de “gigantes”. Como a Torá informa, esses gigantes eram seres comuns e habituais na era antediluviana. Com efeito, a linhagem de Caim, que não continha qualquer fundamento espiritual, alcançou um desenvolvimento corpóreo fenomenal, sendo esses gigantes os seus maiores expoentes.

Voltando ao tema da junção matrimonial que acontecia entre as linhagens de Caim e Shet, caso essa união fosse bem-sucedida, o fundamento espiritual dos pais prevaleceria sobre o fundamento material das mães, canalizando-o para o serviço Divino, gerando gigantes espirituais, inclusive pelo fato de o trabalho do espírito também requerer uma força corporal. No entanto, como o nosso versículo ressalva, “Os gigantes estavam na terra naqueles dias, e também depois”, ou seja, os gigantes continuaram a ser os mesmos gigantes do âmbito material, tendo o lado físico prevalecido sobre o lado espiritual em tudo que resultou da união e da síntese – que não aconteceu – entre essas duas linhagens.

estes são os valentes. A própria existência destes gigantes, valentes e varões de renome, já serve para ilustrar como a união entre as duas linhagens não significou um avanço para a humanidade, mas sim, uma decadência espiritual que se deu a largas passadas e que trouxe a semente da revolta e da profanação do sagrado. Apenas alguns entre aqueles gigantes se ergueram espiritualmente frente a seus pares, mas estes compuseram uma exígua minoria.

5. era grande a maldade do homem na terra. Deve-se perguntar se as palavras “maldade do homem” se referem às ações maldosas do homem, ou então, ao resultado de suas ações – a degradação de todo o mundo e o rompimento da harmonia e da paz que haviam até então. O senso pende à segunda opção, de modo que este versículo pode ser relido da seguinte maneira: quando Deus enxergou dos céus o estado da terra, o presente já estava arruinado acima de qualquer medida, e quanto ao futuro, “toda imaginação dos pensamentos do seu coração era todo dia exclusivamente má”.

e que toda imaginação dos pensamentos do seu coração. A palavra iêtser é muito comumente traduzida como “impulso” ou “instinto”, como se o ser humano tivesse uma força dentro de si que o impelisse e o estimulasse a fazer o mal. Esta é a fonte daquela crença que desalenta as pessoas com a pregação de que, salvo algumas exceções, as pessoas estão fadadas ao fracasso moral e espiritual. Desta forma, a palavra iêtser foi amarrada a um significado que ata os braços da humanidade e que cerra as suas bocas e os seus argumentos. Mas não há nada que possa desmentir melhor esta ideia do que o próprio estudo morfológico da palavra iêtser.

Em primeiro lugar, a palavra iêtser não indica uma sujeição forçada; seu radical vem de tsurá (forma) e, em sua conjugação, iêtser não representa aquele que dá a forma, e sim, aquele que recebe a forma. Para entender o contexto do nosso versículo, o coração do homem pensa os seus pensamentos, costura-os uns aos outros com as suas associações e correlações e, ao cabo desse processo, forma as suas formas, ou seja, as ideias e as imaginações. E de fato, tanto para o bem quanto para o mal, as pessoas realmente seguem as imaginações formadas e forjadas em seus corações. O problema residia no fato de que “toda imaginação dos pensamentos do seu coração era todo dia exclusivamente má”. Assim, o futuro se mostrava muito comprometido.

Para além da questão morfológica acerca da palavra iêtser, a construção sintática do versículo que diz “todo o iêtser” indica que não está se tratando do “mau instinto”, uma vez que ele é apenas um, não cabendo ao mesmo o emprego do artigo “todo” a antecedê-lo. Do mesmo modo e por motivos óbvios, não caberia dizer sobre o “mau instinto” que ele era “exclusivamente mau”.

Enfim, em cada uma de suas ambições e aspirações, aquela geração não possuía sequer um elemento positivo, sendo esta uma prática e uma tendência constante em suas vivências, em cada momento e aspecto de suas vidas.

6. E o Eterno Se arrependeu de ter feito o homem. Há quem pergunte como pode se dar o arrependimento de Deus, uma vez que está escrito (Números 23:19) que “Deus não é homem para que minta, nem é filho de homem para que Se arrependa”. No entanto, parece que devemos diferenciar entre dois tipos de arrependimento: aquele que é gerado dentro do sujeito daquele que se dá por motivos externos a ele. Neste caso, como as pessoas passaram a se portar de uma forma que não estava a contento, Deus Se arrependeu do resultado de Sua criação.

e Se afligiu em Seu coração. Deus sentiu dor em Seu coração devido ao profundo amor que nutre pela humanidade. Naquele momento, Deus viu por bem suspender aquele amor a fim de preservar a ordem natural na terra, mas essa suspensão não foi suficiente para que Ele deixasse de sentir dor e sofrimento em Seu coração.

Sobre o antropomorfismo deste versículo, em que algumas características eminentemente humanas são atribuídas a Deus, como arrependimento e aflição, como acontece em vários versículos, os interpretadores e comentaristas da Torá se empenharam largamente em seus trabalhos a fim de nos afastar da materialização do Divino, para que não atribuamos a Ele nem corpo e nem a forma de um corpo. Por outro lado, o empenho destes sábios traz consigo o risco de a personalidade do Divino se tornar opaca aos olhos das pessoas. Fosse essa a intenção da Torá, ela poderia facilmente evitar o emprego de expressões antropomórficas, e se ela assim não o fez é porque considera que o risco da opacidade Divina é mais grave do que o risco de Sua materialização aos olhos do povo.

Nestes versículos, as expressões antropomórficas mostram-se necessárias por atestarem dois dos principais fundamentos da nossa crença: a liberdade Divina e a liberdade humana. Quando o versículo diz que “E o Eterno viu que era grande a maldade do homem”, ele dá a entender que a maldade humana não estava dada como certa e determinada, motivo pelo qual “o Eterno viu” em algum momento, o que apenas reforça e reitera o princípio de liberdade e livre-arbítrio do ser humano. Igualmente, aprendemos que os sofrimentos e os desastres que acossaram a humanidade não foram motivados apenas por causas naturais, mas se deram porque Deus refletiu sobre o assunto antes de chegar à conclusão que deveria levá-los a cabo, algo que de toda forma ainda Lhe causou sofrimento. A ciência de tudo isso ratifica a premissa acerca da personalidade e liberdade de Deus, e preserva assim a pureza da crença. Esta foi a convicção do Raavad (Rabi Avraham ben David, França, 1120-1198), um pensador eminentemente judaico: a crença na personalidade Divina é mais importante que as investigações filosóficas sobre a problemática da materialização de Deus aos olhos do povo.

7. E o Eterno disse. O mesmo atributo de misericórdia expresso no Tetragrama e que colocou o ser humano sobre a terra é o atributo que agora pede a extinção da humanidade. A corrupção da humanidade era tão grande que sua extinção configurava em si um ato de piedade.

Farei desaparecer o homem que criei de sobre a face da terra – desde o homem até o animal. Mesmo no momento da extinção, a superioridade humana sobre as demais criaturas fica evidenciada, uma vez que a extinção humana acarreta a de todos os seres vivos.

de sobre a face da terra. Uma vez que o versículo não diz simplesmente “Farei desaparecer o homem”, mas complementa com “de sobre a face da terra”, pode-se entender que esta extinção jamais foi pensada como algo absoluto, mas apenas relativa aos limites que lhe foram fixados – “de sobre a face da terra”. Será que isso significa que a alma Divina que o ser humano possui ficou resguardada em outro lugar e em outro estado? Sobre isso apenas podemos aludir até onde nos é permitido, e de todo modo a linguagem do versículo sugere que a extinção era apenas relativa. Assim, uma geração inteira foi extinta por causa de seu pecado.

8. Mas Noé achou graça aos olhos do Eterno. A intenção do versículo aqui não é dizer que Noé encontrou a graça do Eterno e por isso foi salvo da extinção. Aquele que intenta encontrar graça aos olhos de outrem não pede apenas um indulto ou uma anistia para se safar de um castigo ou algo que o valha, mas intenta receber toda sua abundância e generosidade. Assim, aquele que encontra a simpatia de Deus chegou à suprema perfeição que um ser humano pode atingir, por meio de muito esforço e trabalho. Portanto, o que Noé alcançou não foi o mero fruto de um acaso. Toda a geração corrompeu o seu caminho e foi julgada à extinção, e somente Noé encontrou a graça do Eterno para dar continuidade a todo o futuro da humanidade. Tudo o que o “coração do Eterno” gostaria que fosse alcançado pela humanidade acabou se concentrando em Noé; ele deveria salvar toda a semente do bem e transmiti-la adiante.

Este é um pensamento que gera uma tremenda perplexidade: depois de 1.600 anos de história da humanidade, um homem se encontra sozinho com a sua família, e Deus decide dar continuidade ao Seu mundo apenas a partir dele. Todavia, estes eram os desígnios de Deus, que trouxe o Dilúvio a fim de educar a humanidade a trilhar os Seus caminhos, e da mesma forma que Deus supera todo o pensamento Divino e todos os percalços e entreveros, como o próprio Dilúvio, assim Ele dará para sempre o poder da força e do renascimento a todos que a Ele se juntarem.

 

Torá Interpretada - Editora Sêfer

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Bereshit extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.

Comentário

  • Excelente texto! Eu tenho medo de comprar livros justamente pela questão de transformarem Deus em uma coisa mecânica e sem personalidade. Quando eu vi a frase na parashat acima: “A crença na personalidade Divina é mais importante que as investigações filosóficas sobre a problemática da materialização de Deus aos olhos do povo”. Isso animou o meu coração. Deus não é um ser humano, mas também não é uma coisa sem personalidade. A natureza está repleta de provas da personalidade de Deus, inclusive, Deus é um poeta. Eu não posso trair a Deus por apoiar ideologias que destroem a personalidade de Deus para se adequarem à ciência. Ou se adora ao Eterno ou se adora a ciência. Eu penso que a ciência devemos respeitar, são enormes as descobertas e avanços cietíficos, tecnológicos, etc. Mas também, as limitações da ciência são grandes, ela não explica e jamais explicará trilhões de coisas, além de que a ciência não conseguiu nem mesmo acabar com a fome na Terra. Mas adorar a ciência, não! Adoração é somente ao Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, nosso amoroso Criador que tem uma personalidade SIM, e eu o amo muito! Gratidão Editora Sefer, isso aqui é mais que uma editora, é uma casa de anjos queridos! ❤❤❤❤❤

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