Brevíssima coletânea de comentários sobre a porção VAIERÁ extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.
Gênesis, Capítulo 21
22 E foi naquele tempo, e falaram Avimélech e Pichol, general de seu exército, a Abrahão, dizendo: Deus está contigo em tudo que fazes. 23 E agora jura-me, por Deus aqui, que não agirás falsamente comigo, nem com meu filho, nem com meu neto! Como a mercê que fiz contigo, farás comigo e com a terra em que moraste. 24 E Abrahão disse: Eu jurarei. 25 E Abrahão tinha repreendido a Avimélech por causa do poço de água que os servos de Avimélech haviam roubado. 26 E Avimélech disse: Não sei quem fez esta coisa, e tu também não a denunciaste a mim, e eu também não o ouvi senão hoje. 27 E Abrahão tomou ovelhas e vacas, e deu a Avimélech e ambos fizeram uma aliança. 28 E Abrahão pôs sete ovelhas separadas. 29 E Avimélech disse a Abrahão: Que são estas sete ovelhas que puseste à parte? 30 E disse: Estas sete ovelhas tomarás de minha mão, para que sejas para mim testemunho de que eu cavei este poço. 31 Por isso chamou a este lugar Beer-Shéva, pois ali ambos juraram. 32 E fizeram uma aliança em Beer-Shéva; e levantaram-se Avimélech e Pichol, general de seu exército, e voltaram à terra dos filisteus. 33 E plantou uma árvore frutífera em Beer-Shéva, e fez invocar ali o nome do Eterno, o Deus do futuro [El Olam]. 34 E Abrahão morou na terra dos filisteus por muitos dias.
- E foi naquele tempo. Com estas palavras o versículo contextualiza cronologicamente o momento em que o rei Avimélech decidiu se dirigir a Abrahão para pedir dele lealdade para com seu reinado. Ou seja, foi logo após que Abrahão expulsou a seu filho mais velho, Ismael, e todo o futuro de seu legado repousava sobre a frágil existência de Isaac, o seu filho pequeno, que Avimélech, acompanhado de Pichol, o general de seu exército, veio ter com Abrahão para firmar algum tipo de acordo diplomático que garantisse que Abrahão e seus descendentes jamais conspirariam contra o rei e seu povo. Assim, eles solicitaram o juramento de Abrahão para que ele sempre mantivesse uma postura de gratidão e recordação pelos laços de amizade entre eles durante aquele período.
Fica evidente, portanto, que Avimélech não via Abrahão como um indivíduo idoso cuja importância cessaria com a sua morte, pois se assim fosse, Abrahão não agregaria nada a seu reinado e tampouco representaria qualquer ameaça ao seu futuro. Em seus olhos, Avimélech vislumbrava um futuro no qual os descendentes de Abrahão se tornariam numerosos e fortes o suficiente para se posicionarem em pé de igualdade diante de sua nação, seja como aliados, seja como inimigos. Uma vez que não havia naquele momento nenhum motivo aparente que justificasse qualquer temor de Avimélech com relação a Abrahão, deve-se presumir que o rei tinha alguma ciência das promessas Divinas a Abrahão e o quanto o próprio Abrahão acalentava suas expectativas quanto ao seu futuro. Desta forma, não foi por outro motivo, além desse, que Avimélech tratou logo de assegurar a amizade dessa futura nação por meio da obtenção de um comprometimento formal de seu primeiro patriarca.
Dado o contexto histórico em que este encontro aconteceu, podemos compreender como esse episódio não foi nada trivial. Aos olhos de Abrahão, o fato de um rei vir até ele para solicitar a sua amizade e ainda formalizá-la por meio de um juramento justamente num momento em que ele se encontrava fragilizado, desprovido da presença do seu filho mais velho e tendo consigo apenas um infante que recém deixara de ser amamentado – tudo isso demonstrava sobremaneira como a promessa Divina sobre a nação que seria formada a partir de Isaac já estava se realizando. Assim, o versículo realça a dramaticidade desse evento ao mencionar que esse encontro se deu “naquele tempo”, ou seja, na sequência dos acontecimentos narrados imediatamente antes.
Vale notar, nesse contexto em que Abrahão começa a enxergar os primeiros passos do futuro de sua nação, como foi aguda a inflexão de sua história quando Deus o ordenou, no próximo capítulo, que oferecesse Isaac como sacrifício.
Entrementes, há mais um ponto que merece ser levantado. Com esse pedido de aliança, pelo qual é solicitada a fidelidade dos filhos e netos de Abrahão, Avimélech demonstrou enorme confiança no poder de Abrahão para educar os seus filhos, pois ele tinha certeza de que os descendentes dele respeitariam plenamente as promessas empenhadas por seu antepassado. E de modo bem característico, Avimélech não se viu impelido a retribuir o gesto de Abrahão e fazer um juramento em nome de seus descendentes. A seus olhos, a permissão dada a Abrahão para que residisse em sua terra, uma concessão muito rara naquele tempo, era grande o suficiente para pedir em troca um voto de lealdade que se estendesse também aos descendentes de quem fora agraciado com tal ato. Ao que parece, Abrahão também não fazia questão de obter tal comprometimento de Avimélech, por conhecer o ínfimo valor que este tipo de pacto diplomático tem àqueles que não compartilhavam dos seus valores espirituais. Em seu turno, os descendentes de Abrahão, mesmo quando vieram a se tornar um país e uma nação, jamais desprezaram a importância dos pactos e alianças firmados com outros povos. Nos tempos do Segundo Templo, quando os judeus ainda aproveitavam dos direitos e prerrogativas de ter um país entre os países, o Estado judeu era conhecido por cumprir fidedignamente seus acordos e compromissos.
- jura-me. O termo shevuá (juramento) é derivado, aparentemente, da palavra shéva (sete), e neste sentido, o seu significado seria “entregar-se para o sete”. Como sabemos, a Criação foi concluída em seis dias, e o sétimo dia ficou estabelecido como um sinal e uma recordação para o Criador, que embora seja invisível no mundo, é o Proprietário do mundo visível. Desde então, o número sete permaneceu como signo do sétimo dia, aquele que sinaliza à existência do Proprietário invisível do mundo. Desta forma, o ato do juramento configura a submissão a Deus que uma pessoa impõe a si mesma ao entregar a Ele o seu destino em caso de descumprimento de sua promessa, aceitando assim todas as consequências cabíveis que possam advir Dele. E do mesmo modo que o termo shevuá (juramento) remete ao número sete em referência ao Divino, conforme explicamos, a palavra alá (jura) deriva diretamente de El, que é um dos nomes de Deus.
- E Abrahão tinha repreendido a Avimélech. Parece que Abrahão já havia reclamado com Avimélech sobre o roubo de um de seus poços, sem denunciar ninguém especificamente, no que foi ignorado pelo monarca. Neste versículo, Abrahão voltou à carga e acusou alguns dos escravos de Avimélech de terem sido os autores daquele crime. Desta feita, o rei se justificou no próximo versículo dizendo que ainda não havia tomado nenhuma atitude pelo fato de desconhecer até então a identidade dos infratores.
- e deu a Avimélech. Em geral, a firmação de um pacto inaugura um novo período de relações bilaterais. Neste caso, entretanto, apenas Abrahão ofereceu algum regalo a seu aliado. Todavia, é possível que Avimélech tenha dado a Abrahão algum tipo de promessa que haveria de vigorar, pelo menos, enquanto o próprio Abrahão estivesse vivo, havendo, então, alguma reciprocidade. Alternativamente, conforme explicamos acima (versículo 22), é plausível que Avimélech não se visse impelido a se comprometer de modo formal ou simbólico quanto ao futuro de Abrahão pelo fato de já ter empenhado a sua amizade e generosidade a Abrahão no passado e no presente, ao permitir que habitasse em sua terra, ao passo que Abrahão não havia lhe entregado nada de concreto para além de suas palavras e promessas acerca do futuro.
- sete ovelhas separadas. Abrahão separou sete ovelhas do rebanho que havia presenteado Avimélech a fim de formalizar o seu direito sobre o poço que estava em discussão, conforme explicado a Avimélech adiante (versículo 30). A quantidade de sete ovelhas que Abrahão decidiu separar certamente não foi gratuita, conforme explicamos acima (versículo 23) sobre o significado do número sete em relação ao juramento. Adiante (versículo 31) veremos que o local daquele poço foi chamado de Beer-Shéva (“Poço Sete”), remetendo tanto ao juramento quanto às sete ovelhas que foram separadas ali, sintetizando, assim, a correlação existente no judaísmo entre o número sete e um juramento.
De um modo mais explícito, ao dispor o seu rebanho diante de Avimélech, Abrahão expressou toda a ideia do juramento, como que colocando seu rebanho à prova de Deus, estando pronto a perdê-lo caso ficasse comprovado que ele faltara com a verdade. Esse ato significou, portanto, a prática de um juramento, ato este que foi secundado por Avimélech ao aceitar as sete ovelhas, reconhecendo assim que o poço pertencia a Abrahão e selando essa contenda por meio de um juramento, conforme o versículo arrematará na sequência (ibid.): “ali ambos juraram”.
- testemunho. O termo edá (testemunho) deriva da raiz de ód (mais), que significa “continuar” e “persistir”. O ato de testemunhar tem o significado de dar continuidade e permanência a um acontecimento para que mantenha sua existência e não seja esquecido pelas pessoas. Em algumas passagens, o verbo lehaíd (testemunhar) é empregado no sentido de advertir e relembrar as pessoas sobre as suas obrigações, do mesmo modo que uma testemunha também é a encarregada de lembrar o que se passou.
- ambos. O mandatário atual da terra e o mandatário futuro se cumprimentaram e trocaram um aperto de mãos. Este evento, certamente, pode ser caracterizado como histórico por ter ensejado o primeiro reconhecimento oficial do futuro povo que sairia de Abrahão. Por esta razão, este episódio foi eternizado pelo nome dado ao local em que tudo aconteceu, e aquele lugar passou a ser chamado de Beer-Shéva. E assim, o juramento de Abrahão, que também incidiria sobre os seus descendentes, ficou eternamente gravado na memória coletiva da nação.
- uma árvore frutífera. De acordo com os nossos sábios (Bereshit Rabá 54:8), aquela árvore oferecia sombra e alimentação, e funcionava como emblema da hospedaria que Abrahão instalou naquele local para oferecer comida, bebida e um lugar para que os viajantes pudessem dormir. Essa prática indiscriminada de bondade visava reverter o agradecimento dos viajantes em reconhecimento ao Criador do mundo e demonstrar a todos como é grande e genuína a felicidade de quem serve o Deus único.
em Beer-Shéva, e fez invocar ali o nome do Eterno, o Deus do futuro [El Olam]. Até aqui, Abrahão difundia a crença no (14:22) “Deus Altíssimo, Dono dos céus e da terra” que jamais deixou de gerir o mundo depois de tê-lo criado, mas que Se mantém como Dono de sua criação, estando atento a tudo que se passa em Seu mundo. Nesse momento, todavia, Abrahão passou a declarar a atuação de Deus para além do horizonte visível, sendo o Senhor do tempo futuro e oculto aos olhos das pessoas. Com efeito, o termo olám indica em todas as passagens em que foi empregado na Escritura um “tempo oculto”, entendimento que é subsidiado pela proximidade de olám com o termo heelém (ocultação), e indica tanto um futuro desconhecido como um passado distante.
Para entender o motivo de Abrahão ter decidido instalar ali a sua hospedaria e de ter invocado pela primeira vez o nome do “Deus do futuro”, devemos retornar à contextualização cronológica dos acontecimentos. Conforme explicamos no início deste relato (versículo 22), Abrahão entendia que a aproximação do Avimélech para selar um acordo de fidelidade configurava um acontecimento da maior importância: tratava-se do primeiro reconhecimento oficial do futuro povo que então apenas iniciava sua trajetória – com uma família formada por um casal de anciãos e um filho de dois anos. Tendo em vista o fato de Abrahão estar completamente isolado e desprovido de qualquer direito, a aproximação de Avimélech se tornava ainda mais significativa.
Desta forma, o Poço do Juramento sintetiza perfeitamente o estado contraditório em que Abrahão se encontrava: por um lado, uma vez que não tinha nenhum direito civil, ele precisava contar com a bondade do rei para se apropriar de um poço que ele mesmo cavara; e por outro, a disposição do rei em fazer um juramento para atestar que o poço realmente era de Abrahão demonstrava inequivocamente que o seu futuro promissor já começava a se tornar uma realidade. Estes acontecimentos fizeram parte dos primeiros registros em que Deus Se ingeriu no desenvolvimento da história humana, algo que não foi ignorado por Abrahão, e isso o motivou a perpetuar aquele episódio com o plantio de uma árvore que externasse a sua visão de mundo e a sua forma de atuação. O seu futuro estava destinado a crescer como uma árvore que nasce pequena mas que dá frutos, e frutos de frutos que hão de beneficiar a todos.
Ainda sobre a aproximação de Avimélech a Abrahão, é possível presumir que o rei tenha sido acometido por um impulso que o levou até Abrahão, e que este arroubo tenha sido plantado em seu coração por Deus, a fim de que fosse semeada a primeira semente de temor e de respeito por parte dos filisteus diante dos judeus. No decorrer da história, quando da Abertura do mar Vermelho, esse temor se converteu num pavor desmedido, conforme relatado pela Escritura. De toda forma, é comum que alguns sentimentos e impulsos se originem nos céus antes de obterem a sua aderência racional no espírito das pessoas e ganharem expressão na realidade. No entanto, é difícil que os atores envolvidos em tais acontecimentos se deem conta da origem dos fatos, pois tendem a pensar que nada escapou da perfeita naturalidade das coisas, para que tudo acontecesse conforme deveria acontecer, como de fato aconteceu.
o Deus do futuro. Esta designação dada a Deus por Abrahão consta apenas mais uma vez em toda a Escritura. Não obstante, é um dos adjetivos mais associados a Deus na lavra dos nossos sábios, além de constar frequentemente em nossas preces e orações. A associação do termo olám (futuro) ao nome de Deus se deve bastante ao fato de que ele passou a ser utilizado na literatura rabínica como uma palavra que designa o “mundo”, ou seja, a realidade prática e tangível. Por causa do duplo significado presente no termo olám – “futuro” e “mundo” –, os nossos sábios nos transmitiram um entendimento valoroso.
Em geral, quando as pessoas são acometidas por dificuldades e problemas, elas atravessam o presente e põem seus olhos e pensamentos em direção ao futuro, de onde obtém algum consolo. No entanto, os nossos sábios optaram por um ponto de vista inverso: nos momentos de maior dificuldade, em que somos postos como objeto de escárnio e zombaria por parte dos outros povos, somos ensinados a olhar cada momento do presente como se já fosse parte do futuro: os raios e trovões, as flores, os alimentos e as mensagens e tudo que acontece conosco no presente, segundo os nossos sábios, deve ser visto como uma fração da eternidade em reconhecimento a Deus, que é o Rei que rege o futuro desconhecido e que é revelado apenas com o passar do próprio tempo. De certo modo, aquele que vive plenamente e que se comporta condignamente toca a eternidade a cada momento – eternidade esta que será compartilhada por todos no final das contas.
De modo mais profundo, é possível que o termo olám com seus dois significados esteja por ensinar uma verdade ainda mais sublime. Na verdade, o conceito de olám designando um tempo desconhecido não se resume a um futuro desconhecido ou a um passado distante, como havíamos afirmado no início da explicação deste versículo, mas se refere a todo e qualquer desconhecimento que temos, inclusive do presente, e mais do que isso, refere-se também ao desconhecimento que temos sobre o mundo que está disposto à nossa frente. Afinal, seria presunçoso supor que temos pleno conhecimento sobre o presente e sobre o mundo, como se a nossa ignorância estivesse restrita ao passado e ao futuro.
É importante ter em mente que mesmo o presente mais tangível não deixa de fazer parte do olám, o mundo oculto, e esse reconhecimento dá vazão à existência da realidade em seu âmbito superior e desconhecido. No final das contas, as formas e as imagens se trocam e se alternam, restando apenas a força ativa, o oculto que se encontra na base de tudo que é revelado, o abstrato, aquilo que existirá para sempre, o único ser verdadeiro sobre o qual podemos nos apoiar. Nas palavras do Eclesiastes (3:11), “pôs em seu coração a ânsia compreender o que Ele fez”, ou seja, apesar de Deus ter criado o Seu mundo de modo ordenado e estruturado em suas múltiplas relações, Ele implantou algo oculto e elevado no coração das pessoas como meio de capacitá-las a acessar minimamente os atos de Deus, porque sem esse componente nada poderia ser compreendido.
Eventualmente, esta foi a ideia que associou o significado do conceito “mundo” à palavra olám. Os nossos sábios quiseram nos acostumar a sempre buscar o ponto de vista que mira o desconhecido e o oculto, a força que se encontra na base e por de trás, para além dos fenômenos naturais em suas faces reveladas, para que, também ao enxergar o mundo, nos detivéssemos na apreciação do Rei do mundo que rege todas as forças ocultas, tanto as do tempo quanto as do espaço.
Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção VAIERÁ extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.