Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção BESHALACH extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer
Êxodo, Capítulo 15
1 Então cantarão Moisés e os filhos de Israel este cântico ao Eterno, e disseram:
Cantarei ao Eterno, que gloriosamente Se enalteceu; cavalo e seu cavaleiro jogou no mar.
2 Deus é minha fortaleza e meu cântico, e Ele foi a minha salvação. Este é meu Deus e far‑Lhe‑ei uma morada; o Deus de meu pai, enaltecê‑Lo‑ei!
3 O Eterno é o Senhor da guerra, Eterno é o Seu nome.
- Então (az) cantarão. Quando a palavra “então” abre a descrição de um evento que aconteceu no passado, do ponto de vista do narrador, ela geralmente vem com um verbo conjugado no futuro. Esta característica extraordinária de “então” pode ser explicada a partir do entendimento do significado da palavra.
Então. Az, da raiz azá, é próximo de chazá (vislumbrar em profecia), que significa ver com olhos espirituais algo invisível no plano físico. A palavra az, “então”, transfere nossos pensamentos para um tempo que não está presente, para nos fazer ver um evento ocorrido não no presente, mas no passado ou no futuro. Portanto, o tempo do verbo que acompanha a palavra “então” não se refere ao tempo no qual a história é relatada, mas ao tempo do evento em si. E, naquele tempo, o evento ainda estava em processo e essa é a razão para a utilização do verbo em tempo futuro. Se estivesse escrito “então cantaram”, o significado do versículo seria: Naquele momento eles cantaram. “Então cantarão” significa: Naquele momento eles estavam começando a cantar.
Toda vez que a palavra “então” vem acompanhada de um verbo conjugado no pretérito (e não implica um passado distante), ela nos leva ao tempo do evento, mas o verbo se refere ao tempo no qual a história é relatada. Neste caso, a Escritura assume que o evento em si é conhecido, e o único propósito do texto é dizer quando ele ocorreu. Assim, em “Foi então que se começou a invocar o nome do Eterno” (Gênesis 4:26) supõe-se que o início da invocação do nome de Deus era algo conhecido; a Escritura só vem nos dizer que isto começou no tempo de Enosh. A palavra “então” também vem acompanhada de um verbo no passado quando serve como ponto de continuação da história, e passa a significar “logo depois disso”, como, por exemplo: “então ela disse: Noivo de sangue por causa das circuncisões!” (acima 4:26), “Então Salomão disse” (1 Reis 8:12) e “Então pasmaram-se” (adiante, versículo 15). No entanto, tudo isso requer um estudo mais cuidadoso (ver adiante versículo 15).
este cântico (shirá). Shir é próximo de shéguer (algo expelido), shechar (cerveja), shéker (mentira), e significa dar uma forma externa aos pensamentos e sentimentos que surgiram dentro do coração, e, de modo geral, dar uma expressão entusiástica do que um evento externo revelou ao interior humano – algo que não é visível, mas que pode ser vislumbrado claramente pelo olhar do espírito. Portanto, shir se refere principalmente a palavras que cantam sobre a obra de Deus no decorrer da História (ver comentário sobre Gênesis 9:21).
Cantarei ao Eterno. Quero cantar a Deus para glorificá-Lo e difundir o Seu reconhecimento.
que gloriosamente Se enalteceu. Quão imensamente exaltado Ele Se mostrou através do evento que ocorreu conosco e do qual fomos testemunhas neste lugar.
cavalo e seu cavaleiro jogou no mar. O poderoso exército que tanto temíamos – Ele lançou às profundezas do oceano.
Cantarei. “Deixa-me cantar, rogo”; em outras palavras: eu quero cantar; desejo encontrar palavras dignas a Deus, que expressem bem o estado da minha emoção interior. Quão grande é a semelhança e, por outro lado, quão diferente é a abertura do “Cântico do Mar” se comparada às linhas de abertura das canções das nações. “Cantarei ao Eterno!” – quão humilde é essa abertura e quanta devoção a Deus está contida nela! Porém, entre a canções das nações encontramos: “Cantarei sobre batalha e o homem na guerra”, “Eu canto sobre o herói”, e assim por diante – palavras que expressam a arrogância e o egoísmo do poeta.
jogou (ramá) no mar. Ramá vem no sentido de atirar flechas: “romê késhet (arqueiros, literalmente ‘lançadores de arco’)” (Jeremias 4:29). Ramá aparentemente também é próximo de rômach, uma lança.
- Deus é minha fortaleza e meu cântico. Ozí é derivado de azaz. Oz refere-se ao poder de oposição, ao fato de Ele ser invencível. “Minha fortaleza” – ou seja, a força de minha resistência inabalável, que se manteve ilesa mesmo diante do Faraó e do mar; “e meu cântico” – e o poema que eu canto agora; “é Deus” – os dois são obra da mão de Deus.
cântico (zimrat). No nosso comentário sobre Gênesis 43:11 observamos sobre a conexão entre zimrá – melodia – e shir – palavras na linguagem poética. Ali explicamos que no som da melodia pode-se ouvir o som da alma elevando-se ao mais alto êxtase; a melodia amadurece os pensamentos que percorrem a alma do mesmo modo que os frutos da videira amadurecem em seus ramos (zemorot).
Este ato sublime do espírito humano pelo qual são reveladas as mais nobres forças espirituais presentes no homem e que vem por inspiração Divina é em si um ato de Deus, como o salmista de Israel diz sobre si mesmo: “O espírito do Eterno falou em mim, e a Sua palavra está na minha língua” (2 Samuel 23:2). Por esta razão, não está escrito zimratí (meu cântico), mas zimrat (cântico); o pronome possessivo representado pela letra iod (a vogal “i”, em português) está faltando, pois o poeta quer dizer explicitamente que este cântico não é seu!
Deus (Iá). O nome sagrado Iá – cuja pronúncia é próxima às das palavras cô (assim) e côach (força) – sempre indica a revelação do poder de Deus e a manifestação de Sua ação e governo. Assim, a explicação desse versículo é a seguinte: Minha salvação, assim como a sublime emoção que essa salvação despertou em mim – isto é, tanto o meu destino quanto a minha vida íntima – são uma manifestação do poder de Deus que me mantém e apoia em todos os momentos e situações, e Seu poder é revelado a todos pela própria inspiração que pairou sobre mim. E Ele foi minha salvação – ou seja, essa foi a minha salvação: Deus me salvou porque viu em mim uma ferramenta adequada para revelar Sua Providência, que dá forma e imagem às vidas das pessoas e nações. Minha fraqueza externa, minha força interior e minha disposição para captar e receber são aquilo que me tornou meritório do auxílio Divino.
Na expressão Haleluiá, esse nome de Deus (Iá) se une com o cântico de louvor pelos feitos de Deus (halel) para formar um novo conceito. Na base dessa forma de expressão está essa mesma ideia: A inspiração espiritual presente na canção de louvor pelas ações de Deus é em si uma obra de Deus. Talvez seja esta também a explicação das palavras do Rabi Iehoshúa ben Levi: “A maior de todas as linguagens de louvor é Haleluiá, que inclui tanto o nome quanto o louvor de uma só vez” (TB Pessachim 117a).
Este é meu Deus. De agora em diante, este será o meu Deus. Da maneira como Ele é percebido por mim aqui – como o “Um” e único capaz de dar forma ao meu destino e vida interior –, assim, de agora em diante eu os confio a Ele, para formá-los e guiá-los. Somente aqueles que se submetem a Deus dessa maneira podem dizer “Este é o meu Deus” – Ele será “meu Deus”, isto é, “a Força que me move”.
e far-Lhe-ei uma morada (anvêhu). Eu me oferecerei diante Dele para ser Sua morada (lar), e todo o meu ser e toda a minha vida se tornarão um santuário para a Sua glória e um lugar para revelar Sua Presença Divina. Este não é senão o resultado natural da declaração “este é meu Deus”.
Navê (morada) – que é próximo de nôach (repouso) – indica um lugar que oferece descanso. Assim, o significado básico de navê é um lugar que satisfaz todas as necessidades dos rebanhos, onde eles podem permanecer permanentemente, sem que precisem procurar por pasto em outro lugar: “Eu te tomei da cabana dos pastores (hanavê)” (2 Samuel 7:8).
Portanto, “Far-lhe-ei um lugar” para que Ele diga alegremente “e morarei entre eles” (adiante 25:8).
o Deus de meu pai, enaltecê-Lo-ei. Ele já provou ser o Deus dos meus antepassados; meus ancestrais O reconheceram como tal e me transmitiram esse reconhecimento. Ainda assim, tentarei acrescentar mais ao reconhecimento de Sua grandeza e domínio.
Essas palavras descrevem em termos gerais o propósito de toda e qualquer geração do povo de Israel: promover e elevar a alturas cada vez maiores o reconhecimento que o homem tem de Deus e sua submissão diante Dele.
- O Eterno é o Senhor da guerra, Eterno é o Seu nome. Aqui começa a expressão da nova consciência a respeito de Deus, que é o resultado desse evento vivenciado por eles: “O Eterno” é o Criador de um novo e melhor futuro para a humanidade (ver acima comentário sobre, 6:2), e é precisamente por essa razão que Ele é o “Senhor da guerra”, que derruba todas as forças sociais que se opõem ao Seu plano para esse futuro. “Eterno é o Seu nome”: isso é inerente ao Seu próprio nome, com o qual Ele Se apresentou a nós. Somente a destruição do mal pode abrir caminho para a salvação que traz a bondade de Deus.
Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção BESHALACH extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.