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Parashá Semanal - Leitura da Torá

Das profundezas do interior do “homem de Deus”

Vezot Heberachá

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Vezot Heberachá extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer

 

Deuteronômio, Capítulo 33

1 E esta é a bênção com que Moisés, o homem de Deus, abençoou os filhos de Israel antes da sua morte. 2 Ele disse: O Eterno veio de Sinai, e de Seír lhes alvoreceu; apareceu desde o monte Parán, e Ele veio de junto de miríades dos anjos da santidade; escrita com Sua mão direita, deu-lhes Lei do meio do fogo. 3 Mesmo quando sentencia os povos, todas as almas dos santos estão em Teu poder, ó Eterno; e eles serão submetidos aos Teus pés e tomarão ciência dos Teus dizeres. 4 A Torá que Moisés nos ordenou – esta é a herança, ó comunidade de Jacob! 5 Ela (Torá) foi rei em Ieshurun (Israel), sempre que se congregaram os cabeças do povo em paz, junto com as tribos de Israel. 6 Viva a tribo de Ruben e não afunde, e sua plebe seja numerosa.

 

  1. E esta é a bênção (…) o homem de Deus. O homem que estava em estreito contato com Deus e fazia o trabalho de Deus como Seu servo e emissário. Em nossa opinião, essa bênção de Moisés não foi dita a ele como uma fala Divina, como o resto da Torá, mas surgiu das profundezas de seu ser interior, o que explica a alcunha de “homem de Deus” dada a ele somente aqui.

Em relação a tudo o que foi dito por Moisés na Torá até este ponto, Moisés serviu apenas como uma ferramenta na mão do Eterno e, portanto, não havia necessidade de chamá-lo de “homem de Deus”. Essa bênção, no entanto, não era a palavra de Deus, mas as palavras de Moisés, e o apelido dado aqui a Moisés nos ensina que a essas palavras deve ser atribuído um valor muito maior do que aquele que seria atribuído às palavras de uma pessoa comum. De fato, foi “Moisés, o homem de Deus” quem disse essa bênção. Ela saiu da boca do homem que Deus considerou digno para estar em contato próximo a Ele. E embora essa bênção possa não ter sido dada de maneira profética, ela foi dita no mínimo com inspiração Divina.

Cabe comparar com a “Oração de Moisés, o homem de Deus” (Salmo 90:1).

  1. Ele disse: O Eterno veio de Sinai. Não é dito “veio ao Sinai”, mas “de Sinai” – o Eterno veio de Sinai e habitou no meio de Israel (Mechiltá Itró 20:2).

“Veio”, “alvoreceu” e “apareceu”, ou, mais precisamente, “apareceu”, “alvoreceu” e “veio” são os estágios do progresso na revelação da luz. “Apareceu” (hofía) é a saída inicial da escuridão, o brilho que anuncia a luz que se aproxima. Iafá (de hofía, que é próximo a ipach – aspirar o ar) é paralelo à alvorada. “Alvoreceu” (zarach, que é próximo a zará – espalhar, semear) é o despontar dos raios de luz, o crepúsculo da manhã. A luz ainda está distante, mas seus raios já irrompem e chegam até nós. Quando a luz “veio”, ela já ilumina acima de nossas cabeças. “Levanta-te (ó Jerusalém), resplandece, porque chegou tua luz…” (Isaías 60:1-3). O significado da imagem descrita ali é que, quando a luz de Deus brilha intensamente sobre Israel, o amanhecer desponta para o resto do mundo.

de Seír. “Seír” se refere a Esaú, “Paran” se refere a Ismael (Gênesis 21:21). O que é dito aqui aparentemente é o seguinte: a promessa feita a Abraão poderia ter sido cumprida por meio de Ismael ou por meio de Esaú. Porém, Ismael se tornou “Paran” e Esaú se tornou “Seír”. Verifica-se que o próprio caráter deles mostrou que a promessa de Deus precisava esperar por outra geração, uma geração posterior. Somente com o recebimento da Torá por Israel a geração se tornou pronta para a habitação da Presença Divina na terra. “Lhes” também se refere a “apareceu”. Por meio de Ismael, apareceu a luz da manhã para Israel; por meio de Esaú, despontou para Israel o crepúsculo da alvorada; por meio da outorga da Torá no Sinai, a luz de Deus alcançou o ápice dos céus de Israel. Algo similar foi dito no Sifrí sobre o nosso versículo: “Deus foi aos filhos de Esaú e disse-lhes: ‘Vocês desejam receber a Torá…’” (ver ali).

e Ele veio (atá) de junto de miríades dos anjos da santidade. A análise dos diferentes versículos que mencionam a palavra atá mostra que seu significado principal não é uma vinda com foco no local – vir a determinado lugar –, mas vir a determinada pessoa, e se refere especialmente a uma vinda esperada. “Miríades (dezenas de milhares) dos anjos da santidade” são miríades de espíritos, servos do Eterno, que são “santos” em essência, ou seja, estão sempre prontos e dispostos a fazer boas ações a serviço de Deus. Sua essência não permite que eles pequem. Sobre eles foi dito: “estes não se viravam quando caminhavam” (Ezequiel 1:9) – eles nunca se desviam de seu caminho. Portanto, as palavras da Torá não são dirigidas a eles, porque a Torá pretende estabelecer o estilo de vida de seres físico-espirituais convocados a ouvir a voz de Deus em liberdade e, portanto, também são capazes de pecar. Nem “Seír”, nem “Paran” e nem mesmo “dezenas de milhares de anjos sagrados” eram dignos desta Torá.

escrita com Sua mão direita, deu-lhes Lei do meio do fogo (esh dat). Essas duas palavras – esh dat –  escritas como uma única palavra, constituem um único conceito.

Dat (lei, religião) aparece apenas aqui como um termo que define o conceito de Torá. É a percepção universal da Torá, por assim dizer, e define o significado da Torá no plano universal de Deus.

Esh (fogo) é a força que cria movimento, mudança e vida em todos os seres físicos; “o fogo negro”, como nossos sábios o chamam (Devarim Rabá, Ékev 3:12), o fogo escuro e invisível pelo qual é implementada a Lei eterna universal dada por Deus, que governa todas as Suas criaturas. Essa Lei age sobre todos os seres, sem o seu conhecimento e sem a sua vontade. Foi fundada pela Consciência Suprema e pela Vontade Suprema, já que foi Deus quem a fundou e desejou, e é por meio dela que Ele executa Sua vontade onipotente.

Essa Lei também governa o homem, a criatura destinada a manifestar a liberdade moral. No entanto, a Lei não age dentro dele, inconsciente e involuntariamente, mas vem ao homem, para que ele possa aceitá-la com liberdade de escolha e vontade. Essa Lei é a Torá. A Torá nada mais é do que a Lei de Deus dirigida ao homem, enquanto em relação a todos os outros seres ela age automaticamente. Quando o homem cumpre a Torá, ele faz – consciente e voluntariamente – o que todas as outras criaturas fazem inconsciente e involuntariamente. A Torá é “o fogo que se tornou uma Lei”.

“Escrita com Sua mão direita” – a mão direita da salvação de Deus, que ajuda e ampara (ver Êxodo 15:6 e comentário ali), foi ela que entregou ao homem esse fogo que se tornou uma Lei. Sem essa Torá em suas mãos, que lhe explica o seu ser mais interior e seu destino e lhe assegura a ajuda de seu Criador – o Criador de seu mundo –, o homem fica confuso, desamparado e desprotegido. A Torá atende às necessidades mais íntimas do homem.

Dot, a raiz de dat, aparece novamente apenas na linguagem dos nossos sábios no sentido de dut, um reservatório que não é profundamente escavado na terra, mas construído acima do solo (ver TB Babá Batrá 64a). Dut é um reservatório construído acima da terra e localizado na planície, na área usada pelo ser humano, e serve para a coleta da água concedida ao homem pelos Céus para os propósitos de sua vida física. Assim, dat é um termo adequado para o grupo de instruções dadas ao homem por Deus para os propósitos de sua vida moral. Por extensão, dat aparece mais tarde, no Livro de Ester, no sentido de uma ordem emitida por um governante de carne e osso.

Dot é próximo de dod, o parente requisitado para prestar assistência paterna – o tio, irmão do pai (ver Levítico 25:49), e também aqui encontramos o significado correspondente de dud – um recipiente. Talvez também haja semelhança com a raiz dadad, a raiz do dad (mama) da mãe.

  1. Mesmo quando sentencia (chovev) os povos. Chovev é o verbo chov conjugado no presente, como lotsets ou notsets, das raízes lots e nots, com a diferença de que chov é um verbo intransitivo – ser devedor ou estar obrigado –, enquanto chovev é um verbo transitivo – tornar alguém devedor ou fazer com que alguém cumpra uma obrigação. Também é possível que chovev seja o infinitivo do modo verbal que expressa intensidade, como é o caso de conen.

Aqui, o significado é que, mesmo quando Tu desejas levar o restante dos povos a cumprir seu dever, Tu tomas todos os santos de Israel em Tuas mãos. Em outras palavras, todos os santos de Israel servem como uma ferramenta nas Tuas mãos para esse fim. Não apenas Israel, mas toda a humanidade desfrutará da influência educacional e moral daqueles de Israel que consagram suas vidas observando fielmente a Torá. Eles servem incontestavelmente como uma luz para toda a humanidade, como um exemplo de como o propósito sagrado do homem deve ser manifestado. Acima foi dito que nem mesmo “Seír” e “Paran”, os povos que possuem parentesco com Israel, estavam suficientemente maduros para receber a Torá. Ainda assim, a revelação da Torá a Israel no Sinai beneficiou toda a humanidade, pois foi aberto o caminho para a unificação de todos os seres humanos no futuro. Por meio de Israel, todos se reunirão e formarão um único grupo dedicado a fazer a vontade de Deus e cumprir Seus mandamentos.

e eles. Eles, os povos, tucú (“serão submetidos”) – particípio da raiz takê, que é o modo mais intenso da raiz dakê, estar subjugado, submisso – entenderão que são impotentes e serão levados a reconhecer esse fato “aos Teus pés”, por meio dos Teus passos – isto é, por meio dos caminhos da conduta Divina (como em leraglí – literalmente, “aos meus pés”, mas traduzido como “por minha causa” no Gênesis 30:30). “Enquanto Israel carrega” – enquanto ele, Israel, carrega os dizeres que Te expressam.

Os eventos históricos conduzidos por Deus e a ação de Deus sobre os eventos trarão os povos ao reconhecimento de seu desamparo. Tão somente a palavra de Deus, cujo portador é Israel, ensinará a eles a reconhecer a Deus, cujo poder supremo eles podem sentir ao longo da História. Somente a palavra de Deus os ensinará diante de quem eles devem se curvar e como devem expressar sua submissão a Ele. Somente por meio da Torá, da qual Israel se tornou portador no Sinai, as lições aprendidas pelos povos a partir da História alcançarão o seu propósito.

dos Teus dizeres (midaberotêcha). Como em “ouvia a voz que vinha dos céus e falava (midaber)” (Números 7:89) – expressava-se.

  1. A Torá que Moisés nos ordenou. Esta é a declaração nacional de fé que deve ser transmitida como herança pelo povo de Israel de geração em geração. Essa Torá é uma “herança”, a verdadeira herança. Não a terra e sua abundância, mas a Torá é a herança nacional de Israel. A terra e o poder são apenas os resultados dependentes dessa herança.

ó comunidade (kehilat) de Jacob. Trata-se de um vocativo – isto é, não descreve a quem pertence a herança, mas é o termo pelo qual Moisés se dirige ao povo.

É intrigante o uso dos termos “Jacob” e “comunidade” aqui. Israel é chamado de “Jacob” quando é materialmente pequeno. Além disso, a Escritura usa a palavra kehilá (comunidade), e não kahal (congregação). Somente aqui a coletividade do público judaico é chamada de kehilá. Em todos os outros lugares da Escritura, ela é chamada pelo nome que expressa sua independência: “a congregação (kehal) de Israel”. Kehilá é uma forma mais fraca e mais dependente de kahal e refere-se ou ao público em geral num estado de fraqueza ou a cada ramo individual do público maior. O Eterno confiou a Sua Torá como herança não a indivíduos, mas ao público em geral, porque apenas o público vive para sempre e somente o público tem os meios necessários para qualquer finalidade. “Não há público morto nem público pobre” (ver acima comentário sobre 15:11). Além disso, a Torá não deve ser observada apenas durante os períodos de florescimento, nem foi dada somente à coletividade maior. A Torá deve ser mantida e cumprida mesmo quando a nação estiver num estado indicativo do nome “Jacob”. Além disso, todo pequeno público, todo ramo do grande público, está incluso nessa obrigação, de modo que toda “comunidade” é obrigada a garantir a transmissão e preservação da Torá dentro de seu círculo.

  1. Ela (Torá) foi rei em Ieshurun (Israel). A Torá se tornou rei em Ieshurun. Somente ela constitui o poder que reina, ordena e governa em Israel. Até mesmo os reis de Israel estavam sob seu domínio: o rei precisava ser apenas o súdito mais proeminente, prodigioso e exemplar da Torá. Graças ao governo da Torá, Israel se tornará “Ieshurun” – digno da visão de seu propósito moral, e portanto é dito aqui “em Ieshurun” (compare com o comentário acima 32:15).

Embora o sujeito de “foi” seja “a Torá”, “foi” (vaiehí) é uma linguagem masculina, pois acompanha o substantivo “rei”. De qualquer maneira, o verbo “ser/estar” costuma aparecer em linguagem masculina em versículos que relatam histórias, como em “e a bênção do Eterno estava (vaiehí) em tudo que ele tinha” (Gênesis 39:5), “Quando houver (ihiê) uma moça virgem”* (acima 22:23), entre outros.

 

* Em hebraico, os verbos são conjugados diferentemente para a terceira pessoa do singular, dependendo se o sujeito é feminino ou masculino. Em ambos os casos mencionados pelo Rabino Hirsch como exemplos, os verbos “ser” e “estar” se referem a palavras femininas – “bênção” e “moça” – e, apesar disso, estão conjugados como se estivessem se referindo a um sujeito masculino – “vaiehí” e “ihiê”. A utilização correta dos verbos nesses casos seria “vatehí” e “tihiê”, respectivamente. O mesmo ocorre no nosso versículo, em que o sujeito do verbo “ser” é “a Torá” e, apesar disso, o verbo é conjugado na linguagem masculina “vaiehí”. (N. do T.)

 

sempre que se congregaram. Quando os cabeças do povo se reuniram ao redor da Torá, as tribos de Israel se uniram, sendo a Torá a única conexão que unia todas as partes do povo judeu. Se todos os líderes da nação se conectam à Torá e se submetem a ela, então, ao mesmo tempo, a união do povo com a Torá se torna uma conexão que une os membros do povo entre si. E quando todos tomam parte em comum nessa propriedade sublime da nação, todo e qualquer membro da nação adquire um estado de igualdade na nação.

  1. Viva a tribo de Ruben. De acordo com a divisão da Torá em porções,** esse versículo pertence ao grupo dos versículos anteriores, que se encerra aqui.

 

** O texto da Torá escrito à mão em pergaminho é dividido em “porções”, um termo usado para se referir a passagens curtas que podem ser “abertas” ou “fechadas”, dependendo da forma de paginação no início de cada passagem. “Porção aberta” é uma passagem que começa no início de uma linha e representa uma interrupção maior do que uma “porção fechada”, e a lacuna entre ela e a porção anterior é de pelo menos nove letras. Na Torá existem 290 porções abertas. “Porção fechada” geralmente começa no meio de uma linha, e a lacuna entre ela e a porção anterior é de pelo menos nove letras. Se não houver espaço de nove letras, de modo que não seja possível escrever a primeira palavra da porção na mesma linha, a porção começa numa nova linha, um pouco depois do início da linha. Na Torá existem 379 porções fechadas. (N. do T.)

 

Ruben é a única tribo – exceto Simão, que não é sequer mencionada – sobre a qual não é dita nenhuma característica especial, seja material, espiritual ou moral, enquanto o caráter de todas as outras tribos é descrito por meio de sua terra, bravura, status ou atividade social ou espiritual-moral.
A razão para isso parece ser esta: Depois que o testamento de Jacob, nosso patriarca, privou Ruben da coroa da liderança, que em circunstâncias normais teria sido dada a ele na qualidade de primogênito, sua tribo não recebeu nenhuma singularidade material ou moral. No entanto, como acabamos de dizer, há um bem, o bem mais valioso de todos, que é o único verdadeiro bem da nação – ou seja, a Torá, na qual todas as tribos têm uma participação igual e por meio da qual todas as tribos são consideradas de igual valor. Portanto, mesmo uma tribo que carece de singularidade material e espiritual, como Ruben, é capaz de desenvolver plenamente seus poderes inerentes, contanto que mantenha e observe a Torá. A tribo de Ruben não precisa afundar e desmoronar. E “sua plebe” (metav), aqueles de seus filhos que são humildes e insignificantes, serão apenas um pequeno punhado que pode ser numerado, ou serão poucos em número.

 

Torá Interpretada - Editora Sêfer

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Vezot Heberachá extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.

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