A música é uma das formas mais importantes de expressão da alma e, portanto, a Torá a vê como uma parte essencial de expressar felicidade em nosso serviço a Deus.
O desdém pela felicidade natural da vida não leva à vida eterna, mas muito pelo contrário. O judaísmo leva a música muito a sério, pois ela não é apenas uma fragrância passageira enquanto passamos pela vida. Música é vida; e nossas maiores aspirações de servir a Deus são por meio da música. A Torá tem uma melodia única com a qual devemos nos conectar. Para alguém que não se conecta à melodia da Torá durante o estudo, a Torá é meramente uma coleção de leis que ele deve manter.
A música é capaz de mudar completamente o estado mental de uma pessoa e está até mesmo entre os elementos essenciais para receber a Profecia. Um caminho é o da música que desperta inspiração profética; outro é a música que é tocada como resultado de inspiração profética. Após a destruição do Templo, o mundo testemunhou um declínio na música. As igrejas na Europa foram dos poucos lugares em que a música foi preservada durante a Idade Média e, de fato, as raízes da música da igreja estão nas melodias tocadas pelos profetas para se prepararem para a profecia. Essas músicas foram dadas aos levitas, que tocavam música no Templo, e dos levitas aos sábios de Israel, e deles aos sábios da Igreja. Desde a Renascença, a música cresceu em complexidade, bem como a sensibilidade a diferentes tons. Essa tendência testemunha que o mundo está se preparando para o retorno da Profecia. Assim como a redenção de Israel progride gradualmente, nossa capacidade de santificar o mundo também progride gradualmente. Somos convocados a desenvolver em nós mesmos uma sensibilidade especial à alegria da vida e às melodias musicais que a acompanham.
A felicidade natural da vida
A música é uma das formas mais importantes de expressão da alma. Pode-se dizer que a música é a linguagem da alma.
Há um debate de longa data, cujas origens estão na Bíblia Hebraica, sobre o caminho adequado para se servir a Deus. O rei David e sua esposa, Michal, tinham diferentes opiniões em relação ao desfile que trouxe a Arca da Aliança para Jerusalém. Durante todo o caminho para Jerusalém, as multidões de Israel desfilaram atrás da Arca, regozijando-se e dançando em comemoração ao retorno da Arca ao seu devido lugar. Até mesmo
o rei David, que andava entre o povo, regozijou-se e deleitou-se com a dança. Isto é relatado no livro de Samuel (II 6:13-15):
“E quando os que levavam a Arca do Eterno tinham dado seis passos, ele sacrificava bois e carneiros cevados. E David saltava com todas as suas forças diante do Eterno, e David estava vestido com um simples efod de linho. E David e toda a Casa de Israel fizeram subir a Arca do Eterno com júbilo e ao som do Shofar.”
Quando a arca chegou à Cidade de David, Michal observou a procissão da janela e viu seu marido dançando exuberantemente na multidão. Ela encarou essa cena com desaprovação. Michal sentia que era inapropriado que o Rei de Israel dançasse com as massas (ibid. 16-17):
“E quando a Arca do Eterno estava chegando à Cidade de David, Michal, a filha de Saul, estava olhando pela janela e, ao ver o rei David dançando e saltando diante do Eterno, o desprezou em seu coração. E trouxeram a Arca do Eterno e a puseram no seu lugar, na tenda que David lhe havia armado. E David ofereceu ofertas de elevação perante o Eterno e ofertas de paz.”
Depois que as celebrações terminaram, David voltou para casa e foi recebido com uma forte repreensão por sua esposa (ibid. 20):
“E David voltou para abençoar a sua casa (…) E Michal, a filha de Saul, saiu ao encontro de David, e disse: ‘Quão honrado foi o rei de Israel hoje, descobrindo-se hoje aos olhos das servas de seus servos como se descobre um vadio qualquer!’”
Michal, que vinha de uma família nobre, afirma que, em sua qualidade de rei, não é apropriado que David dance entre as massas em tal evento. Na opinião dela, a honra do rei dita que ele deve manter certa distância da população. David ouve as palavras de sua esposa e responde que, em sua opinião, não há nada de impróprio em seus saltos e danças, porque esta é sua maneira de servir a Deus (ibid. 21-23):
“E David disse a Michal: ‘Perante o Eterno, que escolheu a mim no lugar do teu pai e de toda a sua casa, ordenando-me chefe sobre o povo do Eterno, sobre Israel – sim, perante o Eterno eu dançava! E ainda mais me envilecerei (perante Ele) e me humilharei aos meus olhos; e das servas de quem falaste, por elas serei honrado!’. E Michal, filha de Saul, não teve filhos, até o dia de sua morte.”
A atitude de Michal em relação à vida não é frutífera. O desprezo pela felicidade natural da vida não leva à vida eterna, mas muito pelo contrário. O profeta, portanto, enfatiza o destino de Michal, que ela “não teve filhos, até o dia de sua morte”. A abordagem de David, em contraste, consegue estabelecer gerações inteiras de descendência.
A música como foco da vida
Vemos uma encarnação posterior desse debate entre o movimento hassídico e sua oposição, os mitnagdim. O caminho do hassidismo era incorporar ações que expressassem felicidade em seu serviço a Deus, enquanto os mitnagdim tendiam a enfatizar atividades acadêmicas e rigores haláchicos em seu serviço a Deus. Pode ser surpreendente, então, ver o que o líder dos mitnagdim, o Gaon de Vilna – Rabi Eliáhu ben Shlomo Zalman (1720-1797) – tinha a dizer, conforme registrado por seu aluno, o Rabi Israel Ashkenazi, de Shklov (c. 1770-1839), em sua introdução ao livro Peát Hashulchan:
E ele [o Gaon de Vilna] dizia: “Todas as sabedorias são necessárias para a nossa sagrada Torá e estão incluídas nela.” E ele as conhecia bem e as listava: álgebra, geometria e a sabedoria da música; e ele elogiava muito esta última. Ele costumava dizer que a maior parte da lógica da Torá
e os segredos das canções dos levitas e os segredos do Ticunê Hazôhar não podem ser conhecidos sem ela [a música].
Na literatura cabalística, existe uma melodia especial, uma melodia intrínseca, e é preciso ouvi-la para compreender plenamente seus ensinamentos. Mais tarde, ele expõe sobre a música e suas maravilhosas propriedades:
Por meio da música, as pessoas podem desencarnar enquanto sua alma é arrebatada por sua doçura. E também se pode ressuscitar os mortos com os segredos da música escondidos na Torá.
A música tem um poder tão grande que pode matar e reviver. Conta-se que os soldados de Senaqueribe, quando vieram para conquistar Jerusalém, foram todos mortos em uma noite por um anjo de Deus. Os sábios explicam que o anjo cantou para eles as canções dos anjos até que suas almas deixaram seus corpos.
Assim como a música é capaz de matar, também é capaz de trazer de volta à vida. Isso pode ser explicado pela compreensão do Rabi Samuel de Medina – o “Maharashdam” (1505-1589) – do conceito de “ressurreição dos mortos” mencionado no Talmud em outro contexto (Responsa Maharashdam, Ôrach Chayim 17). Perguntaram ao Rabi Samuel como pode ser que o mais jovem dos sábios talmúdicos sabia como trazer os mortos de volta à vida? Mesmo os maiores profetas – Elias e Eliseu – trouxeram as pessoas de volta à vida apenas em casos muito excepcionais! Em sua resposta, o Rabi Samuel explica que a ressurreição discutida no Talmud não é literalmente dos mortos, mas se refere à restauração de uma vida de fidelidade à Torá, pois “os malfeitores são chamados de ‘mortos’ mesmo enquanto vivos” (TJ Berachót 15b). A partir disso, vemos que alguém que leva um malfeitor a se arrepender é chamado de “ressuscitador dos mortos”. Às vezes, as pessoas são levadas ao arrependimento por causa de uma melodia. Elas ouvem uma harmonia particular e imediatamente sentem que esse era o som que lhes faltava durante toda a vida.
O Rabi Israel de Shklov continua:
Ele [o Gaon de Vilna] dizia: “Moisés trouxe do Monte Sinai algumas melodias e traços de caráter, e o resto foi construído a partir deles.”
Todas as melodias são construídas a partir das melodias fundamentais que Moisés recebeu no Sinai. A Torá tem uma melodia única com a qual devemos nos conectar. Isso pode ser entendido por meio da passagem talmúdica (TB Meguilá 32a): “O Rabi Iochanan disse: ‘Com relação a qualquer um que lê a Torá sem uma melodia ou estuda a Mishná sem uma música, o versículo (Ezequiel 20:25) afirma: ‘Por isso dei-lhes estatutos que não eram bons e juízos pelos quais não poderiam viver’.” A Torá Oral e a Escrita devem ser estudadas com suas melodias associadas. Aquele que não canta enquanto estuda a Torá demonstra que não entendeu a atividade na qual está engajado. Para tal pessoa, a Torá é meramente uma coleção de leis que ela deve manter.
O Rabi Saadia Gaon (c. 882/892-942) dedicou uma seção inteira de seu, “Crenças e Opiniões” (Emunót Vedeót), ao comportamento humano. Um dos capítulos (ensaio 10, cap.18) discute os hábitos de ouvir música e expõe a influência que cada tom, nota e escala têm no estado de espírito de uma pessoa. Parece, então, que o judaísmo leva a música muito a sério. A música não é apenas uma fragrância fugaz enquanto passamos pela vida. Música é vida. E a maior aspiração de servir a Deus é por meio da música.
Elishá ben Abuiá foi um dos maiores sábios tanaítas. No final, ele se tornou um herege e renunciou ao que havia adquirido. Os sábios levantam uma série de explicações alternativas para os acontecimentos de sua vida, desde que ele era um feto no ventre de sua mãe, que podem lançar luz sobre o que aconteceu com ele. Um dos sábios talmúdicos atribui o destino de Elishá ben Abuiá ao fato de que “melodias gregas estavam constantemente emanando de sua boca” (TB Chaguigá 15b). A língua grega é de grande importância, a ponto de se poder escrever um rolo da Torá em grego – algo proibido em qualquer outra língua. Sendo assim, por que atribuir sua heresia à sua afinidade com as melodias gregas?
Tudo em nosso mundo traz certa atmosfera, um humor particular, que é entregue à alma. Esse fato é particularmente perceptível na arquitetura. Um dos parâmetros que devem ser planejados na construção de um edifício é a mensagem que se deseja transmitir. Um campus acadêmico, por exemplo, é planejado de forma a projetar valores particulares aos seus visitantes. Uma sala de estudo da Torá, por outro lado, é planejada para projetar valores diferentes. O mesmo vale para cosmovisões espirituais. A Torá de Israel tem uma vibração particular, enquanto a Filosofia grega tem uma vibração diferente. Elishá ben Abuiá, de fato, aprendeu toda a Torá. Mas sua alma estava fortemente investida na cultura grega, pois as melodias gregas “estavam constantemente” com ele. E como ele não deixou espaço para qualquer experiência melódica alternativa, a Torá que ele aprendeu foi absorvida na atmosfera da cultura grega.
No livro O Cuzarí (2:64-65), o sábio fala ao rei sobre o estado da nação de Israel em sua terra durante o tempo em que havia um rei e o Templo. Ele menciona saudosamente os levitas, cuja única função era tocar música.
Em relação à sabedoria da música, imagine uma nação que aprecia tanto a música que coloca suas canções na aristocracia do povo, isto é, os levitas, que as usam em seu culto sagrado no Templo sagrado nas épocas sagradas. Eles estavam livres do fardo de se sustentar, pois recebiam os dízimos, e não tinham outra ocupação além da música. Essa forma de arte, que é altamente estimada entre a humanidade, foi tida em particular entre esse povo puro e nobre, e David e Samuel foram seus grandes mestres. Você acha que eles a entendiam bem ou não?
O Rei: Não há dúvida de que, nesse lugar sagrado, sua arte era extremamente perfeita e tocava as almas, como dizem as pessoas, que ela muda o estado da alma do homem de um lado para o outro.
Música e Profecia
A música, portanto, é capaz de mudar completamente o estado mental de uma pessoa. O Maimônides (Leis dos Fundamentos da Torá 7:8) escreve que a música está entre os elementos essenciais para receber Profecia:
Nenhum dos profetas profetiza todas as vezes que deseja, mas eles devem preparar suas mentes, descansar em um estado de exultação e contentamento sincero e em solidão imperturbável; pois a profecia não repousa sobre nenhum profeta quando ele está em estado de melancolia ou em estado de indolência, mas apenas quando está em estado de deleite. Portanto, os discípulos dos profetas tinham diante de si a harpa, o tamboril, a flauta e o violino quando buscavam o espírito de profecia…
Também foi dito sobre o profeta Eliseu: os reis de Judá, Israel e Edom se uniram para lutar contra os moabitas. Antes de sair para a batalha, chamaram Eliseu, o profeta, e o rei de Israel perguntou se eles iam ganhar ou perder a batalha. Eliseu, que se lembrava bem dos esquemas da mãe do rei, Izevel, respondeu ofensivamente e disse: se o rei de Judá não estivesse ao seu lado, eu não me daria ao trabalho de olhar para você. Quando a raiva de Eliseu diminuiu, ele pediu para trazer um músico e então começou a profetizar: “‘Ora, tragam-me um músico!’ – e enquanto o músico tocava, a mão do Eterno veio sobre ele” (2 Reis 3:15).
Os sábios explicam que Eliseu solicitou um menestrel porque a profecia o havia abandonado. Sua raiva contra o rei o impediu de profetizar e, para mudar seu humor, ele pediu que o menestrel tocasse para ele.
Naquela época, era costume que flautas fossem tocadas durante um funeral. Podemos entender a importância desse costume a partir da lei mencionada no TB Betsá 6a, segundo a qual as restrições do segundo dia de Iom Tov são suspensas para honrar os mortos. Portanto, é permitido trazer ramos de murta para o morto, costurar mortalhas para eles e trazer flautas para tocar no funeral. Tocar flautas no funeral, como se pode perceber, não é menos importante do que as mortalhas do enterro, e até tem precedência sobre a santidade do segundo dia de Iom Tov. O próprio fato de esse costume não ser posto de lado demonstra que a música é essencial.
Desde que o Templo de Jerusalém foi destruído, e com o passar dos anos, o gosto pela música diminuiu. Mais adiante no parágrafo do Cuzarí trazido acima, o rei dos Cazares diz:
É impossível que [a música] agora atinja o mesmo nível de antes. Deteriorou-se, e serventes e pessoas meio loucas são seus patronos. Verdadeiramente, sábio, afundou de sua grandeza, como vocês [os judeus] afundaram apesar de sua antiga grandeza.
De fato, durante a época do Rabi Iehudá Halevi (1075-1141), a apreciação da música estava em terrível declínio. Havia dois lugares em que era costume tocar música: nas igrejas ou entre os trovadores das cortes reais da Europa. A partir do século XV, a música começou a retornar e avançou um pouco, principalmente nas igrejas cristãs. A Igreja tinha regras claras que moldavam o desenvolvimento da música. Ela estava tão fortemente envolvida na música que adicionar um novo som a uma escala exigia autorização especial. A sensibilidade das pessoas aos tons também melhorou, e isso explica as mudanças nos estilos musicais ao longo do tempo. A tendência à crescente complexidade da música testemunha que o mundo está se preparando para o retorno da Profecia.
Os cristãos têm uma tradição segundo a qual o Papa São Gregório Magno, que viveu na época dos sábios judeus chamados de Savoraítas (aprox. 500-600 e.c.), enviou seus estudiosos para visitar os judeus e aprender com eles as melodias remanescentes do Templo de Jerusalém. De acordo com essa tradição, a fonte do canto gregoriano era, na verdade, as canções dos levitas no Templo. A partir disso podemos aprender que as raízes da música da Igreja estão nas melodias que eram tocadas pelos profetas para se prepararem para a profecia. Essas músicas foram dadas aos levitas que tocavam música no Templo, e dos levitas aos sábios de Israel, e deles aos sábios da Igreja.
O Talmud (Pessachim 117a) fala de dois caminhos de conexão entre música e profecia. O primeiro caminho é por meio da música que desperta a inspiração profética, ou seja, a música tocada antes que o profeta se prepare para ouvir a palavra de Deus. Esse tipo de conexão é chamado de Mizmor ledavid (um salmo de David). O segundo caminho, chamado Ledavid Mizmor (de David, um salmo), é a música que é tocada como resultado da inspiração profética: primeiro, o profeta recebe a profecia e, quando está nesse estado inspirado, toca música. Portanto, existem dois canais de música: um que traz inspiração Divina e outro – ainda mais alto – que é resultado de inspiração Divina.
Música durante festivais e celebrações
Há um dia durante o ano em que a Torá ordena que cada judeu toque música: Rosh Hashaná. É uma música simples: apenas um instrumento é usado, o shofar, e ele emite apenas três sons: tekiá (toque longo), shevarim (três toques mais curtos) e teruá (uma série de toques bem curtos). Esse é o costume atual; mas, durante a época do Templo, eram tocados dois instrumentos. Além do shofar, tocavam uma trombeta, como é dito no Salmo 98:6: “Com trombetas e ao som do Shofar, aclamai ao Rei Eterno.”
Por que não tocamos mais a trombeta e nos contentamos apenas com o shofar? A razão está relacionada à forma como os instrumentos são feitos. A intervenção do homem na confecção do shofar é mínima. A trombeta, por outro lado, é muito mais um produto da intervenção humana, resultado da tecnologia e do artesanato que o ser humano desenvolveu. Quando o Templo estava de pé, a santidade repousava em tudo, incluindo os produtos da criatividade do homem. Porém, depois de sua destruição, nem tudo pode ser santificado. Quanto mais longe algo estiver da natureza simples, maior será a dificuldade em sua santificação. Por isso, atualmente, nosso costume é tocar apenas o shofar, cuja fonte é natural, e não a trombeta, que é uma invenção do homem.
Assim como “a redenção de Israel progride gradualmente”,89 também nossa capacidade de santificar o mundo progride gradualmente. Somos convocados a desenvolver em nós mesmos uma sensibilidade especial à alegria da vida e às melodias musicais que a acompanham.
Neste contexto, devemos mencionar uma história que ocorreu na Terra de Israel durante o início do reassentamento moderno. O movimento político sionista estava ganhando força e, como resultado, foi feito um esforço para renovar a vida cultural da nação na terra. Eliezer Ben-Yehuda (1858-1922) promoveu a fundação de uma orquestra nas cidades Rishon Letsion e Rechovot a fim de “trazer de volta a alegria da vida” à nação. Em resposta, o Chavatsálet, que era o jornal de língua hebraica do Antigo Assentamento, com sede em Jerusalém, escreveu o seguinte: “Se o Sr. Ben-Yehuda deseja promover a alegria da vida, que vá para Paris ou para onde quiser (…) Não procure por deleites aqui, porque aqui é o lugar do Templo do rei, e a terra sobre a qual você anda é terra santa.”
Realmente, a coisa não é tão simples. Há um grão de verdade na resposta do Antigo Assentamento, como consta na Mishná (Sotá 9:11): “Na guerra de Vespasiano, os sábios proibiram o uso de coroas de noivos e o instrumento musical Eirus.” Naquela época, colocavam-se uma coroa de rosas na cabeça dos noivos nos casamentos e tocavam-se o Eirus – instrumento especial usado nessas ocasiões e, alternativamente, nos funerais. Uma vez que os sábios viram a destruição chegando, eles proibiram o povo de continuar em seus costumes regulares que expressavam uma ocasião especialmente alegre.
Em nosso tempo, estamos em um período de transição. Por um lado, o exílio acabou e o povo de Israel retornou à sua terra; por outro lado, o Templo ainda está destruído. Portanto, a questão de tocar música em ocasiões alegres está realmente em debate entre as autoridades haláchicas da geração.
Aquele que escolhe canções de zimrá
Há dois tipos de música em hebraico: shirá e zimrá. O Talmud (TB Sotá, 35a) relata que o rei David foi punido quando trouxe
a Arca da Aliança para Jerusalém, porque se referiu às palavras da Torá como “zemirót” [plural de zimrá]:
Rava ensinou: “Por que motivo David foi punido com a morte de Uzá? Porque ele chamou os assuntos da Torá de zemirót, como foi declarado: ‘Teus estatutos têm meus cânticos [zemirót] por onde quer que eu peregrine’ (Salmo 119:54). Deus disse a ele: ‘Os assuntos da Torá são tão difíceis e exigentes, que está escrito: ‘Voltaste para elas teu olhar? Eis que já se foram’ (Provérbios 23:5), ou seja, aquele cujos olhos se desviam da Torá, mesmo por um momento, a esquecerá; e você as chama de canções? Por isso, farei com que você tropece em um assunto que até os alunos da escola conhecem.
Isso está se referindo à história do Livro 2 de Samuel (6:2-8), onde Uzá morre no meio da celebração em torno da volta da Arca para Jerusalém.
“E David se levantou e partiu com todo o povo que tinha consigo para as planícies de Judá, para trazerem de lá a Arca de Deus, a qual é denominada pelo Nome do Eterno dos Exércitos, que habita sobre os querubins. E puseram a Arca de Deus numa carroça nova e a levaram da casa de Avinadav, em Guivá; e Uzá e Achio – os filhos de Avinadav – conduziam a carroça nova. E a levaram da casa de Avinadav, em Guivá, e vieram com a Arca de Deus, e Achio ia diante da Arca. E David e toda a Casa de Israel tocavam perante o Eterno todo tipo de instrumentos de pau de cipreste, com harpas, saltérios, tambores, pandeiros e címbalos. Ao chegarem à eira de Nachon, Uzá estendeu a mão à Arca de Deus e a segurou, porque os bois a sacudiam.
E a ira do Eterno se acendeu contra Uzá, e Deus o feriu lá por esse erro, e ele morreu lá, junto à Arca de Deus. E David se contristou pelo Eterno haver irrompido e atingido a Uzá, e chamou àquele lugar Pérets-Uzá (‘Rompimento de Uzá’) até hoje.”
Devemos questionar: por que David foi punido tão severamente por chamar assuntos de Torá de zemirót? E, além disso, a própria Bíblia Hebraica se referiu à Torá como shirá: “E agora, escrevei para vós este cântico [shirá], e tu ensina-o aos filhos de Israel” (Deuteronômio 31:19). A resposta é que devemos diferenciar entre shirá e zimrá. Shirá vem da palavra sharshéret, que significa corrente, pois a música é como um elo de uma corrente que liga o interior com o exterior. Zimrá, por outro lado, descreve o lado exterior ou superficial das coisas. Zimrá vem da palavra zemirá, que significa cortar ou aparar. O rei David foi castigado porque enfatizou a exterioridade estética das palavras da Torá em vez de seu significado interno.
A música não é medida apenas pelo exterior e interior. Há também música que é impura. De vez em quando, há um debate em Israel sobre se nossas salas de concerto deveriam ou não apresentar as óperas de Richard Wagner (1813-1883), que era um compositor alemão antissemita, cujas obras foram adotadas pelos nazistas. Algumas pessoas dizem que não há uma boa razão para proibir suas obras, porque devemos diferenciar entre Wagner, o nazista, e Wagner, o compositor. Mas as pessoas dessa opinião não entendem a profundidade a partir
da qual a música é criada e a enormidade de sua influência.90
O filósofo grego, Platão, tinha uma visão ainda mais rigorosa em relação à música. Ele propôs que fossem aprovadas leis que definissem precisamente qual música é apropriada e qual música deveria ser proibida. A posição de Platão é certamente extrema, mas aponta para a seriedade com que ele abordava a música.
Em Gênesis (43:11), conta-se como Jacob apelou a José para libertar seu irmão, Simão, da prisão no Egito. Ele disse a seus filhos que voltassem ao Egito e forneceu-lhes frutos da Terra de Israel como presentes e se referiu a esses frutos como “a zimrá da terra”. Parece que, além do próprio fruto da terra, Jacob procurou enviar a José sua melodia única.
Para encerrar, relataremos uma ideia hassídica que fala de três níveis de canto: o primeiro e mais baixo nível é uma melodia com palavras; o segundo, mais elevado que o anterior, é uma melodia sem palavras; e o nível mais elevado de música – dizem os hassídicos – é a melodia sem som, ou seja, o silêncio.
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Trecho extraído da obra Santidade & Natureza, do Rabino Ury Cherki, Editora Sêfer.
Apresenta, de maneira aprofundada, embasada e abrangente, a visão do judaísmo sobre temas como ambientalismo, vegetarianismo, secularismo e muitos outros – os quais ocupam lugar de destaque na sociedade moderna. Ao ser apresentado a cada tópico, o leitor é convidado a conhecer as diferentes abordagens existentes em relação aos assuntos tratados, de modo que possa estudá-los de forma imparcial e lúcida. No mínimo, o leitor aprenderá a pensar.
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Imagem: Jewish musical instruments é uma pintura de Mimi Eskenazi.