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Parashá Semanal - Leitura da Torá

Três princípios para a vida social e comercial

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Ki Testsê extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer

 

Deuteronômio, Capítulo 22

1 Não verás o boi de teu irmão, ou o seu cordeiro, extraviados, e os ignorarás, mas, sim, os restituirás a teu irmão. 2 E se teu irmão não estiver perto de ti ou não o conheceres, recolhê-los-ás em tua casa, e ficarão contigo até que teu irmão os reclame e então os restituirás a ele. 3 O mesmo farás com o seu jumento, o mesmo farás com a sua veste e o mesmo farás com toda coisa perdida que teu irmão tiver perdido, e tu a encontrares; não poderás ignorar.

4 Não verás o jumento de teu irmão, ou o seu boi, caídos no caminho, e os ignorarás, mas ajudarás a carregá-los.

5 Não haverá traje de homem na mulher, e o homem não usará vestido de mulher, porque é abominável ao Eterno, teu Deus, todo aquele que faz isso.

 

  1. O capítulo 22 se inicia com um grupo de preceitos (versículos 1-5) que determinam três princípios básicos para a vida social e comercial de Israel prestes a começar e pelos quais a nação será capaz de estabelecer sua sociedade de acordo com seu objetivo. Estes princípios são: uma garantia mútua para a preservação da propriedade privada de cada indivíduo (versículos 1-3); a preocupação comum de todos em promover o negócio de cada indivíduo (versículo 4); e a preservação da distinção natural entre homens e mulheres em tudo que se relaciona à ocupação e ao modo pessoal de vida (versículo 5). Como de costume, a Torá nos ensina esses princípios por meio de exemplos e casos concretos, e o primeiro caso é especialmente elucidativo – em muitos aspectos – para o conhecimento da Torá.

O preceito referente à devolução de um objeto perdido, discutida no primeiro caso, está naturalmente relacionada ao preceito anterior – o cuidado com o enterro de um falecido. Um cadáver não deixa de ser uma “perda”, uma vestimenta física que se desprendeu do ser humano, pois quando uma pessoa morre, ela deixa para trás o seu corpo. O motivo que se coloca na base do preceito do enterro é enxergar no corpo a personalidade da pessoa à qual ele pertencia, e exige que cada pessoa o trate como se fosse o corpo de um irmão. O mesmo motivo vê em cada perda a personalidade de seu dono e obriga toda pessoa a tratá-la como se trataria um irmão e um próximo.

Não verás o boi de teu irmão. Foi dito aqui que constitui um preceito cuidar de um animal que se perdeu e devolvê-lo ao seu dono, e no versículo 3 este preceito é estendido a todo tipo de propriedade que foi perdida. Este preceito só se aplica a elementos que, como foi dito aqui no caso dos animais, foram “extraviados”, quando fica comprovado, sem sombra de dúvida, que o animal errou o seu caminho ou que o objeto foi perdido. Por outro lado, se aparentemente o animal ou objeto foram deixados ou colocados ali conscientemente pelo dono, ou mesmo se houver dúvida sobre isso, é proibido mover o elemento encontrado do seu lugar. Mas se a pessoa que o encontrou recolheu-o e o levou para muito longe de onde o achou, de modo que é possível que o dono dele possa ter retornado para lá para pegá-lo de volta, ela não deve devolvê-lo ao seu lugar, mas sim, guardá-lo para o dono, e se houver a possibilidade de uma pessoa provar sua propriedade sobre ele (ver versículo 3), é necessário que a pessoa noticie que aquele elemento foi encontrado. (TB Babá Metsiá 25b; ver Tossafót ibid.).

Com base na linguagem “e os ignorarás”, a lei especifica que “às vezes você deve ignorar e às vezes você não deve ignorar” (TB Babá Metsiá 30a) – ou seja, que a advertência “e os ignorarás” não é uma proibição absoluta, mas sim, que depende da personalidade da pessoa que encontra o elemento e das características do elemento encontrado. A partir disso, aprende-se a regra do “idoso e algo incompatível à sua honra”, pela qual uma pessoa respeitada e importante, que não levaria seu animal para casa por um caminho que passa por uma área de domínio público ou que não carregaria sua própria bolsa em seu ombro, não é obrigada a fazê-lo pela perda de outro.

Essa especificação a princípio rompe a conexão sintática entre vehitalamtá (“e os ignorarás”) e lo tir’ê (“não verás”), interpretando vehitalamtá como uma expressão que indica uma orientação positiva em si mesma. No entanto, após o exame de todo o versículo, parece que é possível interpretar de forma diferente, de modo que “e os ignorarás” não seria uma proibição absoluta de ignorar o dever de prestar assistência, e sim, veio explicar o modo de se enxergar o contexto – ou seja, que tua visão não deve ser “uma visão que ignora” e de quem se comporta como se não visse. Não ignore aquilo que os seus olhos veem; não encare o objeto perdido como se você não o visse e como se isso não tivesse qualquer relação com você. A conclusão direta é que você deve agir como se o objeto perdido fosse sua propriedade e fazer com ele tudo que você faria por uma propriedade sua. De fato, a regra é que “Tudo aquilo que sendo seu a pessoa pediria devolução, sendo de seu próximo ela também deve devolver; e tudo aquilo que sendo seu a pessoa pediria auxílio para descarregar e carregar, sendo de seu próximo ela também deve descarregar e carregar” (ibid. 30b).

Mesmo assim, a Torá espera de uma pessoa virtuosa que ela não aja somente em conformidade aos parâmetros da lei, mas que se ocupe do salvamento dos bens do seu próximo e também o ajude com clemência – para além das diretrizes do juízo (lifnim mishurat hadin), fazendo por seu próximo aquilo que ela não faria mesmo por si mesma. Agir desse modo é um preceito básico de caridade e piedade, e os nossos sábios declararam: “Jerusalém só foi destruída pelo fato de as pessoas terem colocado as suas leis acima das leis da Torá e não atuarem além das diretrizes da lei” (ibid.; ver ibid. 24b e Tossafót ibid.; ver comentário sobre Êxodo 18:20).

mas, sim, os restituirás a teu irmão. Mesmo se isso acontecer muitas vezes, como foi dito: “A pessoa devolveu o animal e este fugiu, e devolveu e fugiu – mesmo quatro ou cinco vezes, é obrigada a devolvê-lo” (TB Babá Metsiá 30b). Os nossos sábios dizem (ibid. 31a) que a obrigação de devolver o animal ao seu proprietário por um número ilimitado de vezes já é aprendida a partir da linguagem “restituirás”, que denota um formato ilimitado em termos de tempo. A expressão “mas, sim” (teshivem) só expande o conceito de restituição e mostra ser suficiente levar o animal a qualquer local protegido pertencente ao proprietário, e não há qualquer obrigação de notificar isso ao proprietário, pois “Não é necessário o conhecimento do proprietário”. Por outro lado, aquele que devolve um elemento roubado ou uma caução é obrigado a notificar o proprietário, pois “Todos os casos exigem o conhecimento dos proprietários, exceto a devolução de elementos perdidos, pois a Torá exigiu várias devoluções” (ibid.). Assim, um ladrão ou guardião não cumpre a sua obrigação de devolver o objeto, e a responsabilidade ainda permanece sobre ele até que o dono descubra que o objeto foi devolvido, para que possa cuidar do mesmo adequadamente. Se roubou um animal vivo, ele deve notificar o proprietário sobre sua devolução, mesmo que o proprietário não tinha conhecimento de que havia sido roubado, pois, nesse ínterim, o animal se acostumou a outros lugares (TB Babá Camá 118b).

  1. E se teu irmão não estiver perto de ti (…) e ficarão contigo (…) e então os restituirás a ele. O preceito de tutela é definido pelo mandamento “e então os restituirás a ele”, a partir do qual aprendemos que se deve cuidar para que o elemento perdido esteja em condições adequadas para ser devolvido a seu proprietário. E se o objeto perdido não se apresentar em condições adequadas de devolução – ou seja, não compensar devolvê-lo, por exemplo, se o custo da tutela for consumir todo o seu valor, pois é óbvio que o proprietário deve compensar a pessoa que o encontrou por todas as despesas incorridas para guardar e cuidar dele –, daí a lei de que “Todo elemento que produz e consome – que produza e consuma; um elemento que não produz e consome – que seja vendido, como foi dito: ‘e então os restituirás a ele’ – verifique como o restituirás a ele”. Ou seja, se possível, o objeto em si deve ser restituído; e se não, deve-se restituir seu valor em dinheiro (TB Babá Metsiá 28b).

até que teu irmão os reclame. É seu dever mantê-los com você, não somente até que alguém os reclame de você, mas até que “teu irmão” – o dono do objeto, assim chamado no versículo 1 – “os” reclame, isto é, até que fique claro que você os está restituindo aos seus donos. E o “teu irmão” comprovará sua afirmação por meio de “os” – por meio da descrição detalhada com que ele descreverá o objeto. Parece que esta lei está incluída no significado da linguagem da Escritura, uma vez que poderia ter sido dito de maneira geral “até que os reclame e então os restituirás a ele”. No entanto, os nossos sábios baseiam esta lei nas palavras “teu irmão os reclame” por meio de sua interpretação, e não de acordo com o significado literal, ou seja, “até que reclames por teu irmão” – isto é, “reclame e investiga-o para saber se ele é um enganador” (ibid. 28a); investiga-o com perguntas para se certificar de que não é um trapaceiro.

Uma pessoa que afirma ser o proprietário do elemento perdido pode provar sua reivindicação por meio de testemunhas ou por meio de sinais identitários, os quais diferem em seu valor como prova de propriedade. Existem três tipos de sinais: (1) os muito óbvios – como um buraco, rasgo ou qualquer outro defeito num lugar específico que tenha sido descrito com exatidão. Em todos esses casos, é difícil supor que sinais semelhantes sejam encontrados em outro objeto do mesmo tipo. Isso vale para um documento escrito que se perdeu, quando, por exemplo, ele é “perfurado ao lado de uma certa letra”; (2) os significativos de distinção – como comprimento, peso ou elementos numéricos exatos, bem como o local onde o elemento perdido foi encontrado; e (3) os deficientes – como tamanho ou cor gerais, por exemplo: grande, pequeno, branco, vermelho etc. Não ficou definido se a comprovação por sinais é aceita de acordo com a Torá (deoráita) ou apenas em virtude de uma regulamentação dos nossos sábios (derabanan). Os sinais do primeiro tipo são suficientes, em qualquer caso, também pela lei da Torá, enquanto os do último não tem utilidade alguma. A dúvida repousa sobre o tipo intermediário, que geralmente são aceitos como evidência suficiente para restituir um elemento perdido.

Às vezes, a prova de propriedade de um objeto depende dos sinais que há na bolsa ou no utensílio dentro dos quais o objeto está, ou dos sinais desse utensílio – como, por exemplo, “uma sela colocada sobre o objeto” (versículo 3). Nesses casos, a questão é se há razão para recear que o proprietário da bolsa ou do utensílio o tenha emprestado à pessoa que encontrou o objeto perdido, de modo que os sinais da bolsa ou do utensílio ainda não representem evidência da propriedade do objeto. Da mesma forma, é necessário esclarecer se há certos objetos que geralmente não se costuma emprestar aos outros (TB Babá Metsiá 27b; TB Guitin 27b; TB Ievamót 120b).

Todas essas coisas são de grande importância também no caso em que o corpo de uma pessoa seja encontrado, a fim de determinar quem é a pessoa morta (TB Ievamót 102a-b).

Mais confiável do que os sinais é a “percepção”, isto é, o reconhecimento de um objeto que independe de determinados sinais, e sim, da impressão geral dele. No entanto, esse reconhecimento não pode ser comprovado objetivamente, e não se deve restituir um elemento perdido com base nela, a menos que o reivindique uma pessoa cuja integridade e honestidade estão acima de qualquer suspeita e que já tenha sido provado que ela é extremamente confiável (TB Babá Metsiá 23b e TB Chulin 96a).

E aquele que encontra um objeto perdido deve anunciar sua descoberta para que seu dono possa reivindicá-lo.

  1. O mesmo farás com o seu jumento. Este versículo define com mais precisão o tipo de elemento perdido que deve ser protegido e restituído, pois além de dizer que “o mesmo farás com toda coisa perdida que teu irmão tiver perdido”, ele complementa os exemplos dados no versículo 1 (boi e cordeiro) e acrescenta a eles “jumento e veste”.

A lei diz (TB Babá Metsiá 27a) que “jumento” vem nos ensinar que um animal deve ser devolvido não apenas por meio de “testemunhas ou sinais sobre o próprio objeto”, mas também por meio de “testemunhas e sinais como ‘uma sela colocada sobre o objeto’”.

“Boi e cordeiro” veio ensinar que até a lã tosquiada de um cordeiro e o pelo cortado da cauda de um boi devem ser devolvidos, pois o boi e o cordeiro devem ser devolvidos na sua totalidade.

“Veste” veio ensinar que, “Da mesma forma que uma ‘veste’ é um objeto especial, que possui sinais identitários, reclamantes e deve ser anunciado, assim também qualquer objeto que possua sinais e reclamantes deve ser anunciado”. Em outras palavras, a pessoa que encontra um objeto deve protegê-lo e restituí-lo apenas se houver sinais evidentes nele, e também se houver proprietários reivindicando-o, como a uma veste. Mas se o objeto não é discernível por qualquer sinal, e pode-se supor que o proprietário já desistiu de recebê-lo de volta, ele passa a pertencer à pessoa que o encontrou.

No entanto, essa lei de que o objeto passa a pertencer à pessoa que o encontrou vigora somente se for razoável supor que, no momento que o objeto foi encontrado, o proprietário reconheceu sua perda e desistiu dele. Mas se a natureza do objeto não permite essa suposição, e a pessoa que o encontrou tomou o objeto antes que o proprietário tomasse ciência da sua perda, então mesmo que os proprietários mais tarde reconheçam sua perda e desistam dele, “o objeto passou para suas mãos de forma proibida”. No momento que a pessoa que encontrou o objeto tomou o mesmo para si, o proprietário ainda tinha direito sobre ele, e a subsequente desistência não transfere o direito de propriedade à pessoa que o encontrou. Uma desistência tardia como essa, que a pessoa que encontrou o objeto espera que ocorra desde o princípio, é chamada de “desistência inconsciente”, e a lei diz que “Desistência inconsciente não é considerada desistência” (ver TB Babá Metsiá 21a-b, em diante), pois o conceito de propriedade deriva de um ato de vontade pessoal e de um ato de compra realizado sobre um objeto, e isso explica a validade legal da desistência. Para mais detalhes sobre este assunto, ver comentário sobre Levítico 25:14.

Há coisas que um proprietário pressupõe de antemão que, certamente, se perderão e ele desiste instintivamente da propriedade sobre eles, como frutas que caem de uma árvore para a rua por causa do vento. Tais frutas são geralmente da pessoa que as encontrou, porque o proprietário “certamente desistiu delas desde o princípio”. No entanto, se os donos são “órfãos” – pequenos órfãos que não podem legalmente desistir de uma propriedade –, essas frutas são proibidas (TB Babá Metsiá 22b).

Estes princípios são os fundamentos das leis que determinam “quais são os elementos encontrados que pertencem a quem os encontrou e quais uma pessoa deve anunciar” (ver ibid. 21a em diante).

o mesmo farás com toda coisa perdida que teu irmão. Isso indica que uma pessoa é obrigada a afastar todo e qualquer perigo que ameace a propriedade do seu próximo, incluindo a perda de um terreno, e portanto, “Se a pessoa vê águas que transbordaram e avançaram, deve cercá-las e detê-las” (ibid. 31a).

que teu irmão tiver perdido, e tu a encontrares. A lei de proteção e devolução por parte de quem encontra um objeto perdido vigora quando “o elemento perdido está com ela e poderia ser encontrado com qualquer pessoa, o que não ocorre com um objeto perdido que o rio levou, pois não está com a pessoa e não pode ser encontrado com qualquer um” (ibid. 22b). A obrigação de devolver bens perdidos vigora apenas com bens que foram perdidos pelos donos, mas estão ao alcance de todas as outras pessoas. No caso de uma perda como essa, o direito dos proprietários expira apenas por meio de desistência, e como já foi dito acima, “Desistência inconsciente não é considerada desistência”. Por outro lado, se o bem está fora do alcance de qualquer pessoa, como algo que foi levado pelo rio, é removido automaticamente do proprietário todo e qualquer direito de propriedade de forma objetiva, mesmo antes de o proprietário tomar ciência do que aconteceu com seu bem ou propriedade (Shitá Mecubétset, ibid.).

não poderás ignorar. Em nossa opinião, essa formulação também indica que essa proibição não é absoluta, e que, como já observamos no versículo 1, há exceções. Se fosse uma proibição absoluta teria sido dito “não ignorarás”. “Não poderás ignorar” significa que você não tem o direito de se isentar dessa obrigação de modo arbitrário – ou seja, a própria Torá indica que há permissão em certos casos.

A questão do guardião de um objeto perdido, se ele é considerado um guardião assalariado ou um guardião não remunerado, e se ele é responsável ou isento de roubo e perda (ver comentário sobre Êxodo 22:6) foi bastante discutida (TB Babá Camá 56b) mas não ficou definida (Chóshen Mishpat 267, comentários do Taz e do Shach, ibid.). É proibido receber um salário por guardar um objeto perdido e pelo trabalho árduo e esforço investido com ele, mas mesmo assim, existe uma opinião de que ele é um guardião assalariado.

De acordo com este ponto de vista, o próprio preceito que a pessoa cumpre com relação aos bens de seu próximo é considerado um ganho lucrativo para ela e como algo que tem valor monetário. Embora o ato do preceito em si não seja considerado um proveito material, pois “os preceitos não foram dados para que se tenha proveito deles”, mesmo assim, o seu cumprimento pode trazer um proveito desta natureza, uma vez que “aquele que está ocupado com um preceito, está isento de cumprir outro” (ver acima comentário sobre 6:7, no final), e quando a pessoa está ocupada com este preceito que não envolve perda financeira, ela fica isenta do cumprimento de outo preceito que pode surgir e estar envolvido com perda financeira, e assim, por exemplo, esse guardião fica isento de doar para a caridade enquanto estiver empenhado em cuidar de um objeto perdido.

Outra interpretação dessa visão explica que, “uma vez que o Misericordioso o obrigou, ele se assemelha a um guardião assalariado” – ou seja, como o cuidado com o objeto perdido não lhe surgiu voluntariamente, mas foi um dever imposto a ele pelo Eterno, tal cuidado se aplica a ele com a responsabilidade total dos guardiões, e da mesma forma que o que motiva o guardião assalariado é a remuneração que ele recebe, aqui a motivação é o cumprimento de um preceito da Torá.

Como já dissemos, não se deve receber uma recompensa pela restituição de um objeto perdido, porque isso é um dever imposto à pessoa pela lei. No entanto, se a pessoa que encontra a perda estiver ocupada naquele mesmo momento com um trabalho pelo qual é remunerada, ela não é obrigada a largar o seu trabalho sem que receba uma compensação adequada. Esta permissão é formulada da seguinte maneira (TB Babá Metsiá 31b): “Dá-se à pessoa um salário como um trabalhador ocioso desse mesmo trabalho do qual abdicou”, e essa lei é interpretada de várias maneiras. Há quem diga que a ocupação com o objeto perdido é considerada uma atividade que deve ser remunerada de acordo com a estimativa de quanto a pessoa que encontrou o objeto perdido receberia para deixar o trabalho pelo qual ele é paga a fim de executar o trabalho mais leve de cuidar dele. Outros dizem que a restituição de um objeto perdido não é, de forma alguma, levada em conta, pois é um dever que lhe cabe, mas calcula-se um salário com base na estimativa de quanto ela receberia para deixar o trabalho pelo qual é remunerada a fim de ficar ocioso. A questão em discussão aqui é se um trabalhador ocioso é um trabalhador que não está envolvido em geral com algum trabalho ou se é um trabalhador que está empregado numa atividade mais leve.

O sábio Shach (Chóshen Mishpat 265:1) determina de acordo com a primeira visão. Se sobre a ocupação com o objeto perdido se pode reivindicar um salário maior do que a remuneração à qual ele abdicou, em todos os casos ele pode reivindicar apenas o salário pelo trabalho do qual abdicou, porque a restituição do objeto perdido deve ser feita graciosamente. Na opinião do Rif, do Bach e demais autoridades rabínicas, não se computa de forma alguma a ocupação com o objeto perdido, e o salário de um trabalhador ocioso é somente a remuneração à qual a pessoa abdicou para cuidar dele. Este salário não é calculado conforme os horários mais bem pagos quando há forte demanda por este trabalho, mas sim, de acordo com o salário pago durante o mesmo tempo em que os trabalhadores da mesma atividade profissional estão ociosos e o volume da demanda por esse trabalho é maior do que a capacidade da força de trabalho oferecida (ver o Maguid Mishnê, Leis de Roubo e Perdas 12:4). A linguagem “como um trabalhador ocioso desse mesmo trabalho” – e não “desse trabalho” – corrobora essa interpretação.

  1. Não verás o jumento de teu irmão, ou o seu boi, caídos no caminho. Os animais e suas cargas estão estirados no caminho, e a pessoa que guia os animais tem dificuldade para carregá-los e erguê-los com a carga (TB Babá Metsiá 32a). Aqui a Escritura fala de auxílio para carregar a carga, enquanto no Êxodo 23:5 ela fala de auxílio para descarregar a carga. Ali (versículos 4-5), a restituição de elementos perdidos e o ato de descarregar são mencionados como obrigações de prestação de auxílio, até mesmo para um inimigo e para “aquele que tua odeias”, e no caso do descarregamento também é um dever salvar o animal do sofrimento. Aqui, no entanto, é tratada a obrigação de salvar os bens e prestar auxílio como um dever geral que regulamenta o comércio numa sociedade.

No TB Babá Metsiá (ibid.), a lei diz: “O descarregamento é gratuito.” Descarregar – como a restituição de objetos perdidos – é um preceito que deve ser feito sem remuneração, mas é permitido receber salário para ajudar a carregar o animal. Enquanto a restituição de objetos perdidos e o descarregamento vêm salvar uma pessoa de uma perda monetária, o carregamento vem para ajudar uma pessoa a cumprir seu propósito. Esta pode ser a razão para a distinção da lei em relação à obtenção de remuneração.

A partir do exposto, conclui-se que é permitido receber um salário para auxiliar num carregamento. Da mesma forma, a obrigação de restituir um objeto perdido sem receber um salário é imposta apenas a uma pessoa que não tem outro emprego, mas quem está envolvido com um trabalho não tem que abandonar seu próprio sustento sem uma compensação adequada. Essas leis são muito típicas da visão da Torá sobre o cumprimento dos deveres em sociedade.

A Torá de Israel não é parceira desse entusiasmo excessivo que faz da autoanulação completa do ser humano uma regra importante da vida social e que vê no autossacrifício uma virtude espiritual. A Torá de Israel não aceita tal filosofia, porque ela jamais poderia se tornar um padrão geral. De fato, se ela fosse realmente instituída, todo o comércio acabaria. E se tal ideal impraticável fosse aceito como um padrão de comportamento cotidiano, então as pessoas com uma “abordagem prática” sentiriam que não teriam escolha senão agir de maneira egoisticamente grosseira. O princípio social judaico, que exige e obriga certa atuação de todas as pessoas, confere plena validade moral à necessidade do ser humano de assegurar sua existência e independência. Ao mesmo tempo, a Torá exige que, além de nos preocuparmos com as nossas necessidades, sejamos solidários, com a mesma seriedade, na ocupação e no auxílio aos nossos próximos e à promoção de seus negócios.

A verdade judaica rejeita a ideia de que existe algum egoísmo nos esforços do ser humano em seus próprios assuntos, pois, de fato, ela vê tal esforço como um dever ordenado pelo Eterno. Só assim ela pode realmente carimbar o selo Divino “Eu sou o Eterno” em sua grande regra: “E amarás o bem-estar de teu próximo como se fosse o teu próprio”. Por isso, também, a Mishná (TB Babá Metsiá 33a) pode dizer que, de acordo com a letra estrita da lei, a regra geral é que se o seu dinheiro e o dinheiro do seu amigo estão em perigo, e você só tem condições de salvar um deles, é dada prioridade ao seu dinheiro, pois “o seu dinheiro tem precedência”. A Torá não exige que você abandone o seu dinheiro, e o trecho “O Rav Iehudá, citando Rav” relaciona esta regra à restrição de “’contudo, não haverá no meio de ti mendigos’ (acima 15:4) – o teu dinheiro tem precedência sobre o dinheiro de qualquer pessoa”, e tudo indica que este argumento não está tão distante do significado literal daquele trecho. O método que exige absoluta paridade entre interesses próprios e de terceiros é o sistema comunista, e a conclusão lógica que essa doutrina demanda é abolir todo o conceito de propriedade monetária e transformar o Estado num proletariado.*

 

* O “Manifesto Comunista”, de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), foi publicado em 1848 e certamente causou grande impacto na sociedade alemã na qual o Rabino Hirsch estava inserido. Aqui, em pouquíssimas palavras, ele destaca a contradição entre ele e o espírito da Torá. (N. do E.)

 

Apesar disso, o mesmo trecho do Talmud mencionado acima acrescenta uma advertência: “Todo aquele que se sustentar desta maneira chegará a esse fim” – ou seja, quem insistir em aderir a este princípio de dar precedência ao próprio dinheiro, ao final chegará à mesma condição de pobreza que procurou evitar, pois a Torá determina para todas as nossas ações as diretrizes estritas da lei cuja transgressão representa um pecado, mas a própria Torá exige que sejamos nobres o suficiente e ultrapassemos essas diretrizes e, dentro dos limites permitidos pelo Eterno, desistamos dos nossos direitos em prol do nosso próximo e façamos aquilo que, de acordo com as circunstâncias, nos parece ser “correto e bom aos olhos do Eterno” (ver acima comentário sobre 6:18-19).

Assim o Rashi interpreta os dois argumentos complementares do trecho mencionado: “Não haverá no meio de ti mendigos – cuidado com a pobreza.” A obrigação de cuidar de si mesmo só vigora se o seu objetivo for se salvar da pobreza, mas “Todo aquele que se sustenta desta maneira, mesmo que a Escritura não lhe imponha, deve atuar além das diretrizes estritas da lei, e não ser muito exato em relação ao conceito de “o meu dinheiro tem precedência”, se não for no caso de uma perda comprovada; e se a pessoa é demasiadamente exigente em relação a esta ideia, ela descarrega de si o jugo da benevolência e da justiça social e, no final, carecerá da piedade alheia”.

mas ajudarás a carregá-los. Este é também o sentido no Êxodo 23:5. Uma pessoa só deve prestar auxílio se aquele que precisa de ajuda se esforça ao máximo para ajudar a si mesmo. Mas se esse indivíduo não é fraco e não está doente e, mesmo assim, “sentou-se e lhe disse: ‘Já que você tem a obrigação de cumprir esse preceito – se desejar, descarregue’, a pessoa que poderia prestar auxílio está isenta”. No entanto, a pessoa tem a obrigação de descarregar para evitar o sofrimento do animal, e nesse caso, tem o direito de exigir uma remuneração (TB Babá Metsiá 32a-b).

  1. Não haverá. Várias interpretações foram dadas a essas proibições no TB Nazir 59a. De acordo com um dos pontos de vista, a Torá proíbe o uso de uma vestimenta do sexo oposto somente se isto ocorrer para fins de prostituição. Mas, na opinião do Rabi Eliezer ben Iaacov, adotada pela lei, a declaração “Não haverá traje de homem na mulher” quer dizer que “uma mulher não deve pegar em armas para sair à guerra”; já a declaração “e o homem não usará vestido de mulher” significa que “um homem não deve fazer os tratamentos cosméticos de uma mulher”, sendo proibido ao homem se enfeitar como fazem as mulheres. De acordo com esse ponto de vista, a Torá não pretende proibir uma pessoa de esconder a anatomia de seu gênero usando as roupas do gênero oposto, mas sim, que um gênero use aquilo que é particularmente adequado à natureza do gênero oposto. Nenhum homem deve cuidar de sua aparência física exterior da forma adequada à natureza de uma mulher, e uma mulher não deve se apresentar em atividades apropriadas à natureza de um homem (pois o Rabi Eliezer não disse que “uma mulher não deve pegar em armas”, mas sim, “pegar em armas para sair à guerra”). Na prática, todo cuidado dedicado ao tratamento da pele e dos cabelos, maquiagem, coloração dos cabelos ou utilização exagerada do espelho – além do que é aceitável para um homem –, assim como qualquer roupa ou joias femininas são proibidas aos homens, porque “o homem não usará vestido de mulher” (ibid.; TB Avodá Zará 29a, Tossafót, “hamistapêr”).

 

Torá Interpretada - Editora Sêfer

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Ki Testsê extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.

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