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Parashá Semanal - Leitura da Torá

As premissas de uma rebelião civil

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Côrach extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer

 

Números, Capítulo 16

1 E tomou Côrach [Coré] ben Its’har, neto de Kehat, bisneto de Levi, e Datan e Aviram, filhos de Eliav, e On ben Pélet, os quais eram da tribo de Ruben, 2 e levantaram-se perante Moisés com 250 homens dos filhos de Israel, chefes da congregação, chamados à assembleia, homens de renome. 3 E congregaram-se contra Moisés e contra Aarão, e disseram‑lhes: Bastai-vos! Pois toda a congregação, todos eles são santos, e entre eles se acha o Eterno; e por que vos elevais sobre a congregação do Eterno? 4 E Moisés ouviu e caiu sobre o seu rosto.

 

  1. A porção Shelach-Lechá narra uma rebelião contra Deus; a porção Côrach narra uma rebelião contra Moisés.

E tomou Côrach. Não há objeto na oração. Um caso semelhante: “E Avshalom tomou, e levantou para si, quando ainda vivo, uma coluna…” (2 Samuel 18:18). Gramaticalmente, toda a ação descrita posteriormente é o objeto do verbo “tomar”. Logicamente, o verbo “tomar” descreve o comportamento inadequado de uma pessoa que age em benefício próprio. Avshalom assumiu o direito e teve a audácia de levantar para si uma coluna memorial enquanto ainda estava vivo. Côrach assumiu o direito e teve a audácia de admoestar Moisés e Aarão a respeito de sua posição dentro da nação. E como a Escritura usa a linguagem “tomar”, ela também aponta que foram interesses egoístas que levaram Côrach a fazer as coisas que fez, e que ele agiu para o seu próprio bem, e a maneira como se apresentou, como se representasse os assuntos públicos, não passava de ilusão e fachada.

  1. e levantaram-se perante Moisés. A ordem em que os rebeldes são apresentados na história parece indicar o grau de seu envolvimento na revolta. Côrach foi o incentivador e o instigador da rebelião, e portanto “E tomou Côrach”. Datan, Aviram e On se juntaram a ele como instigadores adicionais. Esses quatro se levantaram diante de Moisés (“e levantaram-se…”) depois de terem conquistado os corações de outras 250 pessoas do povo, que os apoiaram como uma multidão rebelde (“E congregaram-se…”).
  2. E congregaram-se (…) disseram-lhes. Côrach, Datan e Aviram se levantaram diante de Moisés, e depois que as 250 pessoas instigadas por eles a apoiar suas reivindicações e demandas se reuniram em massa, Côrach e seus companheiros disseram, alegando falar em nome do público: “Bastai-vos! Pois…”. E a palavra “pois” indica que a alegação “toda a congregação…” justifica a alegação anterior, “Bastai-vos”. No entanto, a pergunta que vem na sequência – “e por que vos elevais sobre a congregação do Eterno?” – não é justificada pelas palavras que a precederam, uma vez que não é associada a elas por meio das palavras “por que, então”; pelo contrário, é uma nova pergunta, acrescida às palavras anteriores por meio da linguagem “e por que”. Portanto, parece que eles enfrentaram Moisés com dois argumentos, ou, mais precisamente, com um argumento e uma admoestação.

Primeiro, eles alegaram “toda a congregação…” e, portanto, “Bastai-vos”. “Toda a congregação” – não apenas a coletividade como um todo (“toda ela”), mas “todos eles”, cada um de seus membros individuais – “todos eles são santos, e entre eles se acha o Eterno” – cada um dos 600 mil membros da congregação é santo e, portanto, próximo do Eterno. Portanto, não há necessidade de um sacerdote para expressar seus pensamentos e sentimentos em nome dos indivíduos e aproximá-los de Deus através de um sacrifício. Deus prometeu manifestar Sua Presença Divina sobre esses 600 mil, e não apenas sobre um determinado indivíduo e, consequentemente, Ele não precisa de um profeta para transmitir Suas palavras a esses 600 mil. Portanto, “Bastai-vos!”; todos são próximos de Deus, e Deus está próximo a todos, e não são necessários nem Aarão e nem Moisés. Verifica-se que a posição de Moisés e Aarão é uma pretensão atrevida baseada numa mentira.

Além disso, mesmo que, de fato, houvesse a necessidade de um indivíduo que encabeçasse a comunidade e a representasse, ainda assim, por que justamente Aarão e Moisés? Por que não será dado ao povo o direito de escolher seus próprios representantes? Qual a justificativa de Aarão e Moisés para colocarem a si mesmos à frente da nação?

  1. E Moisés ouviu. Moisés ouviu, ou, mais precisamente, entendeu o que levou às reivindicações e acusações dirigidas a ele e seu propósito. Tratava-se da negação do fundamento Divino de sua missão. Caso eles tivessem chegado a essa opinião através de um modo de pensar equivocado, seria possível fazê-los enxergar seu erro e corrigi-los. No entanto, eles formaram tal opinião movidos por ciúmes e perseguição de honra e prestígio. Fingindo representar os interesses do público, eles procuraram satisfazer suas aspirações egoístas e, para esse fim, usaram teorias vazias e rebuscadas que apelavam ao amor próprio do povo. Dessa maneira, eles procuraram remover Moisés e Aarão de seus postos.

As premissas para a rebelião de Côrach são falsas, e suas conclusões – do modo como foram utilizadas naquela situação – são igualmente falsas. “Toda a congregação, todos eles” não “são santos” mesmo agora. Eles são “homens de santidade” (Êxodo 22:30), pessoas dotadas de um propósito sagrado. “Sereis santos” (Levítico 19:2) – seu propósito é ser santos, e através desse propósito em si eles se tornam “santos para o seu Deus” (ibid. 21:6) e “um povo santo para o Eterno” (ver DT 7:6, entre outros). Eles são pessoas consagradas a Deus, um povo consagrado a Deus, e com todos os seus 248 órgãos e 365 tendões, seja como indivíduos seja como povo, eles são aquisição exclusiva de Deus – porém, eles ainda não são “santos”. Seu trabalho é ascender e elevar a si mesmos continuamente em direção ao seu propósito sagrado. Eles não devem confundir realidade com vocação e achar que já são santos apenas porque foram consagrados para um objetivo santo. Mas seu propósito sagrado deve sempre estar diante de seus olhos, como uma meta distante à qual aspiram. E para que tudo isso se tornasse realidade, um Templo foi erguido entre eles, o qual continha o testemunho dado a eles por Deus, dando à vocação sagrada deles a sua representação simbólica ideal. Esta é a razão pela qual não é apropriado que todos tenham acesso ilimitado ao Templo. Mesmo Aarão só podia se aproximar mediante o mandamento explícito de Deus, e mesmo então ele não o fazia na qualidade de uma pessoa particular, mas apenas quando estava vestido com as roupas que simbolizam seu serviço. Precisamente por esse motivo, é dito ao povo e aos sacerdotes: “e o estranho que se chegar será morto”, para que não troquem a realidade pela vocação, tirando assim do Templo a sua alma e anulando completamente seu efeito iluminador. Toda a divisão do povo em classes – sacerdotes, levitas, israelitas –, com o Templo delimitado e cercado no meio, é uma expressão do chamado de “Sereis santos”, mas ainda não alcançastes o nível de “sois santos”!

Além disso, mesmo que fosse verdade que “todos eles são santos” e que, de fato, “entre eles se acha o Eterno” – mesmo assim, a razão estaria com Côrach e seus companheiros apenas se a outorga da Torá já estivesse concluída e a nação já houvesse alcançado a terra de seu descanso e herança. De fato, se toda a Torá já houvesse sido completamente transmitida, de modo que a regra “não está nos céus” (DT 30:12; TB Babá Metsiá 59b) já fosse praticada, então, a partir desse momento, a Torá só estaria esperando ser observada e manifestada pela nação. E caso o estado da nação também já tivesse chegado ao lugar em que precisa estar, de modo que o único objetivo da nação fosse cumprir a Torá dessa maneira e para esse fim, a própria nação elegeria dentre os seus membros os melhores e mais talentosos para liderar a comunidade e cuidar de seus assuntos. Na prática, algo semelhante a essa eleição já havia ocorrido no momento da rebelião, já que a nação já tinha “chefes da congregação, chamados à assembleia”, dos quais os 250 rebeldes eram exemplos vivos (versículo 2). Verifica-se – e, a propósito, isso é algo digno de nota – que a própria vinda dessas pessoas contradizia a primeira parte de sua acusação (“Pois toda a congregação, todos eles são santos”), pois elas próprias eram uma clara prova da necessidade de representantes exemplares, mesmo em relação a assuntos nos quais a igualdade coletiva não está em dúvida. Porém, quando se trata de assuntos que não emergiram do povo ou foram realizados por ele, cuja iniciativa não reside no povo ou em nenhuma esfera humana, assuntos que não surgem do povo, mas que vêm ao povo a respeito da palavra de Deus para o povo, onde está a pessoa ou nação que ouse perguntar: “Por que Deus escolheu você, e somente você?” Que base pode haver para tal ousadia dirigida a Deus: “Escolha este, e não aquele, para ser seu emissário”?

O verdadeiro emissário de Deus – e Moisés, acima de todos – certamente seria o primeiro a admitir que ele não é digno do cargo, e imploraria que Deus escolhesse uma pessoa mais adequada, melhor e mais talentosa para ser Seu emissário. No entanto, se, apesar de seus protestos, Deus o enviou, e não outro, como o homem mais digno e preparado para levar a Sua Palavra, quem ousaria se apresentar diante dele e lhe perguntar: “Por que você se eleva sobre a congregação do Eterno?”? A alegação referente à “elevação” constitui uma negação do fato de que Deus foi aquele que o enviou; ela implica que Moisés é um farsante e sua missão é uma mentira. Portanto –

E Moisés ouviu e caiu sobre o seu rosto. A veracidade de um fato só pode ser comprovada através de outro fato, mas não pela razão. A razão pode determinar que um fato é plausível ou necessário, mas jamais é capaz de provar que o fato é verdadeiro. A comprovação da veracidade das palavras do emissário só pode vir daquele que o enviou; da mesma forma, a comprovação da veracidade da missão de Moisés só pode vir do próprio Eterno. Por essa razão, Moisés não diz nada para contradizer as alegações de Côrach. Se não for a vontade de Deus provar novamente a verdade da missão de Moisés, verifica-se que sua missão de fato terminou – “E Moisés caiu sobre o seu rosto”.

Da continuação parece que o ciúme de Côrach foi despertado principalmente pela posição do sacerdócio de Aarão, e que ele procurou minar a validade das palavras de Moisés apenas para acabar com o status privilegiado de Aarão, corroborado pela liderança de Moisés. Mesmo assim, Aarão não agiu ativamente durante todo o evento. Somente a pedido de Moisés ele aceitou assumir sua posição e a honra subsequente, e mesmo em relação a ele, a posição e a honra não eram um assunto pessoal. Ele não puxará sua espada para protegê-las e não desperdiçará sequer uma palavra por elas. Tudo dependia da veracidade da missão de seu irmão, e somente Deus podia provar essa veracidade ao povo uma vez mais.

Torá Interpretada - Editora Sêfer

 

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Côrach extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.

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