Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção SHEMINÍ extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer
Levítico, Capítulo 10
1 E os filhos de Aarão, Nadav e Avihú, tomaram cada um seu incensário e puseram fogo neles, e puseram sobre eles incenso e ofereceram diante do Eterno um fogo estranho, o que não lhes fora ordenado. 2 E saiu fogo de diante do Eterno e os queimou, e morreram diante do Eterno.
- Já mencionamos no comentário sobre Gênesis 4:3-4 que, ao relatar sobre o primeiro sacrifício do mundo, a Escritura separa, por meio de palavras ou de alguma ação, a oferta rechaçada da que fora aceita, e isso ocorre em todos os outros sacrifícios relatados posteriormente, o que refuta categoricamente a ideia absurda e imprópria com a qual se enaltecem os “vanguardistas” do nosso tempo, de que as ofertas possuíam apenas um valor relativo e, por isso, o serviço não perdurou após o período dos profetas, quando a percepção das pessoas e sua visão de mundo teria avançado além do “primitivismo” da Torá de Moisés.
Analisemos, porém, por que o sacrifício de Caim foi rechaçado enquanto o de seu irmão Abel foi aceito, bem como as advertências que o Rei Salomão recebeu ao construir o Templo e logo após concluí-lo (1 Reis 6:12-13; 9:3-9). Todos esses trechos declaram de forma precisa e sem margem para dúvidas que o valor do Templo e dos sacrifícios depende da medida com que cumprimos as nossas obrigações para com o Eterno.
No caso dos filhos de Aarão, que morreram pela transgressão de sua oferta, um fogo de Deus os consumiu, ao mesmo tempo que o mesmo fogo “aceitou” o sacrifício do povo, expressando a concordância do Eterno e comprovando que Sua Presença habita em meio ao povo. Isso refuta argumentos e percepções equivocadas a respeito do valor dos sacrifícios. A própria morte dos filhos de Aarão foi uma advertência clara contra a nossa arrogância e qualquer subjetivismo no terreno prático do nosso serviço ao Eterno.
E os filhos de Aarão, Nadav e Avihú, tomaram. “‘Os filhos de Aarão’ – foram chamados assim porque não deram a devida honra a seu pai, Aarão. ‘Nadav e Avihú’ – isso indica que não se aconselharam com Moisés. ‘Cada um seu incensário’ – cada um decidiu o que fazer por si próprio e tampouco se aconselharam um com o outro” (Torat Cohanim).
A própria linguagem da Torá demonstra que os filhos de Aarão se comportaram com arrogância, pois não está escrito “Nadav e Avihú tomaram incensários e neles colocaram fogo”. Primeiramente, a Torá enfatiza a proximidade deles com o pai – “filhos de Aarão”. Depois, ela utiliza a expressão “cada um seu incensário”, que também denota arrogância. A partir disso, concluímos que também “Nadav e Avihú” envolve uma conotação semelhante, pois eles eram os “filhos de Aarão”, porém não recorreram ao conselho e à permissão do pai antes de agir. Talvez, justamente por serem os filhos de Aarão, acreditavam não precisar pedir permissão de ninguém. Porém, na prática, eram “Nadav e Avihú”, apenas indivíduos em meio a seu povo e, mesmo assim, não pediram a permissão dos líderes da nação para agir. Talvez eles tivessem uma percepção confusa a respeito de sua própria posição e, por isso, confiaram apenas em sua opinião, sem consultar Moisés ou Aarão. Além disso, a expressão “cada um seu incensário” indica que cada um agiu à sua própria maneira, e sequer consultaram um ao outro!
É evidente que eles tinham louváveis intenções, pois, mesmo após seu pecado, são chamados de “próximos” (versículo 3). Sua boa intenção é esclarecida pelo Torat Cohanim: “Eles, em sua alegria, ao ver um novo fogo, quiseram acrescentar amor ao amor.” Porém, podemos constatar que, no momento que todo o povo teve o mérito de ser testemunha da revelação da proximidade do Eterno, Nadav e Avihú sentiram a necessidade de trazer uma oferta separada – individual – que viesse deles, e isto demonstra que não se tratava do verdadeiro espírito do sacerdócio que fora incutido neles, pois, no judaísmo, os sacerdotes e o povo são um só, e os sacerdotes não têm mérito por si. A essência da importância dos sacerdotes deriva do fato de eles estarem no seio do povo, e é isso que justifica a sua posição diante do Eterno.
Aparentemente, foi exatamente essa “proximidade” que os levou ao pecado. Além disso, eles se aproximaram de modo inapropriado em todos os aspectos. Estas duas características de seu pecado foram ensinadas pelo Torat Cohanim (16:1) a partir das variações de linguagem que a Torá utiliza para descrever a ação por eles realizada: “quando se aproximaram diante do Eterno e morreram” (16:1) e “Nadav e Avihú morreram diante do Eterno, quando ofereceram fogo estranho diante do Eterno” (Números 3:4). Tanto a “proximidade” subjetiva quanto o “oferecimento”* objetivo de um sacrifício inapropriado constituem pecado.
*As palavras “proximidade” (kirvá) e “oferecimento” (hacravá) têm a mesma raiz e indicam proximidade. (N. do T.)
De fato, o oferecimento do sacrifício foi realizado de forma inapropriada no que se refere aos incensários, ao fogo e ao incenso, pois nenhum destes seguia as regras da lei judaica. Todo utensílio consagrado ao serviço deve ser público e servir apenas a propósitos sagrados (ver Maimônides, Leis dos Utensílios do Templo 8:7; Leis do Templo 1:20). Ao trazer a oferta num utensílio consagrado pertencente à nação, o ofertante deve se colocar sobre a terra sagrada da nação de acordo com a sua Torá e entregar-se às demandas do Templo, abdicando de qualquer desejo pessoal ou impulso. Porém, os incensários de Nadav e Avihú eram “seu incensário”, ou seja, cada um utilizou um incensário que lhe pertencia e, portanto, não trouxeram a oferta num utensílio do Templo, de modo que não abdicaram de suas questões pessoais.
e puseram fogo neles. Para ser mais preciso, “um fogo estranho”, conforme o Rabi Akiva esclarece no Torat Cohanim: “do fogareiro” – ou seja, eles não tomaram o fogo do altar, conforme exigido para a queima do incenso diário ou para a queima do incenso do Iom Kipúr. Isto significa que eles não tomaram do “fogo da Torá”, que demanda a entrega de toda a nação, dos mais tenros aos mais idosos. Eles tomaram o fogo do fogareiro de suas próprias casas.
Por fim, em relação ao incenso em si, ele é o único tipo de sacrifício que nunca é realizado de forma voluntária, nem pelo coletivo e nem pelo indivíduo, e que é oferecido somente devido a uma obrigação diária da nação ou à obrigação do sumo sacerdote no Iom Kipúr (TB Menachót 50a-b), pois o incenso simboliza o homem que está imerso totalmente no cumprimento da vontade do Eterno para fazer-Lhe agrado, e ele deve ser totalmente elevado para que Lhe seja um “aroma agradável”. Quando esta ideia é levada a cabo porque foi determinado pelo Eterno numa oferta obrigatória, ela representa o ideal das demandas do Eterno; quando é realizada a queima do incenso por decisão de um indivíduo, de forma voluntária, há algo de orgulho ou arrogância envolvido na ideia da oferta.
Em relação ao sacrifício de Nadav e Avihú que levou à tragédia, a Torá enfatiza, acima de tudo, que se tratou de um sacrifício “que não lhes fora ordenado”. Ou seja, mesmo que eles não tivessem incorrido em proibições nos procedimentos de seu sacrifício (conforme vimos), a oferta por si só, que “não lhes fora ordenada” pelo Eterno, constituía uma proibição.
No serviço dos sacrifícios não há espaço para impulsividade subjetiva. Até mesmo as ofertas voluntárias precisam ser realizadas de acordo com as regras estipuladas para elas. O ofertante que busca a proximidade do Eterno precisa saber que a única forma de a alcançar é ouvindo Sua voz e aceitando o jugo de Seus mandamentos.
Este é precisamente o ponto que diferencia o judaísmo da idolatria. O idólatra busca, através de sua oferenda, submeter seu deus à sua própria vontade, enquanto o judeu se coloca, através de sua oferta, no serviço do Eterno e aceita sobre si o jugo de Seus mandamentos. Portanto, todas as ofertas existentes no judaísmo são realizadas a partir de uma ordem Divina na forma de mandamentos, e o ofertante aceita para si, através de sua oferta, que seguirá a ordem Divina como fundamento de sua vida. Se uma pessoa inventa sacrifícios está se desviando da essência da verdade que eles buscam representar. Uma oferta inventada serve apenas para enaltecer a vontade e os impulsos pessoais do indivíduo no lugar de dar ouvidos à voz do Eterno e aceitar Seus mandamentos.
Agora podemos entender a morte dos filhos de Aarão. Sua morte, logo após a inauguração do Templo, constitui uma advertência para todos os sacerdotes no futuro, de que é necessário remover toda e qualquer arbitrariedade de impulsos pessoais e vontade particular do indivíduo no campo de atuação do Templo, cujo propósito é ser um Templo para a Torá. No judaísmo, a função do sacerdote não é promover inovações no serviço, mas fazer exatamente a vontade do Eterno.
Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Sheminí extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.


