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Contos e parábolas

Um suspiro e um sorriso

O rabi Saadia era o líder da famosa Ieshivá de Sura, na Babilônia. Sua casa era como um palácio real, um farol para toda a comunidade judaica. De sua casa majestosa, rabi Saadia comandava os assuntos dos judeus da Babilônia, irradiando o brilho de sua luz até os cantos mais distantes do planeta.

Era o mês de Nissan. Os judeus de todo o mundo estavam muito ocupados, limpando suas casas de qualquer traço de chamets. Na casa do rabi Saadia, as atividades estavam no auge. Paredes e janelas estavam sendo lavadas, cada canto era inspecionado, e a mobília antiga estava sendo descartada para dar lugar a peças mais novas e luxuosas.

Um dos criados fiéis do rabi Saadia estava à beira do rio, submergindo em suas águas novas louças conforme requer a halachá, antes que estas possam ser usadas numa casa judia. O rabi Saadia havia comprado um novo aparelho de cristal em honra à Festa da Libertação, quando todos devem sentir-se como reis, e seu criado havia posto todas as peças numa cesta e estava pronto para mergulhá-las, uma a uma, quando de repente surgiu uma forte onda, levando todos os utensílios preciosos para a água.

Esse criado observava desamparado enquanto as peças afundavam. Certamente, o erro não foi seu! O que eles dirão na mansão quando descobrirem? Poderia ele esconder esse fato? Remoeu o assunto em sua mente, perguntando-se o que podia fazer. “Eles podem nem mesmo sentir a falta deste jogo em particular, pois o patrão tem muitas louças de cristal similares a esta. Porém, mesmo que sinta falta delas, ele não será capaz de detectar nada em relação a mim, já que ninguém poderá me acusar. Além do mais, não sou realmente culpado. Foi um ato de Deus. Isso poderia ter acontecido com qualquer um.”

O criado se convenceu de que ninguém perceberia nada e continuou a mergulhar o restante das novas louças. Completou a tarefa e voltou para casa.

Foi exatamente conforme o previsto. Ninguém sentiu falta das louças. De fato, até mesmo o criado quase se esqueceu do incidente.

O ano se passou e era novamente Nissan. O mesmo criado foi novamente enviado para mergulhar as novas louças no rio para torná-las permitidas ao uso. De repente, lembrou-se da calamidade do ano anterior, a qual havia mantido em segredo. Sentiu um medo repentino de que aquilo acontecesse novamente naquele ano. Aproximou-se com cuidado da beira do rio e observou as águas que corriam. O rio estava repleto de pedaços de neve derretida do inverno que eram agitados na água, e as ondas altas arremessavam-se contra a costa. O criado estava exatamente no mesmo local do ano anterior e olhou para baixo. De repente, notou algo boiando para a superfície, em sua direção. Esticou sua mão e agarrou. Era uma louça de cristal. E havia outra, e mais outra. Ele as retirou da água uma a uma. Notou que era aquele mesmo jogo que havia caído no ano anterior! Nenhum item estava faltando! Era tão estranho que o rio os expelisse após tê-los escondido por um ano inteiro e os entregasse a seus pés. Com certeza isso não era uma coincidência! Deveria significar alguma coisa.

O criado resolveu que contaria toda a história ao patrão quando chegasse à sua casa. Não seria fácil; afinal, seu papel em todo o episódio não era dos mais honráveis. Contudo, estava curioso para ouvir o que o sábio diria sobre essa estranha coincidência.

Reunindo toda a sua coragem, bateu na porta do escritório do rabino e foi convidado a entrar. Contorcendo as mãos, envergonhado, ele revelou a estranha história e a sua porção de culpa. Sua voz se elevou ao descrever como as louças haviam sido devolvidas pelo rio e ele concluiu: “A sorte está brilhando para o rabino, se ele é capaz de reaver artigos tão preciosos de um rio enraivecido.” Esperava que o chefe se alegrasse junto com ele.

Mas não! Ao invés de sorrir, o rabi Saadia assumiu uma expressão de raiva. Um olhar ameaçador se instalou em sua face e um longo suspiro escapou de sua boca.

Qual era o problema? O criado não teve coragem de perguntar. Julgando que o patrão estava bravo com ele, o criado deslizou em silêncio para fora do quarto e fechou a porta atrás dele.

Pouco tempo depois, o rabi perdeu toda a sua riqueza. Os credores vinham exigindo os pagamentos, mas ele não tinha com o que pagá-los. Seus caros móveis e suas magníficas posses foram leiloados e a mansão foi vendida para cobrir as dívidas. Restaram-lhe apenas as roupas do corpo. Todos os seus criados foram procurar novos patrões, deixando o rabi Saadia, o famoso rosh ieshivá, sem nenhum tostão. Sua família foi forçada a aceitar a caridade da comunidade, e ele se viu tendo que vagar de lugar em lugar em busca de meios para sustentar a si mesmo e à sua família.

Quanto ao criado que testemunhou o estranho retorno das louças de cristal, ele também deixou o chefe e foi tentar sua sorte no Egito. Investiu o pouco dinheiro economizado em negócios e logo ficou muito rico.

Em suas viagens, o rabi chegou à cidade onde o antigo criado vivia, agora como cidadão importante e bem-sucedido. Rabi Saadia vagava pelas ruas, as roupas esfarrapadas, os olhos cravados na face pálida. Quando andava desesperado no meio do mercado, um homem correu em sua direção, abraçou-o calorosamente e disse: “Rabi! Patrão! No que você se transformou!” Era o antigo criado. Apesar dos estragos do tempo e da desgraça, reconheceu o rabi Saadia, que contou brevemente tudo o que ocorrera com ele, e o antigo criado falou: “Você deve vir para casa comigo, rabino! Você deve vir morar comigo até que as coisas melhorem para você. Deus me abençoou com tudo e, agora que posso, quero retribuir a você pela bondade com que fui tratado em sua casa, pelo menos em uma parte pequena. Você pode se dedicar ao estudo da Torá como fazia outrora, sem nenhuma preocupação. Por favor, será a maior honra para mim!”

O rabino não poderia negar um convite tão caloroso. Além disso, ele não tinha como recusar, visto que não possuía casa, nada, e estava passando fome, à beira de um colapso físico. Essa oferta veio exatamente no momento certo.

Um quarto especial foi separado para o rabino, mobiliado com todos os confortos imagináveis. Mas ele ainda não poderia aproveitar o final das preocupações, pois a Providência ainda não havia decretado o fim do sofrimento. No dia seguinte, o rabi Saadia acordou muito doente, derrubado por uma forte febre e uma fraqueza arrasadora. O sofrimento desses últimos anos finalmente o afetou. Ele estava deitado, delirando, alheio a tudo que o cercava.

O fiel criado, agora homem rico, cuidou dele com diligência. Imediatamente, chamou um médico, mas este disse que apenas o tempo traria a resposta, uma vez que o paciente estava fraco demais para combater a febre. O anfitrião solicitou mais um médico; todavia, o diagnóstico foi o mesmo. A vida do rabi Saadia estava nas mãos de Deus.

O fiel anfitrião cercava seu hóspede dia e noite, tentando amenizar seu sofrimento, molhando sua testa fervente e umedecendo seus lábios. Ele tentava fazê-lo comer, mas o rabino estava fraco demais. Aos poucos, as poucas forças que possuía se foram e ele parecia uma sombra sobre a cama.

Em seu desespero, o bom anfitrião chamou o melhor médico do país, cujo diagnóstico também era não foi animador. Mas deu alguns conselhos.

“Cozinhe alguns frangos gordos numa grande panela durante várias horas. Deixe que o caldo ferva até se transformar apenas em uma essência. Pegue essa essência e reduza-a a uma colher, a qual deve ter um grande poder restaurador. Se o paciente comer dessa colher de essência de frango, terá chances de melhorar.”

O anfitrião estava radiante por haver algo específico que pudesse fazer. Ele mesmo foi ao mercado e selecionou os melhores frangos, as aves mais gordas e suculentas, para que sua vitalidade fosse transferida para o rabi e o ajudasse a sair da crise.

Os frangos foram preparados devidamente de acordo com as leis de cashrut, jogados numa grande panela e levados ao fogo. O aroma delicioso de sopa de frango preencheu a casa, provocando água na boca de todos – exceto na do próprio paciente, que não tinha apetite nem força para viver. Durante todo aquele dia, os frangos foram cozidos até que os ricos líquidos foram concentrados. Então, o molho foi reduzido até restar apenas uma colher de líquido dourado e revigorante.

O próprio anfitrião se apressou a oferecer a preciosa sopa ao rabi Saadia. Mas, justamente quando ele estava levando a colher para a boca do paciente, uma teia de aranha caiu do teto, bem dentro da colher, tornando-a imprópria para comer. E todas aquelas horas de trabalho…

O choro tomou conta da casa. Todos mantinham a esperança naquela preciosa sopa. Todos queriam ver a recuperação do grande sábio. E agora, todo aquele trabalho fora em vão. Para nada!

O anfitrião baixou os olhos, pois estava aflito demais para olhar para o rabino. Deveria ele começar tudo novamente? O homem moribundo viveria o suficiente até que uma sopa fresca fosse preparada? Quem sabe o que poderia acontecer nesse tempo? Estava a ponto de chorar quando alguma coisa o impeliu a olhar para o paciente.

O rabino estava sorrindo!

Todos estavam em prantos e o rabi Saadia, cuja vida estava por um triz, sorrindo!

De repente, outra cena surgiu em sua memória. Quando contara ao patrão sobre a perda do aparelho de cristal e como este havia retornado tão milagrosamente, devolvido pelo rio, o rabino Saadia deveria ter se alegrado por reaver os preciosos utensílios, mas então se mostrou irado. E agora, quando estava no leito da morte, com sua última esperança desperdiçada, ele sorria! O que significava tudo isso?

Ele não conseguiu mais se conter. Inclinando-se para perto do doente, a fim de que o rabi não precisasse se esforçar para falar, o anfitrião disse: “Rabino, eu imploro, por favor me explique essas duas coisas que me surpreenderam. Por que, quando eu lhe contei sobre os objetos valiosos que retornaram, você suspirou e franziu a testa em vez de celebrar? E agora, depois de tanto esforço para fazer o único remédio que poderia salvar sua vida ter sido em vão, por que você sorriu? Qual é o significado deste estranho comportamento?”

O rabino permaneceu sorrindo. Num fraco sussurro, ele explicou-lhe: “Assim como ninguém está imune à desgraça, assim também ninguém é tão desamparado a ponto de nada poder ajudá-lo. Todo mundo tem seus altos e baixos. A roda da sorte gira, e num momento a pessoa está em cima, no outro está embaixo. Mas quanto mais baixo a pessoa cai, mais próxima ela está de se erguer, e vice-versa. Quando você me contou sobre os valiosos cristais que voltaram para mim de forma tão sobrenatural, eu suspeitei. Ninguém tem tanta sorte a ponto de acontecer tudo da forma perfeita, e esse deveria ser um sinal de que eu finalmente atingi o auge de meu sucesso, de minha boa sorte. A descida então começaria, pois eu não poderia permanecer no topo. De fato, foi exatamente então que comecei a perder o dinheiro. Dali em diante, tudo deu errado. Eu afundei mais e mais baixo. E como se não bastasse, mesmo quando tive a sorte de encontrar você, meus problemas ainda não acabaram, pois fiquei doente. E então, para piorar as coisas, a pequena chance de recuperação – a ingestão daquela colher de sopa – foi atirada ao chão. Poderia alguém estar em situação mais desesperadora que esta? Você me vê agora no ponto mais baixo de minha vida, com um pé no túmulo. Mas como não posso cair mais baixo, terei de subir. Este é o sinal de que minha sorte melhorará, pois certamente não poderá piorar! Agora você entende porque estou sorrindo!”

E assim foi. Durante os dias seguintes uma mudança notável ocorreu. O rabino Saadia começou a comer e reuniu forças. Logo foi capaz de levantar-se da cama e andar. Dentro de um mês ele já se sentia cheio de vigor, pronto para voltar à sua casa em Sura.

Lá, a sorte voltou a sorrir para ele. Ele conseguiu quitar suas dívidas, trabalhar e reaver a riqueza e o status de que gozava antes. Era novamente o Gaon, o orgulho e o líder de Israel.

 

Extraído da série CONTOS DE TSADIKIM

Mesmo se você não tem os demais volumes dessa série, que já se esgotaram… vale a pena conhecer estes tomos que ilustram de forma agradável, com histórias e contos relacionados com os principais temas tratados nos textos dos livros do Levítico e do Deuteronômio. Quem sabe lê-los à mesa no jantar e depois abrir um diálogo com seus filhos a respeito das ideias e dos valores apresentados?

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