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Parashá Semanal - Leitura da Torá

Restituir ao coração para refletir

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Nitsavim extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer

 

Deuteronômio, Capítulo 30

1 E quando vierem sobre ti todas estas coisas – a bênção e a maldição que pus diante de ti – e te recordares delas em teu coração, estando entre as nações para onde o Eterno, teu Deus, te houver lançado, 2 e voltares – tu e teus filhos – até o Eterno, teu Deus, e ouvires a Sua voz, segundo tudo o que eu te ordeno hoje, com todo o teu coração e com toda tua alma, 3 o Eterno, teu Deus, voltará ao teu cativeiro e Se compadecerá de ti, e te fará voltar, juntando-te dentre todas as nações, para onde o Eterno, teu Deus, te espalhou. 4 Ainda que os teus desterrados estejam na extremidade dos céus, o Eterno, teu Deus, te ajuntará dali e dali te tomará; 5 e o Eterno, teu Deus, te trará à terra que herdaram teus pais, e a herdarás; e te fará bem e te multiplicará mais do que a teus pais. 6 E o Eterno, teu Deus, abrirá teu coração e o coração de tua descendência, para amares ao Eterno, teu Deus, com todo teu coração e com toda tua alma, para que vivas. 7 E o Eterno, teu Deus, porá todas estas maldições sobre os teus inimigos e sobre os que te odeiam, os quais te perseguiram. 8 E tu voltarás e obedecerás à voz do Eterno, e cumprirás todos os Seus mandamentos que eu te ordeno hoje. 9 E o Eterno, teu Deus, te fará abundar em toda a obra das tuas mãos, no fruto do teu ventre, na cria dos teus animais e no fruto da tua terra, para bem; porquanto o Eterno tornará a alegrar-Se em ti para bem, como Se alegrou em teus pais. 10 Isto, quando obedecerdes à voz do Eterno, teu Deus – escrita neste livro da Torá –, para guardares Seus mandamentos e Seus estatutos; quando voltares ao Eterno, teu Deus, com todo teu coração e com toda tua alma.

1-2. E quando vierem. As centenas de anos de tormento de Israel trouxeram testes difíceis ao povo, cujo significado muitas vezes era incerto. A Escritura descreve o grande propósito a que esses sofrimentos levarão.

e te recordares (vahashevotá el levavêcha). Acima, no nosso comentário sobre “E saberás hoje, e considerarás no teu coração (vahashevotá el levavêcha)” (4:39), fomos da opinião de que hashev el lev significa recuperar a consciência e o entendimento a respeito de algo ou redirecionar a atenção para uma coisa em particular depois que ela passou despercebida, ou quase. Contudo, o nosso versículo, assim como em “Nenhum deles cai em si (iashiv el libó)” (Isaías 44:19) e “Eis o que guardo em minha mente (ashiv el libí)” (Lamentações 3:21), parece corroborar com outra interpretação.

A percepção dos fatos que ocorrem ao nosso redor parece ser uma atividade do intelecto voltada para o exterior. Mas a atividade meditativa que leva essas percepções ao tribunal de nossas mentes, com o objetivo de decidir e tirar conclusões, é considerada uma atividade voltada para dentro, de “restituição”, pois ela restitui ao intelecto interior aquilo que foi visto do lado de fora. Portanto, hashiv el lev (literalmente, “restituir ao coração”) é uma expressão apropriada para essa ação. Uma ideia semelhante é subjacente à expressão estrangeira reflection (“reflexão”).

De acordo com isso, poderemos entender os versículos citados acima. Em Isaías (ibid.), é dito: “Queimei no fogo a metade…” – estes são os fatos externos, bem conhecidos pela mente do homem. No entanto, ele não faz retornar ao seu coração aquilo que já sabe. Ele não restitui os fatos à sua mente interior a fim de refletir sobre eles e tirar deles as conclusões apropriadas. Em Lamentações 3:22 é dito: “Em verdade, nunca cessa a bondade do Eterno…” – estes são os fatos externos, conhecidos por meio da experiência histórica. Ele os traz de volta da experiência histórica à sua mente interior, para adquirir consolo por meio deles.

De acordo com isso, também poderemos explicar o que foi afirmado no versículo acima (4:39): “E saberás hoje e considerarás…”. Primeiro, é exigido que o homem direcione sua mente e sua consciência para os fatos históricos descritos nos versículos anteriores (“e saberás”) e, em seguida, é exigido que ele traga essas percepções de volta ao tribunal do intelecto para tirar delas as conclusões corretas e, com base nisso, tomar as decisões corretas referente às suas ações (“e considerarás no teu coração”).

Aqui também, todas as bênçãos e maldições que virão sobre vós foram preditas neste livro com milhares de anos de antecedência. E quando elas realmente se abaterem sobre vós, você restituirá ao seu coração todos esses eventos de todo o curso externo do seu destino. Você os trará de volta à sua mente interior para discutir e refletir a respeito deles. O resultado será que você retornará a Deus e à Sua Torá com todo o seu coração e alma, e também conquistará os corações de seus filhos para essa mesma lealdade a Deus e à Sua Torá. Pois os eventos que você experienciará durante esses milênios testemunharão diante de você sobre Deus e sobre a sua Divina Torá, e esse testemunho ficará eternamente gravado em seu coração.

estando entre as nações. Mesmo quando você está no exílio, no meio dos povos entre os quais Deus o espalhou, e apesar das vicissitudes da sua vida no exílio, você permanecerá ao longo de todos os milhares de anos “o povo do Eterno com a Torá do Eterno nos braços”. Em conjunto com a concretização da profecia de seu destino, isso acabará por possibilitar e causar a sua revolução, a elevação do espírito e o retorno ao Eterno e à Sua Torá.

e voltares (…) até. Se aqui fosse dito “e voltares (…) para”, seria possível dizer que a Escritura se refere apenas a um retorno na direção do Eterno – isto é, apenas um retorno parcial. No entanto, é dito “e voltares (…) até” – você não parará no meio do caminho; seu retorno será tão completo que você voltará por todo o caminho até o Eterno.

  1. o Eterno, teu Deus, voltará ao teu cativeiro (veshav… et shevutechá). Frases como “te fará retornar (shav) de teu cativeiro”, assim como em muitos outros lugares nos profetas e nos Salmos – como em “Quando o Eterno fizer retornar (shuv) Seu povo” (Salmo 14:7), “em que farei retornar (shavti) os cativos de Meu povo” (Jeremias 30:3), “Farei retornar (shav) o cativeiro das tendas de Jacob” (ibid. 30:18), “farei retornar os cativos do Egito” (Ezequiel 29:14), e similares – reforçam a noção de que, nesses lugares, shuv é um verbo transitivo cujo significado é “fazer retornar”, “restituir”. Porém, além do fato de que encontramos a raiz shuv como verbo transitivo apenas nesse contexto conceitual, o nosso próprio versículo contradiz essa interpretação de que veshav é um verbo transitivo. É evidente que a misericórdia de Deus sobre Israel precede o retorno de Israel à sua terra natal. Portanto, somos obrigados a dizer que o termo veshav, que antecede “e Se compadecerá de ti”, descreve um ato que precede “e te fará voltar, juntando-te…”.

Assim, seria possível interpretar aqui, assim como na maioria dos lugares em que a linguagem shivá aparece com o acréscimo da palavra et depois dela, que veshav et shevutechá significa “O Eterno voltará com os teus cativos”. Ou seja, assim que você retornar ao Eterno em seu exílio, e na medida em que você retornar, Ele também retornará para você. No entanto, os lugares em que não há et após shivá – como em “Quando o Eterno fizer retornar Seu povo – beshuv… shevut amó” – não podem ser interpretados dessa forma.*

 

* A fim de facilitar a compreensão da dificuldade apresentada pelo Rabino Hirsch, eis uma breve explicação: o nosso versículo utiliza duas vezes o verbo “shuv”, uma vez logo antes da expressão “e Se compadecerá de ti” e outra vez imediatamente após. Nesse comentário, o Rabino Hirsch pretende determinar se o verbo “shuv” é um verbo transitivo indireto, cujo significado seria “restituir”, “fazer retornar”, ou um verbo intransitivo, cujo significado seria “voltar”, “regressar”. Se considerarmos correta a interpretação de que se trata de um verbo transitivo, então o versículo não faria sentido, pois estaria dizendo que Deus fará o povo retornar antes mesmo de Se compadecer dele! Portanto, nesse ponto, o Rabino Hirsch aventa a possibilidade de que a interpretação desse termo deve ser como um verbo intransitivo, de modo que a frase passe a significar: “o Eterno, teu Deus, voltará ao teu cativeiro e Se compadecerá de ti, e te fará voltar, juntando-te dentre todas as nações…”. Depois, o Rabino Hirsch chama a atenção para um fato intrigante referente a alguns verbos intransitivos da língua hebraica, como “voltar” (shuv), “sair” (iatsá), “ir” (haloch) etc., nos quais os locais aos quais – ou dos quais – a pessoa volta, sai ou vai, aparecem como se fossem objetos desses verbos, ao passo que a preposição (obrigatória na língua portuguesa) está ausente, e a tradução de “veshav… et shevutechá” passaria a ser “voltará o teu cativeiro”. (N. do T.)

 

Assim, chegará o dia em que os eventos que passaram sobre você, bem como o livro que os explica, já terão surtido efeito sobre você e, estando no exílio, disperso entre as nações, você retornará ao Eterno e à Sua Torá com todo o seu coração e com toda a sua alma. E esse retorno fará com que Deus também volte a Se virar para você e lhe busque no exílio, para estar próximo de você como nos tempos antigos.

e Se compadecerá de ti. E Ele voltará a te aceitar em “Sua misericórdia”, com o atributo de “Sua bondade”, que jamais se extinguirá. Ele te aproximará como uma criação de Sua liderança histórica, como “Sua obra ao longo de anos” (ver Chabacuc 3:2) e como “o ramo de Sua plantação e obra das Suas mãos” (Isaías 60:21) – como o canteiro de flores de Sua plantação renovada, cujos botões Ele guardou por muito tempo e que agora florescem esplendorosamente.

e te fará voltar, juntando-te. Ele te reunirá novamente de todas as nações entre as quais te dispersou, para que você seja um povo unificado.

  1. os teus desterrados (nidachachá). Nidach é uma variação de pronúncia mais intensa da palavra nidá. Verifica-se que seu significado é afastar, expulsar.

te ajuntará. Ele reunirá todos vocês, mesmo aqueles dentre os seus dispersos que acabaram indo parar nas terras mais distantes.

te tomará. E ele o levará de volta até Si, para que você cumpra sua missão de ser somente Dele, como Ele disse no momento que você foi redimido e escolhido pela primeira vez: “E vos tomarei por Meu povo” (Êxodo 6:7).

  1. e o Eterno, teu Deus, te trará. Ele te trará à sua terra natal, que você já conquistou duas vezes – uma vez por meio de seus antepassados, nos dias de Moisés e Josué, uma herança anulada pela conquista da Babilônia, e depois por meio dos exilados que retornaram nos dias de Ezrá, uma herança que nunca foi anulada e que jamais será anulada (ver comentário sobre Números 15:18).
  2. E o Eterno, teu Deus, abrirá. Tudo que aconteceu com você nos dias da provação do exílio, e tudo o que Deus lhe trará no momento da sua redenção final, removerá do seu coração e do coração dos seus descendentes qualquer cobertura, qualquer coisa rebelde que não aceita autoridade. A partir daí, Deus e “a tua vida” serão uma única coisa aos seus olhos. Assim como você não pode viver sem respirar, você não terá “vida” sem o reconhecimento de Deus e o sentimento de proximidade da Sua aliança com você, bem como a proximidade da tua aliança com Ele. Assim, você estará completamente imerso no Seu amor, com todo o seu coração e alma.
  3. E o Eterno, teu Deus, porá. Como em “porás aos que vão abençoar” (acima 11:29).

A partir de então, esse mesmo juramento recairá sobre os povos – com seu amor e ódio. Deus cumprirá o que prometeu a Abrahão no início de seu surgimento nas crônicas das nações – “E abençoarei os que te abençoarem, e aqueles que te amaldiçoarem, amaldiçoarei” (Gênesis 12:3; ver o comentário ali).

  1. E tu voltarás. Acima (versículo 2), a Escritura menciona o retorno à fiel observância dos mandamentos de Deus, na medida em que é possível cumpri-los no exílio. Além disso, a Escritura agora acrescenta a observância completa de todos os mandamentos de Deus na terra à qual Ele prometeu Sua bênção completa. Essa bênção se tornará realidade sem que precisemos nos preocupar com a possibilidade de que a nossa riqueza nos faça falhar, como ocorreu em todas as épocas do passado.
  2. escrita.* A palavra “escrita” se refere “à voz”. Todo “este livro da Torá” nada mais é do que a voz de Deus por escrito. A partir desse livro, a voz do Eterno fala conosco até o final de todas as gerações e nos ensina os deveres e restrições – “Seus mandamentos e Seus estatutos” – de cada um dos aspectos de nossa existência terrena. Ao cumpri-los e observá-los, retornaremos com todo o nosso coração e toda a nossa alma. A observância da Torá – e não a bênção extraordinária que acompanha essa observância – será o único propósito da nossa existência e das nossas aspirações. Por essa razão, a Escritura volta a falar, no final da porção, a respeito do cumprimento completo da Torá de Deus.

* As traduções para o português desse versículo interpretam a palavra “haketuvá” como “escritos”, já que ela aparece logo após as palavras “Seus mandamentos e Seus estatutos”. No entanto, se essa palavra estivesse se referindo aos mandamentos e estatutos, a palavra correta seria “haketuvim”. “Haketuvá” significa “escrita”, como aponta o Rabino Hirsch. Porém, isso faz com que a ordem das palavras no versículo fique confusa, já que a tradução literal seria: “Isto, quando obedecerdes à voz do Eterno, teu Deus, para guardares Seus mandamentos e Seus estatutos, escrita neste livro da Torá…”. No entanto, de acordo com a interpretação do Rabino Hirsch, o versículo deve ser interpretado como: “Isto, quando obedecerdes à voz do Eterno, teu Deus – escrita neste livro da Torá – para guardares Seus mandamentos e Seus estatutos”. (N. do T.)

E a palavra “escrita” só pode estar se referindo à palavra “voz”. Embora geralmente, em hebraico, “voz” seja um substantivo masculino, a estrutura natural da linguagem no 1 Livro dos Reis 1:41 e 14:6 e no Livro de Jeremias 10:22 indica que “voz” também aparece como um substantivo feminino.

Essas frases claras e inequívocas (versículos 1-10) lançam o fundamento inabalável sobre o qual o judaísmo dos nossos dias e de todas as gerações futuras se baseia. Por meio de palavras claras que não admitem ambiguidade, fomos informados aqui a respeito do agrupamento dos nossos exilados e de seu retorno a Israel, pelos quais ainda estamos esperando.** E por meio de palavras igualmente claras e inequívocas, foram proclamadas a eternidade da Torá e sua validade obrigacional, vigente e duradoura para sempre. Somente se os dispersos de Israel retornarem com todo o coração e alma à lealdade sem reservas à Torá, sua dispersão entre os povos chegará ao fim, e o único objetivo de sua reunião e retorno à sua terra é o cumprimento completo da Torá na terra de sua herança.

** Cabe lembrar que o Rabino Hirsch viveu no século 19, antes do advento do Movimento Sionista, da hecatombe do Holocausto, do retorno a Tsión de centenas de milhares de judeus e, obviamente, da fundação do moderno Estado de Israel. (N. do E.)

Essas declarações claras e inequívocas de Deus refutam todos aqueles que falam calúnias a respeito de Israel e de sua Torá e os consideram ultrapassados. Israel e a Torá não são remanescentes de um passado morto, mas fazem parte do presente vivo e anseiam por um futuro promissor. Somente se reconhecermos e apreciarmos essa verdade e nos entregamos com alegria e sem reservas a esse propósito, encontraremos o que é certo aos olhos de Deus em todas as épocas e momentos, assim como o caminho para a salvação do Eterno.

“As coisas ocultas pertencem ao Eterno, nosso Deus. Porém, as reveladas nos pertencem a nós e a nossos filhos para sempre, para cumprir todas as palavras desta Torá.” Esta declaração, que conclui o capítulo anterior, nos mostra o caminho durante o período do nosso exílio. Os versículos seguintes revelam o futuro que nos espera, e essa revelação é a explicação dessa declaração.

 

Torá Interpretada - Editora Sêfer

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Nitsavim  extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.

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