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Parashá Semanal - Leitura da Torá

O propósito do Tabernáculo

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Vaiac’hel extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer

 

Êxodo, Capítulo 35

1 E Moisés reuniu toda a congregação dos filhos de Israel e disse‑lhes: Estas são as coisas que o Eterno ordenou que se fizessem. 2 “Seis dias se fará trabalho, e no sétimo dia haverá para vós santidade, Shabat de repouso ao Eterno; todo aquele que nele fizer trabalho será morto. 3 Não acendereis fogo em todas as vossas habitações no dia do Shabat.”

1-2. E Moisés reuniu. Depois que as tábuas do testemunho foram outorgadas novamente, Israel foi ordenado uma vez mais a estabelecer o Tabernáculo do testemunho, pois as tábuas são a garantia da “Presença” especial de Deus no meio do povo. Os graves eventos pelos quais o povo passou agora há pouco, conforme relatado nos capítulos anteriores, colocaram em risco o cumprimento dessa ordem de construir o Tabernáculo. No entanto, esses eventos tiveram um significado de longo alcance em relação ao comando em si, ao Tabernáculo e ao seu propósito.

Agora será necessário estabelecer o Tabernáculo sob a influência de uma situação completamente nova. O povo e os sacerdotes perceberam quão fracos e imperfeitos ainda eram, quanto ainda precisavam se auto aperfeiçoar incessantemente e quão grande era sua necessidade de elevação e expiação. Além disso, eles vieram a conhecer a Deus em toda a gravidade de Seu juízo punitivo, mas também em toda a Sua graça e benevolência. Eles provaram o gosto de todos os diferentes aspectos do nosso relacionamento com Deus, desde um sentimento de rejeição total e expulsão de diante Dele, até as alturas do encontro renovado de graça aos Seus olhos.

O Tabernáculo que será erguido deve se tornar um lugar a partir do qual a visão do propósito desse povo espalhe sua luz eternamente para o indivíduo e para a coletividade. Deve ser o lugar onde, em cada estágio de erro e fraqueza, eles encontrem o poder renovado para voltar a seguir seu caminho de elevação, a força de vontade para perseverar nas alturas de seu propósito e a ajuda e bênção de Deus para esses dois propósitos. Assim, esses eventos – escritos para as gerações futuras entre o mandamento de construir o Tabernáculo até o cumprimento prático desse comando – tornaram-se uma prova escrita e irrefutável de que em cada estágio de erro é possível recuperar a graça de Deus. Porém, a principal importância dos eventos que antecederam a construção do primeiro Tabernáculo, o ponto mais importante sobre o qual devemos refletir, é este: ocorreu o maior crime nacional da História, e foi alcançada a maior bondade de Deus – sem templo e sem sacrifícios. Se ainda há a necessidade de provar que o Templo e os sacrifícios por si só não garantem o encontro de favor aos olhos de Deus, mas que servem apenas para nos guiar para alcançar a graça de Deus, podemos trazer tal prova de modo claro a partir dos eventos experimentados pelo povo antes da construção do primeiro Templo.

Estas são as coisas. Uma vez que, no versículo 4, são mencionados novamente os comandos referentes à construção do Tabernáculo, começando com as palavras “Foi isto o que o Eterno ordenou”, verifica-se que as palavras “Estas são as coisas…”, no versículo 1, referem-se a esta construção apenas em relação ao mandamento do Shabat, que a Escritura menciona e repete nos versículos 2 e 3. Isso nos ensina que mesmo o cumprimento do mandamento de Deus de produzir o Tabernáculo não prevalece às proibições do Shabat (compare com 31:13 e veja o nosso comentário lá), e segue-se daí que os serviços necessários para essa construção constituem o conceito dos trabalhos proibidos no Shabat.

Agora, comparemos a linguagem deste versículo, que inicia a porção Vaiac’hel, no qual a construção do Tabernáculo é ligada às leis do Shabat, com a linguagem que abre a descrição da construção em si. No versículo 4 é dito “Foi isto o que o Eterno ordenou” – no singular –, enquanto aqui, no versículo 1, é dito “Estas são as coisas que o Eterno ordenou que se fizessem” – no plural. Além disso, a linguagem plural aqui é especialmente enfatizada por uma aparente redundância: “que o Eterno ordenou que se fizessem”.

Essas mudanças podem ser explicadas da seguinte forma: No versículo 4, devemos considerar o Tabernáculo como uma obra completa, cujos objetos e ações necessários para a sua construção lhe são secundários, como partes em relação ao todo. Por outro lado, aqui, na abertura do mandamento do Shabat, nossa atenção é voltada para a multiplicidade de todos os objetos e ações necessários para a construção e somos chamados a olhar para os objetos separadamente – “estas são as coisas” – e para as ações necessárias para fazer cada um deles – “que se fizessem”.

E a Escritura continua e diz (versículo 2): “seis dias se fará trabalho…”. Em outras palavras, todas e cada uma dessas ações são permitidas somente durante os seis dias úteis da semana, mas não no Shabat. Cada uma das ações necessárias para a confecção do Tabernáculo é considerada um trabalho, cuja execução no Shabat consiste na profanação dele.

A lei judaica também estuda o nosso versículo dessa forma: “Uma vez que foi dito ‘E Moisés reuniu (…) Estas são as coisas (…) seis dias se fará trabalho’, devemos aprender que ‘coisas, as coisas, estas são as coisas’ se referem aos 39 trabalhos ditos a Moisés no Sinai” (TB Shabat 70a; 97b). Explicando: o mínimo do plural “coisas” é dois; a adição de “as” veio acrescentar mais um, e então temos três, mais o valor numérico das palavras “estas são” (êle) em hebraico, que é 36, resulta em 39. Dessa forma, a lei judaica aprende do serviço do Tabernáculo as 39 atividades produtivas cuja execução é proibida no Shabat por causa da proibição de realizar trabalhos.

A construção do Tabernáculo é a coisa que exige a maior quantidade de forças possível no campo da obra das artes humanas – se não pelo aspecto da beleza da arte, então, certamente, pelo aspecto da visão e propósito expressos pelo Tabernáculo: “E Me farão um Santuário e morarei entre eles” (acima 25:8). O domínio humano sobre o mundo físico, expresso na tomada de matérias-primas do mundo e sua utilização para processamento e produção alcança seu propósito mais elevado no Templo. O homem submete o mundo a si, para então submeter a si mesmo e ao seu mundo a Deus, e para tornar o mundo uma morada para o reino do Céu, um Templo no qual a glória de Deus habitará na terra.

A construção do Templo é a santificação do trabalho humano e, nesse contexto, essa construção é representada pela combinação de todas as várias atividades produtivas do homem que, ao evitar fazê-las – por meio do repouso de todo tipo de trabalho – transforma o Shabat no símbolo da aceitação do jugo Divino. Toda atividade produtiva (em hebraico, melachá) necessária para a criação do Tabernáculo se torna uma av melachá, isto é, uma “categoria” de atividade produtiva que engloba diversas atividades derivadas dela e incluídas no conceito básico de av (“categoria mestra”). Semear e plantar, por exemplo, são uma “categoria mestra” de um tipo de atividade produtiva, ao passo que podar, regar e todas as outras atividades que promovem o crescimento das plantas estão incluídas nela como seus derivados (TB Shabat 73b).

A definição de uma atividade proibida no Shabat é sugerida pelo seguinte versículo: “todo aquele que nele fizer trabalho será morto”, que foi precedido pelas palavras “as coisas que o Eterno ordenou” e “que se fizessem” – isto é, os objetos assim como as ações realizadas com a intenção de criá-los. Portanto, a atividade (“trabalho”) proibida no Shabat sempre leva em conta o que é criado e a ação criativa, e não apenas a intenção geral, mas sim, o ato dirigido ao propósito de criar algo. O conceito de “trabalho” proibido se aplica apenas a ações criativas, e não a ações destrutivas (“aqueles que destroem estão isentos”) e se aplica apenas se a ação for feita intencionalmente (fica excluído “algo feito sem intenção”). Além disso, o propósito da ação deve ser o produto pelo qual se costuma realizar essa ação (ficando excluído, portanto, uma “atividade que não visa o seu propósito usual”). Somente esse tipo de ação consiste na profanação do Shabat em seu sentido pleno e sobre o qual é dito (versículo 2) que “todo aquele que nele fizer trabalho será morto”. E o trabalho do Tabernáculo é o fundamento de todas essas leis.

De acordo com o que foi dito em TB Shabat 73a, as 39 “categorias mestras” aprendidas do serviço do Tabernáculo são: semear, arar, ceifar (arrancar um broto ou cortar um ramo de uma árvore), agrupar em feixes, debulhar, lançar os grãos ao vento, separar o joio dos grãos, triturar, peneirar, criar a massa, assar; tosar, lavar o tecido, escovar a lã, tingir, fiar, armar os frios transversais, montar a máquina de tecer, tecer, arrebentar um fio, amarrar, desamarrar, costurar, rasgar para facilitar a costura; caçar, degolar, esfolar, salgar (curtir o couro), rabiscar (para saber onde cortar), alisar o couro, cortar em determinada medida, escrever, apagar para poder reescrever; construir, destruir uma construção (a fim de construir outra); apagar o fogo (para reacender), acender fogo; dar a martelada final (concluir qualquer trabalho); e transportar objetos de um domínio ao outro.

Ao refletirmos sobre essas “categorias mestras” fica claro para nós que todas são atividades produtivas – isto é, atos que geram mudanças nos objetos. A criação intencional de tal mudança prova e demonstra o domínio do homem sobre tudo que é material. Portanto, o impedimento de usar este poder no Shabat é uma forma apropriada de manifestar submissão diante do Criador e Senhor único, uma vez que o homem – o mestre do mundo que está ao seu redor – está sujeito a Ele e não passa de Seu servo.

Mesmo quando o homem recolhe e agrupa os produtos da terra em pilhas (agrupar) ou quando prende animais selvagens (caçar), embora essas atividades não causem mudanças nos produtos ou nos animais em si, elas causam uma mudança da situação livre e natural para o domínio do controle e propriedade do ser humano. Como explicamos, esta é a parte principal da essência e do significado do conceito de “trabalho”.

Apenas a última das 39 atividades proibidas – transportar de um domínio para o outro, ou seja, a remoção de objetos do domínio privado para o domínio público, ou vice-versa, assim como transportar um objeto por 4 cúbitos no domínio público – é considerada um “trabalho inferior”, e é difícil defini-la como uma atividade criativa. Esse trabalho não teria sido aprendido dos serviços do Tabernáculo se não fosse por um versículo especial dedicado a nos ensinar isso, e não somente como uma “categoria mestra” em geral, mas também para os seus derivados. Apesar disso, justamente essa atividade, que em seu exterior concreto é considerada um mau exemplo de trabalho, recebeu uma importância tão significativa, ao ponto de o profeta Jeremias exigir – durante os últimos dias do Estado judaico, quando ele foi ordenado a declarar que o país sobreviveria e até mesmo floresceria se o Shabat fosse observado e santificado – que, além da observância geral do Shabat, fosse dada atenção especial à observância da proibição de transportar. Por favor, leia Jeremias 17:19-27 atentamente, e você perceberá que o profeta atribui grande importância à proibição de transportar no Shabat, e que essa proibição não aparece como parte integral da proibição geral de realizar trabalhos, mas sim, como um conceito paralelo a ela. De acordo com o profeta, a observância do Shabat envolve a proibição de transportar e a proibição de trabalho: “Que nenhuma carga seja retirada de vossas casas neste dia, e que nenhum trabalho seja por vós realizado” (ibid. 17:22).

Se procurarmos a ideia comum subjacente a todas as outras atividades, veremos que todas apontam para o status do homem como mestre de todas as coisas do mundo físico, mas o transporte pertence exclusivamente à esfera social. A imagem mais completa de uma vida nacional plena se dá na relação do indivíduo com a sociedade e da sociedade com o indivíduo – isto é, o que o indivíduo faz pela sociedade e o que a sociedade faz pelo indivíduo –, e a promoção dos objetivos sociais na esfera social. Estas são relações que se refletem claramente nas transferências entre domínio público e domínio privado e no transporte por quatro cúbitos dentro do domínio público.

Assim, se a proibição de todas as outras atividades submete o homem a Deus em termos de sua posição no mundo físico, então a proibição de transportar provavelmente reflete a submissão do homem a Deus em termos de sua posição no mundo social. A primeira é a submissão a Deus na natureza, e a última é a submissão a Deus nos anais do mundo. Enquanto o primeiro coloca a atividade do homem na natureza sob o governo do Criador, este último coloca sob o mesmo governo a atividade do homem no Estado. Assim como nossa percepção do mundo consiste na natureza e no estado, o conceito do governo de Deus sobre o mundo inclui Seu direcionamento e controle sobre a natureza e a história do mundo. O reino de Deus na terra, que o homem deve construir ao observar o Shabat, será completo e real somente se o homem se submeter à vontade de Deus tanto em sua vida natural como em sua vida nacional.

Agora, nós vemos que os dois fatos que a Torá menciona como razões para o mandamento do Shabat – a Criação do céu e da terra e o Êxodo do Egito – se complementam em seu sentido essencial. A Criação do mundo testifica o domínio do Criador sobre a natureza, e isso é expresso no Shabat por todas as outras atividades. O Êxodo do Egito testifica o domínio do Criador sobre a vida das nações, e isso é expresso no Shabat pela proibição de transferir entre domínios.

Portanto, a proibição de transferir coloca o Estado judaico – os atos do indivíduo em prol da sociedade e os atos da sociedade em prol do indivíduo, bem como os atos dos líderes do Estado – sob o governo de Deus, que exige que Suas ordens sejam ouvidas.

Agora, entendemos por que as palavras do profeta condicionam a sobrevivência do Estado em primeiro lugar na observância do Shabat por meio da proibição de transportar, e anunciam o colapso do país devido à profanação do Shabat por meio da proibição de transportar. A proibição de transferir imprime o selo de Deus em toda a vida nacional; transferir no Shabat arranca a bandeira de Deus do país e da vida social dentro dele.

  1. Não acendereis fogo. À primeira vista, acender fogo não parece ser um ato criativo, mas um ato destrutivo. Por outro lado, é precisamente a capacidade de criar fogo artificialmente que dá ao homem seu domínio real sobre o mundo físico. Somente por meio do fogo ele pode fazer suas ferramentas e explorar a essência interna dos materiais, separá-los e moldá-los. Portanto, podemos entender por que o nosso versículo distingue o acendimento do fogo como uma “categoria mestra” dentre todas as outras.

De acordo com uma opinião no Talmud (TB Shabat 70a), “o acendimento de fogo foi distinguido por ser uma proibição” – isto é, acender fogo não é senão uma “proibição” e não está incluído entre as outras atividades que, de acordo com o versículo anterior, envolvem a pena de morte.

De acordo com a segunda opinião (ibid.), que foi aceita pelos legisladores, “o acendimento de fogo foi distinguido para criar separação” – isto é, o acendimento de fogo serve como um exemplo para todas as outras atividades, seguindo uma das regras pelas quais a Torá é interpretada: “Quando algo estava incluso numa regra geral e foi retirado da regra para ensinar algo específico, não foi retirado para ensinar somente no que diz respeito a si mesmo, mas para ensinar no que diz respeito a toda a regra geral.” Em outras palavras, a distinção do acendimento de fogo veio nos ensinar que sobre todas as formas de proibição de trabalho no Shabat, aludidas nas palavras “estas são as coisas…”, no versículo 1, aplica-se a santidade do Shabat separadamente para cada uma das 39 atividades proibidas. Como resultado, se uma pessoa inadvertidamente realiza vários tipos diferentes de atividades no Shabat, ela deve trazer um número equivalente de ofertas de expiação a fim de ser expiada. Por exemplo, se uma pessoa arar, semear e ceifar os grãos inadvertidamente no Shabat, ela deverá trazer uma oferta de expiação para cada tipo de atividade – isto é, três sacrifícios.

Isso é chamado de “separação de atividades do Shabat”, e é a diferença característica entre a proibição de realizar atividades no Shabat e a proibição de realizar atividades no Iom Tov (TB Macót 21b). A cessação de atividade no Iom Tov é um resultado lógico do conceito de moêd (festa). O serviço a Deus, ao qual a festa nos convoca, impede qualquer “trabalho servil”. Este é um conceito geral e abrangente, para o qual todo o trabalho é igualmente prejudicial. A cessação de trabalho no Shabat, por outro lado, é o reconhecimento de que a capacidade do homem de governar o mundo material lhe foi concedida por Deus e deve ser usada apenas a Seu serviço. Esse reconhecimento é expresso separadamente em cada aspecto de domínio sobre o mundo.

O Shabat não é profanado em relação às diferentes partes do mundo físico, mas em relação aos vários tipos de atividade. Por exemplo, se uma pessoa faz a colheita de trigo, uvas e maçãs, ela traz apenas uma oferta de expiação, mas se ela realizar três atividades diferentes num campo de trigo, trará três ofertas de expiação. Isso significa que o conceito de Shabat não deve ser entendido como a submissão do mundo físico a Deus, mas sim, como a submissão do homem a Deus em relação ao mundo físico.

Torá Interpretada - Editora Sêfer

 

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Vaiac’hel extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.

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