fbpx
Parashá Semanal - Leitura da Torá

O objetivo que deve prevalecer

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Shofetim extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer

 

Deuteronômio, Capítulo 16

18 Juízes e policiais designarás para ti em cada uma de tuas tribos, em todas as tuas cidades que o Eterno, teu Deus, te dá, e julgarão o povo com reto juízo. 19 Não distorcerás o juízo, não farás distinção de pessoas e não tomarás suborno, porque o suborno cega os olhos dos sábios e subverte as palavras justas. 20 A justiça, e somente a justiça, seguirás, para que vivas e herdes a terra que o Eterno, teu Deus, te dá.

21 Não plantarás para ti nenhuma Asherá nem árvore junto ao altar do Eterno, teu Deus, que farás para ti. 22 E não levantarás para ti um pilar, porque o Eterno, teu Deus, odeia.

 

  1. Juízes. Os preceitos mencionados até aqui trataram principalmente da influência centralizadora que o local escolhido pelo Eterno como Santuário de Sua Torá deve surtir sobre os filhos do Seu povo, que futuramente habitariam dispersos por toda a Terra de Israel. Os preceitos que virão agora são dedicados às instituições por meio das quais o Templo exerce seu controle sobre o povo, e nos ensinam que os representantes da Torá serão nomeados a partir desse local central e atuarão em todo o país, garantindo a influência do Templo da Torá sobre todos os locais de moradia do povo.

policiais. Ver Êxodo 5:6. Como dissemos ali, os “policiais” eram encarregados de supervisionar a execução de sentenças e decretos e, conforme a necessidade, de executá-los eles mesmos. No Egito, os guardas hebreus eram ordenados pelos opressores egípcios a acelerar o povo na execução de seus trabalhos.

designarás para ti. A conjugação no singular se dirige ao coletivo nacional, que já possui representatividade – o San’hedrin (Sinédrio), composto por 71 juízes (ver Números 11:16) –, e a nação, por meio de seus representantes, deve nomear “juízes e policiais”. E eles devem ser nomeados “para ti” – como seus emissários – “em todas as tuas cidades” – em todas as cidades da Terra de Israel; e mesmo depois que a terra tiver sido dividida entre as tribos, elas continuarão sendo “tuas cidades”, diretamente subordinadas à autoridade central da nação. “Em cada uma de tuas tribos” – e elas, as tuas cidades, estarão sujeitas ao juízo mediador de cada tribo.

Verifica-se que se deve nomear juízes e policiais – ou seja, um tribunal superior, o Grande Sinédrio, composto de 71 juízes – para liderar a nação como um todo, e esse Supremo Tribunal nomeará juízes e policiais para chefiar cada tribo e cada cidade (TB San’hedrin 16b).

Ao que tudo indica, aquilo que é chamado aqui de “tribo” (shévet) é uma instância paralela a “condado” (pêlach), ou seja, um “distrito” (machóz), da época do Segundo Templo (TB Macót 7a). O “condado” tomou o lugar da “tribo” depois que a divisão entre as tribos foi desfeita.

A relação entre o tribunal da tribo ou do distrito e os tribunais das cidades não é tão clara. Na opinião do Nachmânides, trata-se de uma relação de autoridade, e o tribunal de cada tribo, em relação à sua tribo, era como o Supremo Tribunal em relação a todo o povo de Israel.

Na prática, havia o Grande Sinédrio, composto por 71 juízes, na Câmara de Pedras Talhadas no pátio do Templo; um Pequeno Sinédrio de 23 juízes na entrada do pátio, e ainda outro na entrada do monte do Templo; um Pequeno Sinédrio de 23 juízes em toda cidade grande, e um tribunal de três juízes em cada cidade pequena (TB San’hedrin 2b).

e julgarão o povo. “Mesmo contra a sua vontade” (Sifrí). Na qualidade de emissários dos representantes do povo, eles tinham o direito de convocar um acusado – e quando havia necessidade, de forçá-lo – a vir para o banco dos réus. Nos juízos de direito penal, a convocação era enviada com base num testemunho, e em juízos de leis monetárias, era enviada com base na reivindicação do requerente.

reto juízo. “Trata-se aqui da nomeação dos juízes” (ibid.), similar ao versículo 19: “‘Não distorcerás o juízo’ – para que você não diga: ‘fulano é simpático, fulano é meu parente’” (ibid.), e mais detalhadamente em relação ao que foi dito anteriormente (1:17): “‘Não conheçais faces no juízo’ – refere-se ao encarregado em apontar os juízes. Para que você não diga: ‘Fulano é simpático, escolhê-lo-ei para ser juiz; fulano é valente, escolhê-lo-ei para ser juiz; fulano me emprestou dinheiro, escolhê-lo-ei para ser juiz; fulano sabe muitas línguas, escolhê-lo-ei para ser juiz’ –, pois sucederá que este acabará por absolver o culpado e condenar o inocente, e não porque é perverso, mas porque não sabe as leis, e a Escritura considera como se a pessoa que o apontou como juiz tivesse favorecido uma das partes no juízo.”

De acordo com essa explicação, os nossos versículos não tratam dos deveres dos juízes, mas sim, dos deveres do poder público que nomeia os juízes. Os líderes do público devem nomear juízes que julgarão com retidão e não distorcerão o juízo. Além da integridade de caráter, o único critério que eles devem considerar durante essas nomeações é o seu conhecimento do processo jurídico e um profundo entendimento dele. Nenhuma outra característica – pessoal, social ou acadêmica – é capaz de compensar a falta de tal conhecimento e compreensão. Essa explicação é corroborada pelo contexto do assunto, já que o nosso versículo trata da obrigação da comunidade nacional de nomear juízes em todo o país.

Assim, a declaração “e julgarão o povo com reto juízo” descreve o propósito do preceito anterior – “juízes e policiais…”. Os representantes da nação devem nomear juízes e policiais em todo o país, e eles devem nomear juízes do tipo que julgará o povo com “reto juízo”.

De acordo com o exposto acima serão explicadas as advertências que virão na sequência: “Não distorcerás o juízo…”. Essas advertências também apelam aos representantes da nação e colocam sobre eles a responsabilidade por qualquer desvio de julgamento, favorecimento ou suborno praticados em qualquer tribunal de Israel, pois toda a nação e seus representantes serão culpados por qualquer distorção do processo judicial, se nomearem juízes inadequados. Se juízes inadequados distorcerem o juízo, aqueles que os indicaram serão considerados responsáveis por seus pecados. Portanto, “Não distorcerás o juízo” – por meio dos juízes que você nomear.

  1. Não distorcerás o juízo. Os nossos sábios explicam no Sifrí: “’Não distorcerás o juízo’ – em relação ao dinheiro; ‘e não farás distinção de pessoas’ – em relação ao julgamento.” “Dinheiro” é o objeto de valor submetido ao juízo; “julgamento” é a decisão do juiz; “juízo” é o veredito. Uma sentença pode ser distorcida de duas maneiras. É possível que o juiz chegue a um veredito verdadeiro em sua mente em relação ao status legal do objeto envolvido, mas, ainda assim, emita uma decisão contrária ao seu parecer jurídico e conceda o dinheiro para alguém que, na realidade, não tem direito a ele. Este é um tipo de desvio de sentença – “distorção do juízo com relação ao dinheiro”. Também é possível que ele forme a sua opinião legal – o “julgamento” – não com base em considerações objetivas e relevantes; ele pode permitir que sua consideração pela personalidade dos litigantes afete o seu veredito, fazendo distinção de pessoas no julgamento (ver acima 1:16-17 e o respectivo comentário).
  2. A justiça, e somente a justiça, seguirás. Justiça, retidão – isto é, a condução de todos os assuntos do indivíduo e do coletivo de acordo com as exigências da Torá do Eterno – devem ser o único e supremo objetivo buscado pela nação como um propósito que se encerra em si mesmo e um objetivo que deve prevalecer sobre todas as demais considerações.

O único dever de Israel é perseguir este objetivo continuamente e com absoluta devoção, “para que vivas e herdes a terra”. Se Israel assim fizer, terá feito tudo o que estava ao seu alcance para garantir sua existência física (“vivas”) e política (“herdes”).

Perceba como, mesmo aqui, quando está claro que se trata de um tempo em que Israel já concluiu a conquista da terra, a Escritura ainda utiliza o termo “e herdes” com relação à segurança política que Israel terá, caso respeite e promova a justiça. A partir daqui, aprendemos uma grande verdade: a herança da Terra de Israel pode estar em xeque a todo momento, e o Estado judeu deve sempre “herdar” a terra novamente, por meio do pleno cumprimento e manutenção da justiça.

O significado da repetição da palavra “justiça” no nosso versículo é explicado no TB San’hedrin 32b, da seguinte maneira: a execução da justiça, sem distinções ou distorções, deve ser o propósito de toda atividade judicial, seja esta uma atividade que visa decidir o juízo, seja uma atividade que busca chegar a um acordo entre as partes: “‘A justiça, e somente a justiça, seguirás’ – tanto para decidir o julgamento quanto para chegar a um acordo.” Em todos os juízos monetários “é louvável buscar o meio termo” (ibid. 6b), e há um dever louvável de se tentar fazer um acordo de paz entre os litigantes. E mesmo no caso de um acordo, o juiz não pode favorecer qualquer uma das partes.

  1. Não plantarás. Já explicamos no Êxodo (34:11-14) que Asherá é uma árvore que se considerava estar sob a proteção especial de um ídolo qualquer, de modo que seu crescimento e florescimento (ósher – prosperidade) eram considerados um sinal da presença e influência de tal ídolo. Isso corresponde perfeitamente à essência das idolatrias, que eram primordialmente forças da natureza cujo controle era expresso principalmente no desenvolvimento do mundo físico e suas manifestações.

Porém, tais ideias são diametralmente opostas à concepção judaica da Divindade. Não apenas o mundo físico, mas também o mundo ético, moral e espiritual do homem – num nível muito mais elevado, direto e próximo – está contido no âmbito do governo de Deus. Cada indivíduo de Israel é obrigado a submeter todo o seu ser espiritual, todas as suas aspirações e ações à autoridade de seu Deus, e somente desta forma ele poderá esperar participar do sucesso e prosperidade do mundo físico.

Um indivíduo de Israel não plantará uma Asherá ou “qualquer árvore” ao lado do altar de seu Deus que ele constrói para si mesmo (“que farás para ti”). Ele construirá seus altares para si mesmo, de modo que ele mesmo possa se subjugar, dedicar-se e elevar-se a Deus. E se sua essência humana moral e livre é subjugada, santificada e elevada a Deus, então o seu mundo sensorial-físico já está entregue ao governo bendizente e protetor de Deus. Ele não plantará qualquer árvore ao lado de seu altar. Por meio da consagração moral do altar e da dedicação de sua natureza humana a Deus, ele já tem tudo; e sem eles, ele não tem nada.

Esta é uma conclusão simples derivada da declaração anterior: “A justiça, e somente a justiça, seguirás, para que vivas”, e a partir desta justaposição, os nossos sábios aprenderam: “Todo aquele que nomeia um juiz desonesto sobre o público corresponde àquele que plantou uma Asherá em Israel, conforme foi dito: ‘Juízes e policiais designarás para ti’, e logo em seguida foi dito ‘Não plantarás para ti nenhuma Asherá’” (TB San’hedrin 7b). Estas palavras dos nossos sábios são muito mais do que apenas uma interpretação referente à justaposição dos versículos. Uma autoridade nacional que confia a manutenção da justiça a uma pessoa que não é apta a ser um juiz expressa que o cumprimento do nosso dever nacional não tem nada a ver com o nosso sucesso nacional, e, similarmente, aquele que planta uma Asherá busca alcançar o sucesso material sem o cumprimento fiel do seu dever.

Uma árvore plantada ao lado do altar obscurecerá a verdade judaica referente ao Eterno e à santificação do homem. Portanto, os nossos sábios acrescentaram um mandamento preventivo à proibição mencionada aqui, proibindo também qualquer construção aparente de madeira nos edifícios que cercam o altar no Templo: “Não se constrói pilastras de madeira no pátio do Templo” (TJ Tamid 28b; Maimônides, Leis de Idolatria 6:10).

  1. E não levantarás para ti um pilar (matsevá), porque o Eterno, teu Deus, odeia. Já explicamos (comentário sobre Gênesis 28:18 e 33:20) a relação entre um pilar e um altar. O pilar é uma só pedra retirada da criação do Eterno, e ela perpetua a atuação do Eterno na natureza e na História. O altar, construído com várias pedras, é uma edificação construída pelas mãos do homem, cuja finalidade é promover a submissão das ações humanas ao Eterno (compare com comentário ibid. 8:20).

Essa distinção torna possível explicar o significado da regra mencionada no nosso versículo, pois o pilar, que era “amado por Deus na época dos patriarcas”, tornou-se “odiado por Deus na época dos filhos deles” (Sifrí). Antes da outorga da Torá, era necessário informar à humanidade que somente Deus rege a natureza e a História, mas ainda não era possível submeter toda a vida do indivíduo e do povo à Torá do Eterno, uma vez que a submissão ao Eterno não podia ser revelada na vida do indivíduo e do povo. Portanto, ainda havia espaço para o pilar ao lado do altar. No entanto, com a outorga da Torá, o papel do pilar não foi apenas completamente absorvido pelo altar, mas sua construção também se tornou uma transgressão. Servir ao Eterno somente por Seu poder e força não é apenas algo que deixou de ser a Sua vontade, mas passou a ser algo odiado por Ele. Nas palavras do nosso versículo, o Eterno “odeia” toda admiração de Seu poder e força que não se expresse por meio da submissão ética e moral do ser humano à Torá do Eterno. O nosso conhecimento do Eterno e a nossa submissão a Ele devem ser expressos pela nossa obediência à Sua voz. Ele mede o nosso reconhecimento do Seu poder e força pela medida da nossa devoção à Sua vontade. Ele repudia todo tipo de submissão a Ele, na natureza e na História, que coloca o céu e a terra sob o Seu governo, enquanto nega o Seu domínio sobre o próprio ser humano, seu coração e seus pensamentos, desejos e ações. Não é o reconhecimento da existência do Eterno, mas o reconhecimento do Seu governo que constitui o propósito judaico, e essa é a única maneira para a salvação de Israel. O altar, não o pilar, é o símbolo do papel de Israel. O serviço ao Eterno que segue o caminho do pilar mata o espírito judaico.

De acordo com isso, o preceito “E não levantarás para ti um pilar” é meramente outra consequência do que foi dito anteriormente: “A justiça, e somente a justiça, seguirás, para que vivas e herdes.” Somente por meio do estabelecimento do modo de vida do indivíduo e do povo, de acordo com a vontade do Eterno, poderemos receber a bênção do Eterno e Sua proteção em nosso destino social e político. A lembrança dos grandes feitos do Eterno por meio do pilar põe em perigo esse reconhecimento, e “A justiça, e somente a justiça, seguirás, para que vivas e herdes” nega inequivocamente a Asherá e o pilar.

 

Torá Interpretada - Editora Sêfer

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Shofetim extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.

Comentário

Comentário