Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Vaetchanan extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer
Deuteronômio, Capítulo 6
4 Ouve, Israel! O Eterno é nosso Deus, o Eterno é um!
- Ouve. Já dissemos que Moisés revisou todos os preceitos da Torá e depois escreveu um pequeno resumo destes preceitos, que acompanhará e orientará os filhos do povo em sua chegada a uma nova era de dispersão (ver o comentário sobre DT 1:3 e 5).
O primeiro versículo desse resumo é aquele que até os dias atuais desperta a consciência judaica no coração de todo indivíduo de Israel, mesmo que tenha se tornado bastante afastado de seus irmãos judeus. É o primeiro versículo que uma criança judia aprende e é o último versículo por meio do qual seus amigos se despedem dela quando deixa este mundo. Esta é a declaração gravada na bandeira Divina que os judeus carregaram e seguem carregando no decorrer da História, e pela qual eles declaram que, no fim das contas, o Eterno conquistará novamente a humanidade. Esse é o último versículo que um judeu que se tornou alienado de seu povo jogará por terra. É o versículo que expressa o reconhecimento judaico da unicidade do Eterno, depois do qual vêm alguns versículos que são as conclusões deste reconhecimento. Em todo lugar que um judeu respira, educa seus filhos, administra sua vida nos espaços privado e público; em todo lugar que ele se deita e se levanta, lança suas mãos ao trabalho e define sua opinião em pensamentos; em todo lugar que ele constrói sua casa e fixa suas portas – esses versículos lembram-no do propósito de sua vida, dos objetivos de sua educação, do propósito de seus esforços pessoais e públicos. Eles o lembram dos princípios que precisam orientar seu comportamento, das premissas que precisam ser a base de seu pensamento e da santificação de sua vida em casa e na comunidade. Por isso, ele é obrigado a repetir para si esses versículos noite e dia, todos os dias de sua vida.
O nosso reconhecimento do Eterno não se baseia em testemunho auditivo, senão em testemunho ocular, alcançado por todos os membros da nossa nação de forma sensorial concreta. Moisés disse a seu povo: “A ti foi mostrado para que soubesses que o Eterno – Ele é o Deus, e não há outro além Dele” (acima 4:35). Porém, somente uma vez na História o Eterno surgiu no presente terreno e Se revelou ao Seu povo: no momento da implementação dos fundamentos para a criação de Seu povo. Dali em diante, uma geração contará à seguinte sobre a Revelação do Eterno, e cada comunidade testemunhará à sua sucessora e, por meio dessa tradição, a Revelação permanecerá como uma base irrevogável para todos os pensamentos e ações de qualquer indivíduo de Israel para sempre.
Dali em diante, não se disse mais “Vede, Israel”, mas sim, “Ouve, Israel”. Não a partir dos fenômenos que todo ser humano vê na natureza ou na História o judeu tirará conclusões em sua mente a respeito da existência ou inexistência do Eterno, pois o Eterno Se revelou aos nossos antepassados com uma certeza que transcende qualquer dedução advinda de investigações e analogias teóricas. Não só que lhes revelou Sua existência, como lhes revelou Sua presença dentro de cada ser terreno. Todos juntos chegaram ao conhecimento do Eterno por meio de uma percepção sensorial que afasta qualquer dúvida possível, e este conhecimento lhes foi concedido para que o transmitissem aos seus filhos e descendentes. Os nossos antepassados viram o Eterno na natureza e na História, no momento que Ele cortou as amarras de sua escravidão no Egito e os levou pelo caminho do deserto à terra a eles prometida. Eles escutaram o Eterno quando Ele lhes entregou a Torá no Sinai. Esse testemunho, atestado por toda a nação, é a base do nosso conhecimento do Eterno. Nem a partir da natureza nem a partir da História tiraremos conclusões sobre a fé no Eterno, mas sim, com base em nosso conhecimento do Eterno, examinaremos a natureza e a História e tentaremos entender os fenômenos naturais e os eventos históricos.
Quando o Eterno abre os nossos olhos para que assistamos a Sua atuação sobre a natureza e os nossos ouvidos para que escutemos Sua voz na História, e nós reconhecemos que toda obra grandiosa ou diminuta na natureza é ação Sua e que todo acontecimento relevante ou trivial da História é fruto de Sua supervisão – então veremos e escutaremos a regência do Deus de nossos antepassados sobre o mundo natural e sobre a História dos nossos dias. Como os nossos antepassados, seguiremos diante do Eterno por todos os dias das nossas vidas, e para sempre se dirá dos espíritos e corações de Israel: “Vejam os homens o Teu caminho, ó Eterno, o caminho do meu Rei e meu Deus conduzindo ao Santuário” (Salmo 68:25).
Assim sendo: “Ouve” Israel.
Esse conhecimento do Eterno, baseado na percepção sensorial de toda a nação, foi trazido acima (4:35) por meio das palavras “A ti foi mostrado para que soubesses que o Eterno – Ele é o Deus, e não há outro além Dele”, e de modo semelhante, “e saberás hoje, e considerarás no teu coração, que o Eterno – Ele é o Deus, em cima nos céus e embaixo na terra; não há nenhum outro” (ibid. 4:39). Porém, aqui ele é resumido num único adjetivo: “um”. A unicidade do Eterno, trazida aqui à nossa atenção como a primeira verdade fundamental do nosso conhecimento, não é senão a negação absoluta de qualquer ideia idólatra, seja antiga, seja nova.
O mundo da natureza e da História, bem como o mundo interior do próprio ser humano, abrangem diferentes tipos de fenômenos contrários, e essa multiplicidade de contradições originou – e ainda origina – o equívoco da multiplicidade de deuses, e é sua fonte principal. Dentro desses mundos cheios de contradições, a máxima “o Eterno é um” proclama: todos esses opostos – dos céus e da terra, do coletivo e do particular, das forças e matérias que atraem e afastam umas às outras, que apoiam e conquistam, constroem e destroem umas às outras; todas as alternâncias de dia e noite, de criação e extermínio, de florescimento e apodrecimento, de vida e morte, de aquisição e perda, de prazer e agonia, de subidas e descidas, de amor e ódio, de alegria e tristeza; assim como todos os opostos pelos quais o ser humano passa em sua vida interna: liberdade e servidão, espiritualidade e materialidade, forças celestiais e forças terrenas – tudo isso é obra de um único Deus. Pois o Eterno, que é único e singular, foi quem criou e mantém todos esses opostos, e foi Ele que gerou todos esses opostos ao nosso redor e dentro de nós. Dele provêm nossas alegrais e sofrimentos, nosso corpo e nosso espírito. Ele formou o corpo e, quando soprou dentro dele o espírito que veio Dele, nos agraciou com uma personalidade que veio da Sua e com uma liberdade advinda da Sua.
Pensadores idólatras observaram esse mundo de fenômenos opostos e, por terem avaliado tais fenômenos de forma subjetiva, de acordo com sua relação com o ser humano, dividiram todos os tipos de fenômenos em dois grupos opostos: um grupo incluía as forças compatíveis com as vontades do ser humano e suas paixões, e o segundo grupo incluía as forças que contrariam o homem. Toda a multiplicidade de categorias presentes no mundo idólatra se transformou, em sua concepção, em dois deuses supremos que disputam a supremacia sobre o mundo e sobre o ser humano. Em sua opinião, esse conflito inconciliável origina todos os fenômenos contrastantes do mundo exterior e da vida íntima do ser humano. Para eles, havia uma força do bem, dotada de luz, vida e bondade, e, em oposição a ela, uma força do mal, os deuses da noite, das trevas e da maldade. Esta era a concepção de dualidade dos antigos persas, contra a qual Isaías (45:6-7) dirigiu as seguintes palavras: “para que todos, do leste e do oeste, soubessem que nada há além de Mim; Eu, somente, sou o Eterno, e nenhum outro existe. Eu formo a luz e crio a escuridão; Eu faço a paz e sou Eu Quem cria o mal; Eu sou o eterno que tudo faz.”
Porém, a verdade plena do judaísmo, trazida à nossa consciência por meio da declaração “Ouve”, não proclama apenas a unicidade do Eterno; ela não afirma somente que os dois âmbitos que a concepção idólatra enxerga como os domínios das forças de dois deuses concorrentes não passam de dois aspectos da soberania do Eterno, do Deus único, uma vez que, por meio de Seu atributo da misericórdia, Ele nos dá vida de agora em diante e, por meio de Seu atributo da severidade, nos julga com relação ao passado – mas sim, que, na realidade, a própria soberania do Eterno é unificada, e somente em nossa compreensão limitada ela aparenta ser dupla, pois mesmo quando Ele toma o severo atributo do juízo, Ele o faz com amor, e Seu próprio julgamento não é senão a revelação de Seu amor. Não apenas “o Eterno, nosso Deus, é um” como “o Eterno é nosso Deus, o Eterno é um” – mesmo como “Deus” Ele é “o Eterno”!
Ao que tudo indica, também os nossos sábios explicam a “unicidade do Eterno” como expressão da verdade de que o Eterno é o Deus único. Assim consta no Midrash Devarim Rabá: “Disse o Santíssimo a Israel: Meus filhos, tudo que criei, criei em duplas: os céus e a terra, o sol e a lua, Adão e Eva, este mundo e o mundo vindouro; porém, Minha glória é única e singular no universo. De onde aprendemos isso? Do que lemos sobre esse tema: ‘Ouve, Israel! O Eterno é nosso Deus, o Eterno é um’”. E no Midrash Êle Hadevarim Zuta (ver Ialcut sobre o nosso versículo) disseram: “Mas Aquele que falou e por Sua fala o mundo surgiu não é assim; nos alimentou, não temos outro senão Ele; nos esfomeou, não temos outro senão Ele; ‘o Eterno é nosso Deus, o Eterno é um’; e assim disse Jó (1:21): ‘O Eterno deu, o Eterno tomou. Seja abençoado o nome do Eterno’.” E os nossos sábios dizem ainda (TB Berachót 13b) que, no momento que o ser humano reconhece que somente o Eterno controla todos os elementos do mundo, nos céus e na terra, ele cumpre sua obrigação de reconhecer o Eterno contida na leitura do Shemá (“Ouve”): “Pelo fato de tê-Lo coroado em cima e embaixo e nos quatro cantos do mundo, mais não é necessário.” Na sua opinião, o significado da leitura do Shemá é “aceitação do jugo do reinado dos Céus” (ibid., 15a em diante) – ou seja, a nossa obrigação de colocar a nós mesmos e todo o nosso mundo sob a soberania única do Eterno.
Os filósofos teóricos atribuem outro significado à declaração “o Eterno é um”. Na opinião deles, essa declaração nos ensina algo sobre a essência do Eterno e a natureza de Seu ser. Eles explicam o termo “um” não como “único e não há outro”, e sim, como um e de essência unitária; algo simples que não é complexo. Eles alegam que essa declaração é a chave para um conhecimento que está além da percepção humana e nos dá uma compreensão da natureza do próprio Eterno. Contudo, do que conhecemos, não há respaldo para essa explicação nos escritos dos nossos sábios. Não só isso como, segundo essa explicação, a unicidade do Eterno – que precisa ser o fundamento básico de todos os nossos pensamentos – torna-se sem utilidade para as nossas vidas. Em nossa opinião, tais filósofos ignoraram as limitações do intelecto humano.
Na Torá, a última letra da palavra echad (um) – a dálet (ד)– vem escrita em tamanho aumentado, talvez para evitar que as pessoas errem e a leiam como uma resh (ר), resultando equivocadamente na palavra acher (outro). Em contrapartida, no versículo “pois não te curvarás a outro (acher) deus” (Êxodo 34:14), a letra resh no final de acher vem escrita em tamanho aumentado, para que ninguém erre e leia echad no lugar de acher. O formato da letra resh do pensamento idólatra possui uma ponta curva e de fácil tendência para lá ou para cá. Já o formato da letra dálet – assim como a verdade judaica – possui uma ponta angular que não se compromete. Com a perda deste pequeno ângulo pontudo, o “um” se torna “outro”.
O motivo pelo qual a letra áin (ע), no final da palavra shemá (Ouve), é escrita em tamanho aumentado é menos evidente. Talvez ela venha indicar que é necessário pronunciar o áin de forma acentuada e clara, para que a expressão shemá não soe como shêma (“talvez”, em aramaico).
Essas duas letras maiores juntas formam a palavra עד (ed –testemunha), que indica também o conceito de testemunho. O conteúdo do trecho Shemá Israel é o testemunho transmitido do israelita ao próprio israelita, e todo aquele que diz o Shemá Israel se torna uma testemunha do Eterno, que transmite um testemunho para si e para todo o mundo. Talvez não seja ousado dizer que o áin (olho) foi testemunha daquilo que o Shemá Israel expressa. O Shemá transmite a tradição de que “A ti foi mostrado para que soubesses”.
Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Vaetchanan extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.