Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Ékev extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer
Deuteronômio, Capítulo 8
1 Cuidareis de cumprir todo o mandamento que eu te ordeno hoje, para que vivais e vos multipliqueis, e ides e herdeis a terra que o Eterno jurou a vossos pais. 2 E te recordarás de todo o caminho pelo qual o Eterno, teu Deus, te levou nestes 40 anos no deserto, para afligir-te, para provar-te e para saber o que estava em teu coração – se guardarias os Seus mandamentos ou não. 3 E te afligiu, te fez padecer fome e fez-te comer o Maná, que não conhecias e que teus pais jamais conheceram; para fazer-te saber que nem só de pão vive o homem, senão que de tudo o que sai da boca do Eterno, disso vive o homem. 4 Tua roupa, que levas sobre ti, não se envelheceu, e teu pé não se inchou nestes 40 anos. 5 E saberás com o teu coração que, como o homem corrige seu filho, assim te corrige o Eterno, teu Deus.
- O final do capítulo anterior enfatizou a nulidade absoluta dos deuses da idolatria e determinou a obrigação que deriva desse fato – de afastarmos dos âmbitos da mente e espírito de Israel, bem como de suas propriedades físicas, todo elemento relacionado, mesmo que infimamente, a essas divindades. Por outro lado, o capítulo enfatiza a existência positiva e elevada do Eterno, uma existência revelada a Israel e que devemos manter diante dos nossos olhos constantemente. Graças a essa realidade, cumpriremos fielmente os preceitos do Eterno, pois este é o único caminho para garantir a nossa redenção eterna.
todo o mandamento. Nada relacionado ao politeísmo poderá contribuir de qualquer modo para a nossa felicidade, e mesmo a mais diminuta conexão com o culto aos deuses nos incluirá na maldição proclamada com relação a isso, pois a submissão do politeísmo é o objetivo da governança do Eterno e a essência do propósito de Israel entre os povos.
Porém, não basta a simples negação do politeísmo para garantir a nossa felicidade. Há também a necessidade de uma dedicação positiva absoluta à realização da vontade do Eterno, conforme ela se revelou na nossa Torá. Depois de estar livre de qualquer vestígio de idolatria (acima 7:26), a casa precisa ser um lugar para o cumprimento dos preceitos, e somente desta maneira ela se tornará uma casa apta para a vida e o sucesso. Os povos acreditam em seus corações que suas casas são protegidas pelas estátuas; contudo, nossas casas são protegidas pelos preceitos.
para que vivais e vos multipliqueis, e ides e herdeis. O cumprimento dos preceitos nos confere uma vida pessoal de crescimento, que se manifesta por meio da bênção dos filhos, e também nos fornece independência do mundo exterior e abundância e sucesso na Terra de Israel. A vida privada, a bênção da família e o sucesso nacional nos são garantidos única e exclusivamente por meio do cumprimento dos preceitos. Ao os observarmos, estamos preservando a nossa própria felicidade.
- E te recordarás de todo o caminho. O cumprimento dos preceitos é a condição exclusiva, obrigatória e suficiente para a preservação da nossa conexão com o Eterno, bem como uma garantia à nossa felicidade. A confiança nesse poder do cumprimento dos preceitos é a base forte do nosso propósito, e o Eterno nos guiou durante 40 anos pelo deserto para nos educar para essa confiança e certeza. Por isso, devemos recordar sempre a nossa jornada pelo deserto sob as asas protetoras da Presença Divina, e a festa de Sucót é uma recordação eterna dessa jornada (ver Levítico 23:42-43).
para afligir-te. Significa principalmente para te fazer o mais pobre possível e privar-te de qualquer independência.
para provar-te. Colocar-te em teste.
para saber. Para que você possa conhecer a si mesmo; para que você aprenda até que ponto já chegou à força ética e moral necessária para um cumprimento consistente dos preceitos. Devoção absoluta na governança do Eterno, e confiança no Eterno, que liberta o ser humano de todas as preocupações, exceto a preocupação de cumprir sua obrigação – estes são os princípios dos quais dependem a obediência à voz do Eterno. “Será que estou preparado, na medida necessária, para sair ao deserto com minha mulher e meus filhos a fim de permanecer fiel ao Eterno e escutar Sua voz?” – esta é a pergunta que o ser humano é obrigado a se perguntar a fim de avaliar a medida de sua força ética e moral.
- E te afligiu. Ele forneceu o seu alimento de uma maneira sem paralelos, quando comparada aos eventos vividos anteriormente por você ou por seus pais.
para fazer-te saber. Para que você aprenda com base naquilo que vivenciou durante 40 anos “que nem só de pão vive o homem”.
“Pão” (léchem) é o alimento que o ser humano luta (milchamá, “guerra”, vem da raiz léchem) para conseguir da natureza numa espécie de competição com seus companheiros humanos. O pão é o produto conjunto da natureza com o intelecto humano e pelo qual o ser humano domina o mundo. Verifica-se que o pão representa o intelecto humano, com o qual o ser humano, por meio de uma parceria social, produz seu meio de subsistência.
Entretanto, será um erro pensar que essa força humana produtiva é a única coisa necessária para sua subsistência na terra. O principal fator no sustento do ser humano é a supervisão do Eterno; Sua mão cheia e generosa é perceptível em cada pedaço de pão com o qual sustentamos mais um instante da nossa sobrevivência. O esquecimento deste fato corresponde a cair como presa nas mãos de uma imaginação vã e perigosa ao extremo, que fará com que a nossa dedicação ao dever seja abalada. A preocupação em atender as necessidades da esposa e dos filhos é por si só um motivo tão justificável às nossas atividades, que facilmente poderá fazer desaparecer de diante dos nossos olhos todas as demais considerações, no momento em que tomarmos ciência de que somente nós mesmos somos capazes de prover nossa subsistência e a dos que dependem de nós. Então, seremos capazes de nos convencer de que todo lucro que conseguimos por meio das nossas próprias forças, da natureza ou dos nossos companheiros seres humanos garantirá o nosso sustento e o daqueles que dependem de nós, sem levar em conta quais meios nos serviram para alcançar tal objetivo. Se for esta a nossa postura, não nos importará se, ao fazê-lo, estivermos cumprindo os preceitos do Eterno e ganhando o nosso pão somente através de meios dentro do contexto de limites que o Eterno nos impôs, ou se estivermos conseguindo a nossa subsistência por meio de truques espertos, sem avaliar se o Eterno concorda com os nossos métodos.
Mesmo que a ideia de que podemos nos apoiar somente em nossas forças humanas para ganhar o nosso pão não cause que saiamos dos caminhos da obrigação e da justiça, é bem possível que isso leve os nossos pensamentos para além do presente imediato, mais e mais adiante, ao futuro distante, e assim chegaremos a pensar que não estaremos cumprindo a nossa obrigação a não ser que garantamos meios de sobrevivência, não apenas para o nosso futuro, como também para o futuro dos nossos filhos e netos. Como resultado, a preocupação com o sustento se tornará uma perseguição sem fim e não nos deixará tempo livre ou forças para os assuntos puramente espirituais, éticos e morais.
Por esse motivo, o Eterno nos guiou por 40 anos pelo deserto. Lá, na escassez de todos os recursos que possibilitam em geral ao ser humano adquirir o seu pão, numa combinação entre as fontes naturais e as forças humanas, o Eterno destacou salientemente o fator que, em circunstâncias normais, nós ignoramos com muita facilidade. Ao invés de nos sustentar com um pão que levasse o carimbo da capacidade humana, Ele nos alimentou com o maná, dado somente pela mão do Eterno em porções, e o fez descer para nós a cada dia, para cada alma das nossas tendas, de maneira a demonstrar com clareza a Sua supervisão pessoal sobre cada alma, grande ou pequena. Portanto, nesta escola que nos preparou para a nossa vida futura, aprendemos a seguinte verdade básica: a subsistência do ser humano não depende somente do pão – ou seja, dos recursos naturais e humanos representados pelo pão –, mas sim, que o ser humano pode sobreviver por meio de qualquer elemento que o Eterno determinar, e mesmo o pão que o ser humano produz com o talento das suas atividades é determinado pelo Eterno. Assim sendo, a pessoa não estará perdida se decidir abrir mão, por sua fidelidade ao Eterno, de tudo que se pode conseguir das fontes humanas e naturais; e, de fato, o ser humano precisa saber que, mesmo em plena abundância extraída das fontes humanas ou naturais, ele ainda deve apoiar o seu sustento única e exclusivamente na supervisão particular do Eterno sobre si.
A expressão “viver de” (literalmente, “viver por”), presente no nosso versículo, pode ser comparada com “por tua espada viverás” (Gênesis 27:40), uma vez que a espada é a base sobre a qual Esaú coloca seu sustento. Da mesma forma, “E quando o iníquo retornar de sua iniquidade, e fizer o que é justo e correto, por isto viverá” (Ezequiel 33:19), pois os atos corretos e justos aos quais um homem perverso retorna traduzem-se na base sobre a qual poderá construir novamente a vida que perdeu por sua perversidade.
que sai da boca do Eterno. Cada ordem que sai da boca do Eterno é chamada desta maneira; compare com “Também a palavra que de Mim emanar (pela boca dos profetas)” (Isaías 55:11). Assim também é no tocante ao ser humano: a palavra que ele pronuncia como juramento ou como desejo que deve ser cumprido é chamada de “o que sair dos teus lábios” (adiante 23:24; Jeremias 17:16), assim como a bênção que o Eterno concedeu à Casa de David: “não modificarei o pronunciamento de Meus lábios” (Salmo 89:35).
- Tua roupa. Você vislumbrou a influência do poder milagroso do Eterno, que leva em consideração todas as necessidades do momento, até sobre você mesmo. Ele deu às suas roupas e à sua pele uma capacidade de preservação tão grande, que sua veste não envelheceu e seu pé não inchou na marcha prolongada.
- E saberás (…) como o homem corrige (ieiassêr). O significado da raiz iassêr pode ser provado a partir de diversas passagens bíblicas, como em “Quem corrige (iossêr) o irônico não consegue mais que passar vergonha” (Provérbios 9:7), “obedecei (hivasrú), ó governantes da terra” (Salmo 2:10), “Não se pode corrigir (ivassêr) o servo com palavras” (Provérbios 29:19), além da própria derivação do substantivo mussar (moral). Todas são evidência suficiente de que a raiz iassêr – seja em modo leve, seja em modo intenso – não denota necessariamente repreensão por meio de punição.
A proximidade de iassêr com iatser (formar) e iasher (endireitar), como também casher (com caf, validar) e casher (com cof, ligar), indica que o significado básico de iassêr é que o sujeito da ação (o meiasser) tenta fazer com que forças distintas e diversas sejam direcionadas de forma constante para um determinado objetivo, acionando o seu poder de influência por meio de fatores externos ou de palavras que apelam à razão. Verifica-se que o significado básico de iassêr é ensinar a uma pessoa uma lição, construir seu caráter, incutir-lhe valores.
A jornada pelo deserto por 40 anos foi como um processo educativo, que ensinou e construiu. Ela nos ensinou sobre a supervisão do Eterno – que está em toda parte, cuida com amor e está disponível a todo momento –, construiu o nosso caráter e nos treinou para uma devoção tranquila e confiante em Seu governo. Esse processo fundamentou em nossos corações a fé de que a nossa completude ética e moral – que deve ser alcançada por meio de orientação e treinamento –, é um assunto próximo ao coração do Eterno. Portanto, Sua supervisão direciona o nosso destino conforme a necessidade da nossa educação ética e moral, nos ensina por meio de vivências pessoais e treina as nossas forças éticas e morais através de exercícios constantes. Desta forma, nos foi provado que o Eterno Se relaciona conosco em Sua supervisão como um pai, e tudo que Ele nos envia, seja alegria ou sofrimento, destina-se a nos fazer melhores e nos refinar em termos éticos e morais. Sobre esta fé plena, foi dito aqui: “E saberás com o teu coração”.
com o teu coração. O sentido dessa expressão não é o mesmo de “em teu coração”. Na linguagem “em teu coração”, o coração é o órgão do reconhecimento, enquanto “com o coração” deve ser interpretado no sentido de “como estava (sentindo) meu coração” (Josué 14:7), quando a pessoa indica concordância com a opinião que está em seu coração. Quando Calev contou sua história, ele permaneceu fiel à sua opinião, mesmo tendo contradito dessa maneira a opinião dos seus companheiros. Este é o significado do que foi dito em 1 Reis 8:17 (compare com 1 Crônicas 22:7 e outras passagens): “E esteve com o coração de David, meu pai” – no sentido de que David expressava esse pensamento constantemente, e era uma intenção que ele sempre guardava em seu coração. Da mesma forma, a expressão “tudo quanto tinha com seu coração” (1 Reis 10:2) não pode ser explicada como “a rainha de Sabá disse a Salomão tudo que pensou em seu coração”, pois todo o seu objetivo era testar a famosa sabedoria dele por meio de seus enigmas e verificar se ele seria capaz de adivinhar os pensamentos que ela lhe apresentou na forma de charadas, pois logo depois foi dito: “E Salomão respondeu-lhe todas as suas perguntas”, de modo que a expressão “tudo quanto tinha com seu coração” só pode se referir às tais perguntas nas quais ela pensou para o citado objetivo e as quais levou em seu coração em sua jornada a Salomão. Assim também: “coisa perversa com o teu coração” (adiante 15:9) não é um pensamento inadequado que a pessoa permite que lhe venha à mente uma só vez, mas sim, um estado de espírito que a pessoa traz no coração como um princípio que orienta seus caminhos.
De acordo com essa ideia, “E saberás com o teu coração” deve ser explicado assim: os eventos do passado lhe ensinaram que, em tudo pelo que você passa, o Eterno lhe educa como um pai, e esta deve ser uma informação básica, que guiará você em todo o seu futuro.
- E guardarás. Essa fé gerará outra fé – a de que somente por meio de uma devoção total ao cumprimento das nossas obrigações poderemos influenciar o nosso destino para o bem. Nossa completude ética e moral é a única coisa colocada totalmente em nossas mãos, e por conseguinte, também o nosso destino está em nossas mãos, pois a nossa completude ética e moral, que é o fundamento ao qual o Eterno nos educa ao longo de todos os acontecimentos das nossas vidas, implica na guarda estrita dos preceitos do Eterno e andar pelos caminhos Dele e pelos caminhos que Ele quer que sigamos – e isso está implícito em “Seus caminhos” e “e temendo-O”, ou seja, considerando-O sempre diante dos nossos olhos.
Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Ékev extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.