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Parashá Semanal - Leitura da Torá

Buscar sempre a preservação do consenso

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Rêe extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer

 

Deuteronômio, Capítulo 14

1 Vós sois filhos do Eterno, vosso  Deus; não fareis cortes em vossa carne e não vos fareis raspar a cabeça entre os vossos olhos por causa de um morto; 2 pois és um povo santo para o Eterno, teu Deus, e a ti o Eterno escolheu para ser, para Ele, povo exclusivo, mais que todos os povos que há sobre a face da terra.

  1. O capítulo anterior tratou de pessoas que usam o poder de sua influência para o mal, a fim de desviar os nossos corações do caminho do Eterno; pessoas de destaque por sua elevação espiritual ou por seu status social – os falsos profetas e aqueles que corrompem os habitantes da cidade corrompida –, ou por serem queridas por nós, como familiares ou amigos – o incitador. A regra que emerge daí é que espiritualidade, status social, relações familiares e amizades – tudo isso deve ser considerado nulo e sem valor aos nossos olhos, se for usado como meio para nos desviar do caminho do Eterno.

Os preceitos que virão agora possuem uma ligação estreita com o que foi dito anteriormente. De fato, eles já foram mencionados antes, no Levítico (19:27-28 e 21:5), mas são retomados e reproduzidos aqui por sua importância decisiva para a época que se aproxima e se concretiza, durante a qual o povo se dispersará por toda a extensão da Terra de Israel.

Já mencionamos no Levítico (ibid.) como a proibição de arranhar a pele e arrancar os cabelos como demonstração de sofrimento por causa de um morto pretende preservar a sensação de autoestima do indivíduo, oriunda do fato de ele pertencer ao Eterno de forma direta. Essa sensação de valor próprio precisa ser preservada em nossa relação com qualquer pessoa, mesmo que ela seja muito amada e admirada por nós. Nenhum ser humano deve exercer influência tão forte sobre nós, ao ponto de nos anularmos completamente por ele, de modo que, quando ele partir deste mundo, sintamos a necessidade de nos atirarmos atrás dele, como se fôssemos um objeto quebrado de barro. Tal perda injustificável da autoestima pode ser percebida pelos outros por meio de um ato que produz uma ferida permanente ou por meio da raspagem dos cabelos.

O capítulo anterior descreveu como a nossa relação com o Eterno pode estar em perigo por causa de uma dedicação exagerada a pessoas que conquistaram o nosso amor e a nossa admiração. Tal perigo pode se manifestar mais facilmente quando os filhos da nação estão dispersos por toda a extensão da Terra de Israel. Ao habitarem em pequenas localidades dispersas e isoladas, distantes da influência do centro espiritual – o Templo –, eles podem sofrer a influência de indivíduos que os impressionem por sua elevação espiritual ou status social.

Por isso, a Torá retoma aqui as proibições de fazer cortes na pele e de arrancar os cabelos por causa de um morto, pois tais proibições vêm para preservar a nossa sensação de autoestima, mesmo quando se trata de familiares e pessoas que nos são muito queridas, e elas vêm gravar no coração do povo, do mais jovem ao mais velho, a importantíssima declaração de que “Vós sois filhos do Eterno, vosso Deus”, e antes de qualquer coisa, vocês são “parentes” do Eterno, de modo que a conexão que liga vocês ao seu Deus antecede toda e qualquer outra conexão espiritual ou emocional que vocês possam ter.

No TB Macót 21a (e também no TB Ievamót 13b), os nossos sábios dizem que a expressão “por causa de um morto” está relacionada também a “não fareis cortes em vossa carne (lo titgodedú)”. Porém, a partir do versículo “e se flagelaram com facas e com lanças (vaitgodedú), como era seu costume” (1 Reis 18:28), eles provam que há também o costume de fazer cortes na carne por causa de idolatria, que constitui um ato de culto direcionado aos deuses. E já abordamos o significado do corte na carne por causa de idolatria, no contexto de incisões por um morto, no nosso comentário sobre Levítico 19:28.

  1. pois és um povo santo (am cadosh). Não é usada aqui a expressão goi cadosh, que se refere a uma união nacional superficial, mas am cadosh, uma nação unida em sua composição social interna, apesar da quantidade de círculos sociais que possui. A sociedade nacional desse povo é absolutamente subjugada ao Eterno, e todos os círculos dessa sociedade são iguais em sua santidade e em sua relação direta com o Eterno. Essa visão de uma sociedade humana pertencente única e exclusivamente ao Eterno e de uma vida pública plena, construída sobre uma base de submissão total ao Eterno, é o objetivo pelo qual fomos escolhidos pelo Eterno.

não fareis cortes (lo titgodedú) em vossa carne. Lo titgodedú significa “não façam qualquer corte em seus corpos”. Porém, no TB Ievamót 13b-14a, os nossos sábios dizem que essa proibição se refere também ao “corpo” nacional, e daqui eles aprendem a lei de que “não façam grupos e grupos (agudot, agudot)” – ou seja, que devemos permanecer unidos no cumprimento da Torá e não permitir que as divergências no estudo e no ensino “dividam” a nação em comunidades separadas e em grupos opostos. De fato, um grupo isolado de pessoas, ou uma unidade militar, é chamado de guedud. Portanto, lo titgodedú pode significar também “não se separem, não se dividam em grupos”.

De fato, se estiver correta a nossa compreensão das raízes linguísticas do tipo pê-álef (ver nota de rodapé acima sobre 6:5), então agad é, na verdade, a-gad – separar com o propósito de criar um grupo exclusivo. O verbo que indica a reunião em grupos e a aparição em grupos separados só é conjugado em sua forma leve – gud ou gaded. E nos parece que isso é o que está por trás do dito dos nossos sábios no TB Ievamót 13b, de que, se a intenção do versículo fosse proibir apenas as divisões em grupos (e não incisões na carne), bastaria dizer lo tagôdu ou lo tagúdu, ao invés de lo titgodedú.

Portanto, esta é uma advertência que também está incluída no nosso versículo, além da proibição de fazer cortes na carne por causa de um morto: é proibido que divergências na explicação da Torá ou nas conclusões tiradas da Torá levem a disputas que causem divisões na comunidade, quando uma parte do povo segue a opinião deste e outra parte do povo segue a opinião daquele, “como, por exemplo, quando há um tribunal em certa cidade, e um grupo de juízes instrui conforme as palavras da Academia de Shamai, e outro grupo de juízes conforme a Academia de Hilel” (ibid. 14a). O único grupo da congregação unificada não deve ser dividido em diferentes grupos, mas sim, todas as divergências devem ser resolvidas de acordo com as regras que a própria Torá fornece para definir e decidir qual opinião deve ser seguida nessas disputas. Desta forma, a unidade dos procedimentos práticos será preservada, na medida em que essa unidade é organizada pela Torá.

As instituições erguidas por meio dessa lei da Torá se preocuparam, em geral, com a preservação de um consenso unificado no tocante à execução dos preceitos. Mais adiante (16:18 em diante), veremos que a designação de uma entidade máxima, detentora da autoridade da Torá, levou à decisão final de todas as divergências no tocante à explicação da Torá e às conclusões que devemos tirar dela.

De fato, durante 1.200 anos, até os primeiros séculos da época do Segundo Templo, havia consenso absoluto em relação ao modo de praticar os preceitos. Somente uma disputa não havia sido solucionada, e mesmo ela tratava somente de assuntos que derivavam de proibições preventivas estipuladas pelos sábios: “a utilização de animais” no contexto do cumprimento do preceito da imposição das mãos (semichá) sobre um animal que será sacrificado numa das datas festivas sagradas enumeradas pela Torá (TB Chaguigá 16a-b). Mesmo os próprios Hilel e Shamai divergiram apenas em três temas, dos quais somente um se relacionava a uma obrigação bíblica, enquanto os outros dois tratavam somente das proibições preventivas rabínicas (TB Shabat 15a).

Porém, na época dos alunos deles, explodiram rebeliões políticas, e os estudiosos da Torá não puderam estudar com sobriedade e alma serena, e quando aconteceu a tragédia da destruição do Estado, a pressão, as perseguições e a dispersão do povo romperam a ligação entre os alunos e os mestres da Torá, bem como entre as comunidades dispersas e o centro da vida nacional. Somente então ocorreu esse fenômeno – de dúvidas e disputas no tocante à tradição e sua explicação permanecerem não solucionados –, o que levou às diferenças entre as comunidades isoladas em relação ao modo de cumprir os preceitos.

A união foi restaurada, posteriormente, somente graças à atuação do Rabi Iehudá Hanassi, que compilou, esclareceu, definiu e solucionou as disputas no tocante à tradição e sua explicação. Os resultados de seu trabalho foram eternizados no código de leis da Mishná. Duzentos e cinquenta anos depois, o Rav Ashi e o sábio Ravina executaram um trabalho semelhante para a uniformização da prática dos preceitos, por meio da edição do Talmud, numa época em que comunidades e indivíduos estavam ainda mais dispersos e isolados.

Em tempos como esses, quando não há uma entidade nacional suprema, detentora da autoridade da Torá, certamente surgirão diferenças locais em termos da prática dos preceitos. O Maimônides (Leis dos Rebelados 1:5) acrescenta a possibilidade de haver uma entidade competente, mas as partes discordantes não terem procurado por ela ou que ainda não tivessem acatado a sua decisão. Para tempos como esses foi dito lo titgodedú – “não façam grupos e grupos”. Esse preceito exige que, dentro de comunidades unidas, “um tribunal em uma cidade” – ou, de acordo com Maimônides (Leis de Idolatria 12:14), mesmo em duas comunidades de uma mesma cidade, “dois tribunais em uma cidade” –, todas as divergências relacionadas ao cumprimento dos preceitos sejam decididas com base nas regras de determinação da lei que estão em nossa posse e que nos orientam sobre como agir em casos de dúvidas e questionamentos dessa natureza, para que, dessa forma, seja evitada uma maior divisão na maneira de cumprir a Torá.

Deve-se levar em conta que todas as leis do capítulo anterior trataram do dano que pode ser causado pela forte influência que determinados indivíduos exercem sobre círculos próximas a eles. Deve-se ainda levar em conta que a proibição de lo titgodedú pretende (de acordo com a nossa interpretação) evitar a valorização exagerada e descabida de indivíduos. No fim das contas, devemos nos lembrar de que a divisão em grupos, contra a qual a segunda explicação de lo titgodedú vem nos advertir, ocorre, em geral, quando há divergências entre dois indivíduos, e diferentes partes do público seguem o primeiro ou o segundo. Levando em conta todos esses fatores, podemos entender a ligação íntima e profunda entre essas duas proibições, sendo que ambas são aprendidas a partir da expressão lo titgodedú.

 

Torá Interpretada - Editora Sêfer

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Rêe extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.

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