Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção YITRÓ extraída da obra torá interpretada – À luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer
Êxodo, Capítulo 20
1 E Deus falou todas estas palavras, dizendo: 2 “[1º] Eu sou o Eterno, teu Deus, que te tirei da Terra do Egito, da casa dos escravos. [2º] Não terás outros deuses diante de Mim. 3 Não farás para ti imagem de escultura e figura alguma – o que há em cima nos céus, abaixo na terra e nas águas debaixo da terra. 4 Não te prostrarás diante deles nem os servirás, pois Eu sou o Eterno, teu Deus, Deus zeloso, que cobro a iniquidade dos pais nos filhos, sobre terceiras e sobre quartas gerações aos que Me odeiam, 5 e faço misericórdia até duas mil gerações aos que Me amam e aos que guardam Meus mandamentos.
- Eu (Anochí). Já comentamos várias vezes a respeito da diferença sutil entre anochí e aní (ambos traduzidos como “eu”), especialmente na fala de Deus (ver acima comentário sobre 11:4). Aní indica a personalidade do falante – em oposição à pessoa a quem o discurso é dirigido – e refere-se a essa personalidade como a origem da fala ou da ação (aní vem da raiz aná – onde). Em contrapartida, anochí revela o falante como uma personalidade que é intimamente próxima da pessoa a quem o discurso é dirigido, que a rodeia, carrega e apoia, e que somente através dela aquele a quem o discurso é dirigido poderá receber verdadeiramente sua existência pessoal e sua posição segura.
Eu sou o Eterno, teu Deus. Quão temível foi o esplendor da glória desse evento! Em meio às vicissitudes e reviravoltas da natureza, enquanto os fundamentos da terra tremiam, Deus Se declarou a única, verdadeira e absoluta personalidade – o anochí – de todo o universo, e que apenas por Seu intermédio pode haver qualquer outro tipo de existência, em potencial ou na prática. E então Deus Se dirige a cada judeu e judia e diz: Eu sou o teu anochí – “Eu (Anochí) sou o Eterno, teu Deus”.
Se este versículo for interpretado não como uma declaração, mas como um mandamento, não devemos lê-lo como “Eu, o Eterno, sou o teu Deus”, mas sim, “Eu, o Eterno, devo ser o teu Deus” – em outras palavras, você tem a obrigação de Me aceitar como teu Deus. Assim, essa fala estabelece a base para o nosso relacionamento com Deus, e essa é a obrigação que os nossos sábios chamam de “aceitar o jugo do reino dos céus”.
Aquilo que os filósofos da Antiguidade, assim como os contemporâneos, chamam de “crença na existência de Deus” está diametralmente longe do significado desse versículo a respeito dos fundamentos do pensamento e da vida judaicos. A verdade fundamental da vida judaica não é a crença na existência de Deus, nem a crença de que Deus é um e único, mas sim, que o Deus único, o Deus da verdade, é meu Deus; Ele me criou e me formou, me deu o meu status e me informou do meu dever; e Ele continua a me criar, proteger, guiar e conduzir. Minha crença não é que minha conexão com Deus se deu por meio de uma cadeia infinita de eventos e como resultado aleatório de um mundo que foi Sua primeira causa milênios atrás, mas que cada respiração minha e cada momento da minha existência é um presente direto de Seu poder e amor, e meu dever é dedicar cada momento da minha vida apenas ao Seu serviço.
Em outras palavras, o essencial não é saber da existência de Deus, mas reconhecer e admitir que Ele é o meu Deus, que meu destino está apenas em Suas mãos e que apenas Ele estabelece os meus atos. Frente ao mandamento “Eu sou o Eterno, teu Deus” há apenas uma resposta: Tu és o meu Deus!
que te tirei. E qual é a base factual sobre a qual essas verdades fundamentais se sustentam? O texto menciona o Êxodo do Egito – um fato fundamental que vimos com nossos próprios olhos e que possui dois aspectos: “que te tirei da Terra do Egito” e “da casa dos escravos”. No primeiro aspecto, Deus Se revelou como o defensor do nosso destino. No segundo, ele nos adquiriu como Seus escravos e, portanto, todas as nossas obras pertencem exclusivamente a Ele.
da Terra do Egito. Da terra e do país que nos mantinha aprisionados por correntes, representava a essência do estadismo e do poder humano e colocava à sua disposição todos os meios naturais. De lá, o Eterno nos tirou, destruindo o poder do homem e as forças da natureza e as transformando ou exterminando conforme o Seu desejo. Ele Se sentou para julgar a maldade do homem e a adoração das forças naturais, esmagando os tiranos e erguendo os inocentes espezinhados, redimindo-os e, assim, cumprindo Sua promessa. Deus gravou a Si para sempre em nossa consciência por Sua retidão e amor, delineando a forma do destino do homem, intervindo diretamente nos assuntos terrenos e nos redimindo da Terra do Egito. Aquele que pode nos dizer “que te tirei da Terra do Egito” é quem devemos reconhecer, por todas as gerações, como o único que desenha a forma do nosso destino, onde quer que formos.
da casa dos escravos. O Egito era para nós uma “casa de escravos”, na qual éramos escravos desde o ventre e o nascimento. A negação da nossa liberdade, imposta pela força bruta, foi esquecida, e a escravidão passou a ser considerada nosso estado natural. Ao nos lembrarmos disso, reconhecemos que, do ponto de vista social, chegamos a um estado de aniquilação no momento que Deus nos trouxe à liberdade e à independência.
Portanto, mais do que qualquer outra nação, devemos a Deus tudo o que temos – cabeça, coração e mão. Tudo que o Egito nos impediu é restaurado a nós pelo próprio Eterno – nossa essência pessoal, o direito de adquirir propriedades e as próprias propriedades. Por essa razão, apenas Ele governa as nossas vidas e a nossa propriedade, e nós pertencemos somente a Ele. Dedicamos nossas vidas, habilidades e posses ao Seu serviço, e nós reconhecemos apenas a Ele como Guia para todos os nossos atos.
Nossa subjugação total a Deus foi o que rompeu de sobre nós as amarras da servidão humana. Somente sob essa condição fomos liberados e nos foi concedida a independência. Embora todos os seres humanos em todas as outras nações devam a Deus sua criação e existência, nós devemos a Ele também nossa existência histórica e social. Saímos da escravidão do Faraó e entramos no serviço de Deus. E assim nós cantamos na canção do Halel: “sou Teu servo, filho de Tua serva; quebraste as cadeias que me prendiam” (Salmo 116:16) – ou seja, sou Teu servo desde o ventre e de nascença pelo fato de teres quebrado os cabos da minha escravidão.
Não terás.* Essa é a primeira conclusão tirada da declaração fundamental “anochí”, e é a mesma coisa, mas dita pelo lado da negação. Como será explicado logo mais adiante, o reconhecimento de Deus nega a adoração idólatra de qualquer outro ser. Se o Eterno é de fato Deus, então todo o resto é “não-deus” e nada além do que Sua criação e servo, pois tudo, exceto Ele, depende – em cada fibra de seu ser, em cada grama de seu poder e em todas as suas grandes e pequenas ações – de Sua vontade onipotente, única, específica e livre.
* Pelo Códex de Alepo – manuscrito da Bíblia Hebraica relacionado aos grandes mestres massoréticos e ao Maimônides –, o versículo 3 inicia-se com “Não farás para ti”. (N. do E.)
diante de Mim (al panai). “Diante da Minha Presença”. A Presença de Deus abrange o mundo e tudo que há nele – as vastas extensões do mundo e seu desenvolvimento contínuo a todo o momento – assim como a Sua Presença preenche nossa vida interior e todas as nossas emoções. Não há deus senão Ele, e não devemos dar espaço em nossos corações nem mesmo à menor possibilidade de existência de outras divindades.
Desta forma, é negado o sistema de “compartilhamento” cujos proponentes acreditam ser possível colocar outro deus do lado do Eterno, um deus que compartilha de Sua Divindade sem que haja nisso heresia na existência de Deus. Eles se esquecem de que ao colocar outro deus ao lado do Eterno, eles abolem completamente o conceito da Divindade.
A linguagem al penê (diante de) indica que certa coisa ou evento está em discórdia com alguém. Aqui também, a expressão al panai (diante de Mim) indica que a abertura de um espaço no coração para a ideia da existência de outro deus é uma profanação do verdadeiro conceito da Divindade.
- Não farás para ti imagem de escultura. O erro é ainda mais grave quando é dada uma expressão real à ideia da existência de outro deus por meio de qualquer imagem ou figura.
imagem de escultura. De acordo com o seu significado básico, o termo péssel (que é próximo de patsel, “remover a casca”) refere-se a uma pedra esculpida ou a uma figura entalhada em madeira. Ainda assim, certos versículos – como “À imagem esculpida que o artífice funde” (Isaías 40:19) – nos ensinam que o conceito de péssel inclui qualquer tipo de imagem tridimensional, não importando como foi criada.
figura (temuná). Derivado da raiz mon, da qual se obtém min (espécie, gênero) – denota qualquer figura que represente uma espécie particular. De acordo com isso, temuná também se refere a um desenho feito com linhas simples ou mesmo uma simples figura simbólica.
E não está escrito temunat asher (figura do que está…), mas temuná asher (figura alguma – do que há), de modo que a interpretação disso não é “imagem de escultura ou figura do que há em cima nos céus…”, mas sim, “Não farás para ti o que há em cima, nos céus – nem em forma de imagem de escultura ou qualquer outro tipo de figura”.
Essa distinção é importante por causa da advertência de “Não te prostrarás diante deles nem os servirás” no próximo versículo. Se a proibição de “não farás” se referisse apenas às “imagens esculpidas” e “figuras”, então a proibição de se prostrar estaria limitada apenas às “imagens esculpidas” e “figuras”. Mas uma vez que a proibição do versículo anterior também se refere àquilo “que está nos céus”, assim como às “imagens esculpidas” e “figuras”, portanto, a palavra “eles” na proibição de “Não te prostrarás diante deles” se refere tanto às próprias coisas quanto às suas estátuas e figuras, e fica proibido adorar as duas coisas.
em cima (mimáal). Máal é qualquer lugar que está acima de nós, acessível apenas por meio de ascensão. Mimáal indica a direção ascendente que começa na área acima de nós, ou seja, tudo que está acima de nós, seja perto de nós ou infinitamente distante. Mitáchat (abaixo) indica a direção oposta: aquilo que está sob os nossos pés ou mais abaixo.
- Não te prostrarás diante deles nem os servirás. O pecado é ainda mais grave se determinada coisa ou sua estátua ou sua figura é adorada como deus. Tal reconhecimento concreto de outros deuses é chamado aqui “prostrar” e “servir”, e a lei judaica distingue entre eles como dois tipos de idolatria (ver TB San’hedrin 60b).
Aquele que “se prostra” se esparrama pelo chão. E embora este ato não esteja entre os “serviços internos” – ou seja, não faz parte daqueles serviços que nos foram impostos como meio de demonstrarmos a nossa lealdade ao Deus único no Templo – ainda assim, foi proibido prostrar-se diante de qualquer outro deus ou sua estátua ou imagem, mesmo se for “de modo não costumeiro”, ou seja, mesmo que isso não faça parte dos serviços específicos daquele deus em particular. Quanto ao resto dos serviços, exceto a prostração, a lei judaica distingue entre um “serviço interno” – ou seja, aqueles serviços que nos foram impostos como meio de demonstrarmos a nossa lealdade ao Deus único no Templo, conforme mencionado acima, como por exemplo, abater e queimar animais e realizar a libação, que também estão completamente proibidos de serem realizados para qualquer outro deus, e todos os outros atos de adoração, que eram proibidos somente quando eram feitos “de modo costumeiro”, isto é, como parte do serviço normal daquele deus.
Paremos para refletir agora sobre o significado do ato simbólico de “prostração” diante de outro deus, bem como sobre o significado do termo “serviço” e dos atos que servem como sua expressão. “Prostração” – isto é, esticar-se totalmente sobre a terra – é uma expressão de total devoção, porém passiva, enquanto “serviço” é uma expressão de devoção ativa e prática. Por meio da “prostração” o homem expressa seu reconhecimento ao outro e sua submissão a ele como único mestre de seu destino, e através do “serviço” o homem se entrega completamente ao serviço do outro, reconhece-o e se rende diante dele como mestre de suas ações. Ambos juntos – o reconhecimento do Senhor do nosso destino e o reconhecimento do Senhor das nossas ações – são toda a essência do nosso reconhecimento de Deus.
É típico do nosso serviço a Deus que, no Templo do Deus único, o que é requerido acima de tudo é o “serviço” e não a “prostração”. Seu Templo é o santuário da Sua Torá; o cômodo do Templo denominado “Santidade das Santidades” também era chamado de devir, “o lugar do dibur – da fala”, e a arca da Torá era aquela sobre a qual os querubins estendiam suas asas para serem os portadores de Sua Presença. Não é nossa submissão a Deus como o Senhor único do nosso destino que nos faz judeus, mas sim, nossa submissão a Ele como nosso único Legislador – sendo que esta submissão também inclui a primeira indiretamente.
Eis que a principal coisa que seduz o homem a se desviar do caminho, negar a existência de Deus e tornar-se idólatra é o conceito equívoco de que há outra coisa, além do Deus único, que pode influenciar de forma independente o nosso destino. Portanto, prostrar-se diante de outro deus, ou mesmo de outra coisa que não seja Deus, é equivalente à negação do Deus único. E nem é preciso dizer que se uma pessoa se dedica a qualquer outra coisa com toda a sua força e vitalidade como nós nos dedicamos ao serviço do Deus único por meio do abate, queima e libação, ela volta suas costas para Deus. Isso vale para qualquer tipo de reconciliação com outras forças, como fazem os idólatras ao imaginar que essa é a vontade de seu falso deus.
A idolatria corrompe as virtudes morais do homem em sua vida ativa e material. A razão para isso é explicada pelo fato de que a idolatria apresenta as forças da natureza, algo aprisionado pelas leis naturais, como conceitos divinos. Na idolatria, o homem se submete à escravidão dos seus impulsos e desejos naturais, de modo que crimes e atos bestiais são elevados ao reino do serviço divino como atos praticados em honra aos deuses. O lado baixo do homem, que o impele à luxúria dos sentidos, é considerado algo inspirado pelos deuses. Como os nossos sábios ensinam, “Israel sabia que a adoração de ídolos não era algo verdadeiro, mas praticava idolatria a fim de se permitir manter relações promíscuas em público” (TB San’hedrin 63b). Portanto, “não te prostrarás diante deles nem os servirás” significa não permitir que qualquer outro deus tenha qualquer influência sobre o teu destino ou tuas ações, pois –
pois (…) Deus zeloso (El caná). Canê (com álef, que é próximo de canê com hê – adquirir algo e transferi-lo para a sua propriedade) significa reivindicar algo como um direito, exigir a restauração de direitos infringidos, sejam seus ou de outros.
Não está escrito El mecanê (Deus que zela), que seria interpretado como “Estou agora reivindicando Meu direito sobre você e não permitirei que você ou qualquer parte do seu ser escape de Mim”, mas sim, El caná (Deus zeloso), ou seja: “O zelo é uma das Minhas características essenciais intrínsecas; Eu não seria o que sou se não fosse zeloso. Essa qualidade é um traço característico típico que Me distingue de todos os chamados ‘deuses’ pela boca das criaturas. Não é possível pensar em Mim sem reconhecer que sou zeloso.”
Anochí – Eu, o Ser pessoal que engloba você e o mundo inteiro – “sou o Eterno”, de cuja vontade exclusiva depende cada instante da existência do mundo; “teu Deus”, que te tirei com o propósito de direcionar o teu destino e determinar o formato de toda a tua vida prática; Eu sou “Deus zeloso” e não há mais nada além de Mim; tu é Meu completamente e Eu te exijo totalmente, todo o teu ser e todo o teu futuro.
que cobro (poked) a iniquidade (avon) dos pais. Quem pode compreender a profundidade da justiça e do amor, dos caminhos da supervisão Divina e da educação do ser humano que são revelados aos nossos olhos humanos nestas palavras? Quem terá a ousadia de definir, mesmo no nível conceitual, o significado dessas simples palavras?
Poked (que é próximo de bégued e báit) significa vestir algo com a vestimenta que lhe é apropriada. No sentido conceitual, significa revestir com as características apropriadas. Em termos práticos, significa “vestir” uma pessoa com as posições, situações e condições apropriadas a ela. Quando se trata da Divina Providência, como no nosso versículo, significa decretar sobre algo o que lhe é digno ou merecido.
Avon é derivado de avê – ser torto ou seguir numa direção adunca, e por extensão, afastar-se conscientemente do curso prescrito. Avon é a expressão mais apropriada da aspiração consciente que busca um objetivo que não está de acordo com o nosso propósito na vida; é uma expressão de grande significado para um pecado que foi deliberadamente cometido.
Avê é próximo de ivá e avá, que também possuem em seu fundamento essa mesma ideia de desvio espiritual do caminho e direção iniciais. Ivá indica um desvio na direção de algo que não estava entre seus objetivos iniciais ou que não estava inicialmente ao alcance. Avá indica a renúncia do desejo próprio por respeito ao outro, ou corresponder à vontade do outro renunciando à sua própria.
É claro que essa medida Divina – “que cobro a iniquidade dos pais…” – vigora apenas com aqueles que “Me odeiam”. Em outras palavras, ela expressamente só se aplica quando pais e filhos, geração após geração, são todas pessoas que “Me odeiam” – odeiam o destino que Deus planejou para eles e O rejeitam. Ele parece um espinho em seus olhos (sanê – odiar – é próximo de senê – sarça) e um infortúnio que ameaça a sua felicidade e dificulta seus esforços para alcançar a felicidade.
Agora, o que se entende por “que cobro a iniquidade dos pais nos filhos (…) aos que Me odeiam”? Será que a intenção é dizer que Deus Se lembra dos pecados dos pais quando os filhos, netos ou mesmo bisnetos O odeiam? Será que significa que quando os filhos, netos ou bisnetos continuam pelo caminho do pecado, Deus Se lembra do primeiro passo dado pelos pais, leva em conta que o pecado ainda não foi enraizado por muitas gerações e que ainda há chance de arrependimento, e tenta trazer os filhos, netos ou até mesmo bisnetos de volta para Si, educando-os na “escola” dos sofrimentos? Será que significa que se a quarta geração não se arrepende, as gerações futuras estarão fadadas a se perder no pecado?
Ou talvez signifique que Deus traz os pecados dos pais sobre os filhos, e assim por diante, se eles O odiarem. Os filhos, netos e bisnetos continuam sofrendo as consequências do pecado dos pais, pois continuam no caminho do pecado. Por causa do seu pecado, eles são acometidos por dificuldades e sofrimento, uma vez que o exemplo dos seus pais os colocou num caminho cheio de obstáculos, que convida o pecado e a tristeza ao seu berço, de modo que os acompanharão por toda a vida.
Talvez a interpretação seja que Deus pune os pais pela dor que causam aos filhos por causa dos pecados que lhes deram por herança para conduzi-los na vida.
E talvez a interpretação seja que Deus transfere os pecados dos pais aos filhos, netos e bisnetos; Ele os torna responsáveis por expiar o pecado de seus pais. De acordo com isso, o significado de poked aqui será como no versículo “e designareis (pacadtá) para eles a guarda de todos os seus cargos” (Números 4:27). Em vez de se apressar em destruir os pais por causa do seu pecado, Deus espera até a quarta geração, pois talvez os netos ou bisnetos se arrependam e corrijam os atos de seus pais. Só então, se não houver melhora, Ele permite que a geração seja destruída por sua culpa contínua.
Qualquer que seja a verdadeira natureza dessa medida Divina, duas verdades fundamentais emergem dela, sobre as quais devemos refletir com grande seriedade:
O Deus único deseja que aceitemos sobre nós o fardo de Seu governo sobre todos os nossos atos e que O reconheçamos como o Legislador de toda a nossa vida, e que é Ele que nos dá vida e nos sustenta para que possamos cumprir a Sua Torá. Está em nossas mãos construir ou destruir nossas vidas, tudo de acordo com a intensidade de nossa adesão ou rejeição de Seus ensinamentos. Deus vive e existe eternamente, e Ele julga cada um de acordo com seus atos. Não há como fugir de Seu julgamento.
Mais do que isso, o bem-estar ou a tristeza dos filhos depende dos pais – tudo de acordo com a sua retidão ou perversidade. Os filhos são frutos que crescem na árvore da vida e do destino dos pais. Em prol dos nossos filhos devemos preservar a nossa saúde; em prol dos nossos filhos devemos nos comportar com moralidade e generosidade; em prol dos nossos filhos devemos ser vigilantes e espiritualmente fortes.
Assim como Deus certamente dá a cada criança uma alma pura quando ela vem ao mundo, da mesma forma os pais certamente transmitem à natureza física dos seus filhos suas más inclinações, seus defeitos e suas falhas. Todos esses legados colocam diante da criança um desafio tremendo e, para superá-lo, a alma pura da criança precisa desafiar e provar seu poder Divino. Os pecados dos pais envolvem o berço de seu bebê com infortúnio, doença e um exemplo de corrupção moral, e o pequeno novo cidadão do mundo destina-se a subir um íngreme e difícil trajeto de testes, até que ele vença a prova moral.
- e faço misericórdia até duas mil gerações aos que Me amam e aos que guardam Meus mandamentos. Graças a Deus – e que Seu nome seja abençoado! –, pois Ele faz brotar bênçãos multiplicadas mil vezes até duas mil gerações aos descendentes dos pais que se mantiveram fiéis a Ele com a devoção amorosa e lealdade ao dever!
A bondade dos pais, sua pureza e suas capacidades morais e espirituais criam uma terra fértil e sólida, que se expande e se estabiliza mais a cada nova geração fiel que chega. Dessa terra nascerão e florescerão gerações e gerações de crianças que andarão alegremente no bom caminho e de boa vontade, dotados de virtudes morais. E mesmo que se desviem do caminho do bem e do certo, será mais fácil para eles encontrar o caminho para retornar, e o amor de Deus e Sua bondade nunca os abandonarão.
Ambos – “que cobro a iniquidade” e “faço misericórdia” – são atributos do Deus único. Ele sozinho contabiliza as nossas ações, e Ele sozinho controla o nosso destino.
Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção YITRÓ extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.