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Parashá Semanal - Leitura da Torá

A consciência da individualidade

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção TSAV extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer

 

Levítico, Capítulo 6

1 E o Eterno falou a Moisés, dizendo: 2 “Ordena a Aarão e a seus filhos, dizendo: Esta é a lei da oferta de elevação: Ela, a oferta de elevação, ficará queimando sobre o altar toda a noite, até a manhã, e o fogo do altar será aceso nela.

  1. Nos capítulos 1-5 foram descritas as diferentes categorias de ofertas: (1) ofertas voluntárias – de elevação, oblação e de pazes; e (2) ofertas obrigatórias para expiação de pecado – de expiação e de culpa. O texto esclarece várias regras relativas a elas, que devem ser de conhecimento dos ofertantes para que possam se aproximar do Eterno por meio delas.

As leis constantes nos dois capítulos a seguir complementam as que foram descritas nos anteriores, porém se referem às regras a serem seguidas pelos sacerdotes ordenados a realizá-las e, especialmente, Aarão e seus filhos. Por este motivo, a ordem pela qual são apresentadas é diferente, não estando ordenadas de acordo com a razão do oferecimento – voluntárias ou obrigatórias –, mas sim, de acordo com o grau de santidade delas – santidade de santidades ou santidades leves. Por este motivo, primeiro são apresentadas as regras das ofertas de elevação, oblação, de expiação, de culpa e, por fim, a de pazes.

  1. Esta é a lei da oferta de elevação. A complementação das leis das ofertas – direcionada especialmente aos sacerdotes – tem início com regras relacionadas à noite, que é o período no qual o Templo é “entregue” nas mãos dos sacerdotes e fechado ao restante da nação.

A descrição das regras das ofertas é finalizada, no final do próximo capítulo, com as seguintes palavras: “Esta é a lei para a oferta de elevação, para a oblação, para a oferta de expiação e para a oferta de culpa, e para as consagrações e para o sacrifício de oferta de pazes que ordenou o Eterno a Moisés, no monte Sinai, no dia em que ordenou aos filhos de Israel que oferecessem os seus sacrifícios diante do Eterno, no deserto de Sinai” (7:37-38). O texto destaca o local no qual o povo de Israel realizou suas primeiras ofertas e também enfatiza o momento em que o povo recebeu sobre si o mandamento dos sacrifícios. Trata-se “do ‘dia’ em que ordenou”, ou seja, receberam o mandamento de dia, e não de noite.

De forma semelhante, percebemos que a Escritura diferencia a profecia de Moisés, que recebeu a Torá, da transmitida aos demais profetas do povo de Israel, da seguinte maneira: “Boca a boca falarei com ele, e com palavras claras, e não com enigmas” (Números 12:8), pois o Eterno não conversou com Moisés “num sonho” (Números 12:6). A palavra do Eterno transmitida a Moisés alcançou os ouvidos e a mente aguçada de uma pessoa “desperta” (como se fosse “durante o dia”). Da mesma forma, Moisés transmitiu a palavra do Eterno às mentes de pessoas “despertas”. O que a Escritura enfatiza aqui é que a pessoa deve trazer sua oferta com a mente desperta e a consciência plena, e que ela deve ponderar com clareza de pensamento e livre-arbítrio ao decidir se santificar para o cumprimento da Torá.

Por isso está escrito (7:38) “que ordenou o Eterno a Moisés, no monte Sinai, no dia em que ordenou” para nos ensinar que “as ofertas somente são válidas quando oferecidas de dia” (Torat Cohanim; TB Meguilá 20b-21a), porque a noite é o momento em que as coisas são “confusas”, pois o homem se submete às forças da natureza física. Por este motivo, a noite aproxima a pessoa que pratica idolatria às suas divindades; de noite, ela “teme seu poder”, pois sente-se presa às influências de suas forças, submissa como todas as criaturas. Durante o dia, porém, a pessoa caminha com “a cabeça levantada”, ereta – uma vez que a palavra iom (dia) é próxima de cum (erguido). Durante o dia, ela passa a estar consciente de sua individualidade e luta para ter controle sobre o que ocorre no mundo, e por isso, na mentalidade dos idólatras, o dia é um momento de luta do homem contra as divindades.

A visão de mundo judaica é diametralmente oposta à percepção da idolatria. Não é na submissão imposta pela noite que o judeu percebe a força do Eterno. Muito pelo contrário: com clareza de pensamento, sem qualquer confusão, através de suas ações criativas que conquistam mundos, com a coluna ereta própria dos assuntos diurnos – é assim que a pessoa se aproxima de Deus.

A luz aguçada da mente, a força de vontade livre e a criatividade das ações – toda a essência da personalidade do homem livre que caminha ereto durante o dia – foram presentes da bondade do Criador. Foi o Eterno único que outorgou ao homem uma porção da corrente infinita de Sua sabedoria, uma porção de Sua livre e sagrada vontade e uma porção de Sua força criativa que domina o mundo. Por isso, o homem foi elevado pelo Eterno e está acima das amarras do mundo físico; ele é capaz de caminhar ereto, investido da função de senhor do mundo, para servir ao Eterno. Ao fazer seu trabalho e realizar suas funções durante o dia, o homem, na prática, está cumprindo a vontade do Eterno.

Na visão de mundo dos idólatras, o “dia” é o momento de luta entre os mortais e os deuses. Para o judeu, o “dia” é o “serviço do Eterno” e, em seus afazeres diários ele realiza a vontade de Deus. Por este motivo, no Templo, não é o dia “que segue” a noite, mas a noite que deve “seguir” o dia, pois a noite, que representa a escuridão da morte, não tem força para “levar consigo” o dia; porém o dia, que representa a vida próxima ao Eterno, tem o poder de elevar consigo a noite.*

* De forma geral, tanto na lei judaica como no calendário, a regra determina que “o dia segue a noite”. Isto significa, por exemplo, que a quinta-feira tem início na noite anterior, ou seja, na noite da quarta-feira. Portanto, para a lei judaica, se um bebê nasce na quarta-feira à noite, consideramos que nasceu na quinta-feira. Porém, em relação ao Templo e às santidades, a regra é inversa “a noite segue o dia”. Isto significa que a regra que determina que uma vaca ou ovelha não pode ser degolada no mesmo dia de seu filhote se aplica à noite posterior, e não à anterior (TB Chulin 83a). (N. do T.)

A natureza física não é um meio intermediário entre o judeu e seu Deus, pois o judeu deve estar acima da natureza física, diretamente diante do Eterno.

Foi no deserto – lugar onde o ser humano praticamente não tem posses – que o Eterno se aproximou de Israel e firmou com ele a aliança da Torá. Foi no deserto – um lugar onde o ser humano não tem nada a oferecer, a não ser a si mesmo – que o Eterno ordenou a Israel que oferecesse sacrifícios diante Dele. É de um indivíduo livre de amarras – que submete seus pensamentos, vontades e ações ao Eterno – que a Torá requer ofertas.

“No dia em que ordenou” – ou seja, “a ação de ofertar deve ser feita no mesmo momento que o mandamento foi dado” – é a síntese da regra que estabelece que as ofertas devem ser realizadas durante as horas do dia. Esta ideia também se revela em outras regras referentes às ofertas e está ligada à noção de que o Templo deve ser totalmente oposto à impureza (que também é representada pela noite).

Existe uma exceção a esta regra: “Ela, a oferta de elevação, ficará queimando sobre o altar toda a noite”. Conforme vimos, a imposição das mãos sobre a oferta, a degola, a movimentação da oferta, a entrega, a extração do punhado, a queima do punhado (a extração do punhado substituindo a degola e a queima substituindo a aspersão – ver acima comentário sobre 2:2), o destroncamento, o recebimento do sangue, o lançamento e aspersão – todos esses procedimentos são válidos apenas quando realizados durante o dia. Todas essas ações têm algo em comum: elas renovam a conexão do ofertante, em algum aspecto de sua personalidade, com o Eterno e sua Torá. Todas essas ações configuram alguma forma de “se oferecer”, no sentido mais amplo da expressão e, por isso, somente são válidas se realizadas durante o dia.

E o nosso versículo declara: “Ela, a oferta de elevação, ficará queimando sobre o altar toda a noite”. Aprendemos daqui que as partes internas da oferta de elevação e os sebos (o sebo e os rins) das ofertas de expiação, de culpa e de pazes – todos estes inclusos no conceito expresso por “ficará (…) sobre o altar” – podem ser queimados sobre o altar durante “toda a noite, até a manhã”. Isto significa que, se a oferta “apagou”, ou seja, se as partes que estavam sendo queimadas foram expelidas para fora do fogo do altar por força do calor mesmo durante à noite, devem ser devolvidas ao altar (e isso se aplica durante toda a noite). A regra é assim porque a expiação já foi alcançada pela realização do sacrifício (oferecido durante o dia) e todo o serviço que restou se presta apenas a gerar os resultados e reflexões adequados a partir da oferta. Assim sendo, esses procedimentos – queimar os sebos e as partes internas e devolver os pedaços ao fogo do altar – são válidos também à noite.

Aprendemos daqui que, em realidade, mesmo o “aspecto noturno da vida” do ser humano não deve estar afastado do Eterno, pois não é apenas “através do dia” que nos conectamos a Ele –  conforme está escrito: “Teu é o dia e também a noite” (Salmo 74:16) –, mas ambos pertencem ao Eterno, tanto o dia quanto a noite. Da mesma forma que Ele “forma a luz” (dia), Ele também “cria a escuridão” (baseado em Isaías 45:7).

A Torá nega apenas a ideia contrária, de que apenas através da noite é possível buscar o Eterno. O dia (iom), que é quando a pessoa levanta (cam) para criar, trabalhar, pensar e fazer valer sua livre vontade de forma independente, é o momento mais adequado e elevado para servir ao Eterno. É através do “aspecto do dia” que a pessoa deve buscar o Eterno uma e outra vez, pois o dia é um pré-requisito fundamental para se aproximar do Eterno.

Quando uma pessoa alcança a independência, “caminhando ereta”, já se encontra novamente com o Eterno. Através da degola, do recebimento do sangue e da aspersão, ela entrega ao Templo a sua personalidade e a sua fortuna. A partir daí, a santidade com o “aspecto do dia” outorgada à pessoa por meio de sua aliança com o Eterno, passa a incluir também o “aspecto da noite”. Por isso, no Templo, “a noite segue o dia”. Desta forma, o sol não se põe jamais para o homem mundano que está em constante conexão com o Eterno, mesmo durante a profunda noite, pois a alma já travou suas batalhas durante o “dia” (já realizou todos os procedimentos necessários na oferta) e alcançou elevação e proximidade para com o Eterno. A partir desse momento, a pessoa é sustentada pela “queima das partes internas e dos sebos” – representando seus objetivos e aspirações materiais e suas ações (ver acima comentários sobre 1:8 e 3:9) – que são o combustível do fogo do Eterno também durante à noite, trazendo agrado ao Criador.

Isto se aplica também à queima de especiarias e incenso que permanecem sobre o fogo durante a noite, apesar de não representarem a proximidade com o Eterno já alcançada, pois simbolizam a própria aproximação a Ele. Esse é o caso do punhado extraído das especiarias, do incenso, da oblação dos sacerdotes, da oblação do sacerdote ungido e das oblações vertidas (TB Menachót 26b). Todos estes devem ser oferecidos durante o dia, porém, “se após serem ofertados e queimados, se puser o sol, podem seguir sendo ‘digeridos’ pelo altar durante toda a noite” (ibid.). Tudo isso é indicado pela abertura geral do nosso capítulo: “Esta é a lei da oferta de elevação (…) ficará queimando sobre o altar toda a noite”, de onde aprendemos que tudo aquilo que é elevado sobre o altar pode continuar sendo queimado durante toda a noite.

A inclusão da noite no “campo de influência do dia” é característica de todos os procedimentos realizados no Templo. Isso explica a lei que vigora para tudo aquilo que foi oferecido durante o dia e permanece queimando durante a noite: se ficou fora do altar no momento em que “um novo dia do Templo teve início” tornou-se inválido para o fogo do altar, ou seja, “aquilo que ‘dormiu’ fora do altar se torna inválido para o altar”.

Talvez seja este o significado da letra mem diminuta na palavra mocdá (“ficará queimando”). Ela serviria para lembrar a pequena função desempenhada pelo “local” (macom) onde deve estar a oferta – o fogo sobre o altar – durante toda a noite, uma vez que a noite, no que concerne às santidades, é dependente do dia anterior. Tudo que acontece sobre esse lugar durante a noite serve apenas para complementar aquilo que já foi realizado durante o dia, em sua base e ao seu redor.

Há ainda outra lei ensinada a partir do versículo “Ela, a oferta de elevação, ficará queimando sobre o altar toda a noite”. Trata-se da regra que determina que, uma vez que uma oferta foi colocada sobre o altar, não deve ser removida de lá. A palavra “ela” refere-se à oferta de elevação comum, descrita nos capítulos anteriores. Porém, a abertura deste versículo “Esta é a lei da oferta de elevação” amplia o escopo desta regra, aludindo a tudo que pode ser enquadrado na categoria de “oferta de elevação”. Por isso, a regra determina: “O altar santifica tudo aquilo que é apropriado para isso”, ou seja, “tudo que é adequado para queimar como oferta de elevação, se subiu ao altar não deve ser removido”. Isto significa que tudo aquilo que alguma vez já foi adequado para ser levado ao fogo do altar – mesmo que tenha se tornado inválido depois – se foi colocado sobre o altar não deve mais ser removido. Há apenas uma condição em relação a esta lei: a causa da “invalidez da oferta” deve estar “relacionada com as santidades”, ou seja, o motivo pelo qual a oferta se tornou inválida deve estar ligado a alguma regra das santidades que não foi cumprida; porém, se a invalidez for decorrente de outra razão – como no caso de um animal que tenha mantido relações sexuais com seres humanos, ativa ou passivamente, ou que fora usado para idolatria –, mesmo após subir ao altar deve ser removido (TB Zevachim 83a e 84a).

Conforme dito anteriormente, a função do Templo é santificar todos os aspectos da existência humana (ver comentário sobre Êxodo 29:37). Ao pôr do sol, todo o serviço do altar é encerrado e não são aceitas novas ofertas, porém o fogo permanece aceso para consumir o que está sobre o altar durante “toda a noite”, para complementar o serviço das ofertas do dia. Estas ofertas manterão o fogo do Eterno “até a manhã” e, então, o “fogo do altar será aceso nela” – deve-se reacender o fogo do altar para o serviço do novo dia.

Já descrevemos os mandamentos que ordenam o acendimento e a manutenção do fogo sobre o altar e esclarecemos os detalhes de suas leis e seus significados (ver acima comentário sobre 1:7). Havia três arranjos: (1) o arranjo grande – chamado aqui de moc-dá –, que é o fogo principal do altar e sobre o qual eram queimados todos os sacrifícios dos quais era exigido a queima pelo esh dat – o fogo da Torá –, que traz “um aroma agradável para o Eterno”; (2) o fogo do altar – o “segundo arranjo” – destinado ao incenso e disposto no canto sudoeste, do qual retiravam brasas incandescentes para queimar o incenso sobre o altar interno; e (3) o arranjo da manutenção do fogo, cuja função era expressar a ideia de que o fogo do altar deve estar constantemente aceso e que jamais devia se permitir que se apagasse: “E o fogo que está sobre o altar se conservará aceso, não se apagará” (adiante, versículo 5; TB Iomá 45a).

 

Torá Interpretada - Editora Sêfer

 

Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Tsav extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.

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