Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Haazinu extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer
Deuteronômio, Capítulo 31
9 E Moisés escreveu esta Torá e deu-a aos sacerdotes, filhos de Levi, que levavam a Arca da Aliança do Eterno, e a todos os anciãos de Israel. 10 E Moisés ordenou-lhes, dizendo: Ao fim de cada sete anos, no tempo fixado, no primeiro ano do ano da remissão, na festa de Sucót [cabanas], 11 quando todo o Israel vier a comparecer diante do Eterno, teu Deus, no lugar que escolher, lerás esta Torá diante de todo o Israel, aos seus ouvidos. 12 Congrega o povo – os homens e as mulheres, as crianças e os peregrinos que estão nas vossas cidades – para que ouçam e para que aprendam, e temam ao Eterno, vosso Deus, e cuidem de cumprir todas as palavras desta Torá. 13 E que seus filhos que não tiveram conhecimento ouçam e aprendam a temer ao Eterno, vosso Deus, todos os dias que viverdes sobre a terra à qual ides passando o Jordão para herdá-la.
- E Moisés escreveu. Já foi mencionado no Êxodo (24:7 e 34:27) que Moisés escreveu partes da Torá de Deus. Mas agora que ele também escreveu tudo que aconteceu desde então e, presumindo que a escrita da Torá havia terminado, ele a entregou aos sacerdotes e acrescentou o mandamento associado a ela: ler a Torá a cada sete anos diante da nação que se reunir para celebrar a festa de Sucót. O mandamento de escrever o cântico, acrescentá-lo à Torá Escrita e, assim, concluir a Torá, foi dado a ele apenas mais tarde (versículo 14 em diante).
sacerdotes, filhos de Levi, que levavam. A Arca da Aliança era geralmente carregada pelos levitas da família de Kehat (ver Números 3:31), e, portanto, eles são chamados no versículo 25 de “os levitas, portadores da Arca da Aliança…”.
No entanto, em ocasiões especiais de importância excepcional, a arca era carregada pelos sacerdotes. Assim foi durante a travessia do Jordão (Josué 3:3 em diante), durante as voltas ao redor de Jericó (ibid. 6:6) e na introdução da arca à “Santidade das Santidades” do Templo construído por Salomão (1 Reis 8:3; ver TB Sotá 33b). Também aqui, quando a Torá foi dada pela primeira vez aos sacerdotes e anciãos de Israel, os sacerdotes foram ordenados a aparecer com a Arca da Aliança do Eterno, pois essa também era uma ocasião muito importante e de significado especial.
Outra razão pela qual os sacerdotes carregaram a Arca da Aliança aqui é porque isso está relacionado a um mandamento que seria cumprido numa época na qual já teria sido escolhido um lugar para a Arca da Aliança, e com ele para a Torá escrita por Moisés (versículo 26), onde a arca já estaria confiada à vigília dos sacerdotes e não estaria mais aos cuidados dos levitas. E de acordo com isso é possível entender uma sutil mudança de linguagem, pois aqui é dito “aos sacerdotes, filhos de Levi, que levavam…”, uma vez que eles só carregaram a arca naquele momento. Já no versículo 25, os levitas são chamados de “portadores da Arca da Aliança”, pois eram eles os portadores habituais da arca.
Esse evento não está entre os eventos mencionados no TB Sotá 33b, nos quais os sacerdotes carregaram a arca, e provavelmente a razão para isso é que a aparição dos sacerdotes com a arca ocorreu apenas naquele momento e não envolveu o seu transporte de um lugar para outro, algo que de fato é trabalho dos levitas.
- E Moisés ordenou-lhes. “Ao fim de cada sete anos” é explicado por “no primeiro ano após o ano da remissão (shemitá)”, e “no tempo fixado” por “na festa de Sucót”. “Ao fim de cada sete anos” – não daqui a sete anos, mas ao final de cada ciclo do ano da remissão. “No tempo fixado” – não na data do ano novo, que abre o oitavo ano, que é o primeiro ano do novo ciclo do ano da remissão, mas na festa de Sucót. E a hora exata é “quando todo o Israel vier…” – isto é, “desde o começo do tempo fixado” (TB Sotá 41b), quando o povo chega ao Templo, ou seja, no início da festa. Verifica-se que a hora certa, baseada em todos esses detalhes, é “O término do primeiro dia festivo de Sucót, no oitavo ano, após o término do ano da remissão” (ibid. 41a). E o significado das referências de tempo destacadas aqui, um por um, é ao final de cada ciclo de sete anos, num tempo predefinido.
Este mandamento de ler a Torá não pretende ser um meio de levar o povo ao conhecimento da Torá, pois o comando de estudar a Torá é imposto a todas as pessoas todos os dias, como parte de suas vidas cotidianas, como foi dito: “e delas falarás sentado em tua casa…” (acima 6:7) e “E ensiná-las-eis a vossos filhos falando delas…” (acima 11:19). Mas trata-se de um mandamento que transcende a vida cotidiana, que retorna a cada sete anos e que busca alcançar um propósito especial.
Ele ocorre “no tempo fixado” (moêd), na data que convida toda alma de Israel a se encontrar com o Eterno; “no primeiro ano após o ano da remissão”, a cada vez que o ciclo agrícola e comercial recomeça, após o ano da remissão; “na festa de Sucót”, a festa que une toda a nação por meio da lembrança do período de sua estadia no deserto, quando nem o trabalho na terra nem o comércio, mas apenas a milagrosa bondade do Eterno alimentou e sustentou a todos, junto com suas esposas e filhos, os protegeu com Sua nuvem e os guiou pelo deserto – a festa cujos mandamentos agora preparam o povo para a vida agrícola e comercial.
- quando todo o Israel vier. No momento em que todo o povo de Deus atende ao chamado de Deus e vem ao local em que o Templo foi construído – não por Deus, que pode ser encontrado em toda parte por aqueles que buscam por Ele, mas pela promessa da manifestação de Deus no meio do povo, pelo testemunho de Sua Torá. Depois que todos já tiverem vindo com suas ofertas de elevação da festa e se apresentado diante do Eterno no local do Templo de Sua Torá.
lerás. Imediatamente após esse primeiro dia de “apresentação perante o Eterno”, a nação, por meio de seu representante supremo, lerá essa Torá diante de todo o povo reunido. Assim, ela continuará a declarar constantemente, com o início de cada novo ciclo agrícola e comercial, que o caminho para o Eterno pode ser encontrado apenas no caminho para a Torá, que a aliança com o Eterno é a aliança com a Sua Torá, que a Torá é a condição para a unidade da nação e a proteção de Deus, e que essa nação – encarregada da vigília do testemunho da Torá – é a garantia da veracidade e origem Divina da Torá.
esta Torá. Aparentemente, refere-se ao mesmo livro da Torá escrito por Moisés e entregue aos sacerdotes e anciãos (ver TB Babá Batrá 14b, Rashi, “sêfer azará”). Esse livro da Torá foi chamado mais tarde de “livro do átrio”, já que “era lido nele, no átrio, a porção do rei, durante a reunião do povo, e o sumo sacerdote lia dele no Iom Kipúr” (Rashi).
De acordo com o contexto lá (no TB Babá Batrá), esse “livro do átrio” é o livro colocado na arca ao lado das tábuas da lei (ver versículo 26). Devemos presumir, portanto, que, embora seja proibido entrar na Santidade das Santidades para outros propósitos que não sejam os de executar o serviço do Templo (Levítico 16:2), a leitura da Torá no dia da reunião do público é considerada uma necessidade ligada ao serviço do Templo, de modo que era permitido entrar na Santidade das Santidades para esse fim.
De qualquer forma, somos obrigados a dizer que existem algumas exceções como essa, pois é dito em Devarim Rabá 9:9: “Rabi Ianai disse: Moisés escreveu treze livros de Torá, doze para as doze tribos e um que colocou na arca, de modo que, se ele quisesse falsificar alguma coisa, pudessem retirar aquele que está na arca.” Portanto, está provado que era permitido acessar a Arca da Aliança para esse fim. Esse também é o sentido do trecho “para que o livro da Torá não entre e saia estando apertado” (TB Babá Batrá 14a), que sugere que, em momentos de necessidade, era permitido retirar o livro da Torá. O versículo 26 também corrobora com essa interpretação, pois é dito lá que o livro da Torá escrito por Moisés será colocado na arca, e que o propósito de sua colocação ali é “para que esteja ali por testemunha perante vós”. Isso sugere que a retirada do livro era permitida.
No entanto, as Tossafót (em TB Babá Batrá 14a, “sheló iehê”) acredita que era proibido entrar na Santidade das Santidades para esses propósitos. De acordo com isso, é possível que o livro da Torá entregue “aos sacerdotes, filhos de Levi” (versículo 9) – que, em nossa opinião, era lido em público – não seja o livro colocado “ao lado da Arca da Aliança do Eterno, vosso Deus” (versículo 26), mas o livro destinado à tribo de Levi, de acordo com a tradição mencionada acima, de que Moisés deu um livro a cada tribo, resolvendo assim a dificuldade trazida anteriormente. Dessa maneira, é possível que o “livro do átrio” mencionado no TB Babá Batrá 14b seja o livro entregue à tribo Levi, isto é, o livro escrito por Moisés e mantido no “átrio” para as leituras realizadas ali. Esse livro “era enrolado até o seu início” – ou seja, era enrolado apenas do final ao começo, e não em ambos os lados, como os nossos rolos da Torá –, e foi a partir dele que os nossos sábios aprenderam a natureza do livro semelhante colocado na arca.
De acordo com a versão do Talmud de Jerusalém, o livro mencionado na Mishná, no tratado Moêd Catan 18b, também é o “livro do átrio”, e o Rashi comenta: “Havia um livro revisado no átrio, a partir do qual eram revisados todos os livros da diáspora.” Há ali outra versão: “o Livro de Ezrá”. De qualquer forma, parece que o livro escrito pelas próprias mãos de Moisés e mantido no átrio servia para esse mesmo propósito: revisar outros livros da Torá. Isso se aplica ao trecho no TJ San’hedrin 2:6: “E revisavam-no com a ajuda do livro do átrio, segundo a ordem do tribunal composto por 71 sábios.”
Era o representante supremo da nação – durante o período dos reis, o rei – quem lia diante do povo que estava reunido e, de acordo com o que é dito no TB Sotá 41a, ele lia do Livro do Deuteronômio “desde o início de ‘Estas são as palavras’ até ‘E ouvirás, Israel’ (1:1 – 6:3); ‘Ouve, Israel’ (6:4-9), ‘E se obedecerdes aos meus mandamentos’ (11:13-21), ‘Certamente separarás o dízimo’, ‘Quando acabares de separar todos os dízimos’ (14:22-29; 26:12-15) – e essas últimas duas eram lidas, aparentemente, por causa do ciclo dos dízimos que agora começava novamente –, ‘a porção do rei’ (17:14-20), e ‘as bênçãos e maldições até terminar toda a porção’” (aparentemente 27:1-26; 28:1-69).
- O mandamento da “congregação” (hac’hel) é um dos mandamentos ativos que possuem um tempo predefinido e que, apesar disso, deve ser cumprido também por mulheres (ver análise sobre a Sucá no Apêndice do Levítico).
para que ouçam. Durante uma reunião geral do povo, eles ouvirão sobre a origem Divina da Torá e a obrigação de cumpri-la. A própria nação testemunha e proclama isso todos os anos por meio de seu representante supremo. Esse reconhecimento, renovado durante a reunião de toda a congregação, fará com que “aprendam”, de modo que o constante aumento do estudo da Torá se tornará para eles um objetivo elevado. “E temam…”: ambos – tanto o mandamento da reunião da congregação quanto o mandamento de “aprender” em casa – os levarão ao temor de Deus, o que acabará por levar à observância de toda a Torá, pois durante o importante evento da reunião da coletividade nacional, eles renovam seu reconhecimento de que um mesmo Deus é o Deus de todos, o Líder de seus destinos e o Guia de suas ações, e esse reconhecimento aumentará seu temor a Deus e o direcionará para um único propósito: “e cuidem de cumprir todas as palavras desta Torá”. Esse cuidado em cumprir todas as palavras desta Torá é o propósito supremo de todas as ações e comportamentos que a Torá ordena.
Para mais comentários a respeito da relação das mulheres com o estudo da Torá, ver o comentário acima 11:19.
- E que seus filhos. As crianças ainda não chegaram ao entendimento necessário que as levará ao estudo e observância da Torá ao ouvir a leitura pública. Ainda assim, ao prestarem atenção à leitura da Torá junto com seus pais, durante a grande reunião, o próprio evento deixará uma marca em suas almas. A visão das massas ouvindo as palavras com temor sagrado também as levará ao temor de Deus. Para elas, audição, aprendizado e temor não são três assuntos distintos, mas “ouçam e aprendam a temer” – por meio da própria audição, elas aprenderão a temer o Eterno, mas a observância e o cumprimento ainda estão além de sua capacidade.
Na opinião do comentarista Maharshá, em seus insights sobre o TB Chaguigá 3a, os “seus filhos que não tiveram conhecimento” são crianças que atingiram a “idade da educação”, isto é, crianças capazes de compreender as palavras da Torá, mas que ainda não são maduras o suficiente para serem ordenadas a cumpri-las. É por isso que a Escritura menciona aqui aprendizado e temor, mas não observância na prática. No entanto, o termo “crianças” mencionado no versículo anterior também inclui crianças menores. Portanto, os nossos sábios se perguntam ali: “Para que vinham as crianças?”, e respondem: “Para conferir recompensa àqueles que as trouxeram.” No caso de crianças tão pequenas, o mérito é principalmente dos pais que as trouxeram até ali, pois os pais se reúnem diante do Eterno com aquilo que têm de mais precioso e se agrupam em torno da Torá, que futuramente farão conquistar o coração de seus filhos, para que a Torá não seja esquecida por Israel. No tratado Sofrim 18:6, além de “Para conferir recompensa àqueles que as trouxeram”, os nossos sábios acrescentaram outra razão: “e para que elas próprias recebam recompensa.” A participação na grande reunião também terá um bom impacto nas crianças mais novas, e a marca que fizer nelas poderá ser sentida mais tarde em suas vidas.
Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção Haazinu extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.


