Brevíssima coletânea de comentários sobre a PORÇÃO MATOT extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer
Números, Capítulo 30
2 E Moisés falou aos cabeças das tribos dos filhos de Israel, dizendo: Foi isto o que o Eterno ordenou: 3 Quando um homem fizer um voto ao Eterno, ou fizer um juramento para se obrigar a alguma abstinência, não profanará a sua palavra; conforme tudo que saiu de sua boca, assim fará.
- E Moisés falou. Temos aqui uma nova proclamação que introduz ao tema dos preceitos que uma pessoa queira receber sobre si voluntariamente, os quais, de acordo com isso, são mencionados aqui como um acréscimo aos mandamentos da Torá impostos por Deus ao homem. Assim, a Torá nos concede a autoridade de impor preceitos sobre nós mesmos, para que possamos cumprir adequadamente os mandamentos da Torá, e permite que indivíduos, comunidades e a nação como um todo estabeleçam para si condutas permanentes que visem a observância fiel dos mandamentos bíblicos.
Por esse motivo, essa porção foi dita especialmente aos príncipes, que não são chamados aqui de “cabeças das tribos (matot)” por acaso. Como já observamos no nosso comentário sobre o capítulo 1, a palavra matê (tribo) percebe a tribo como o “ramo” de um grupo maior, no qual cada ramo se esforça, por meio de suas características únicas, para realizar o propósito comum de toda a nação. Era tarefa dos cabeças das tribos cuidar dos costumes que derivam dar a singularidade de cada “ramo”, bem como das atividades, aspirações e objetivos comuns. Era responsabilidade dos cabeças das tribos direcionar tudo isso para o curso adequado, a fim de promover o desempenho da missão nacional de acordo com as características únicas de cada “ramo”. Os meios para tais atividades, o pré-requisito para o desenvolvimento da nação como um todo e para a vida comunitária, são o poder obrigatório dos votos e regulamentos promulgados pelo homem – “não profanará a sua palavra” (versículo 3) – e esse é o tema discutido pelas leis que vêm a seguir. Além disso, a revogação dos votos foi confiada aos cabeças das tribos. Eles servem como conselheiros familiares e espirituais, vindos do próprio povo, e por esse motivo, também, a porção dos votos foi dita primeiramente aos chefes tribais.
Foi isto o que o Eterno ordenou. Essa linguagem de abertura é encontrada principalmente no contexto dos mandamentos que são praticados imediatamente, naquele exato momento, como o maná (Êxodo 16:16 e 32), a contribuição ao Tabernáculo (ibid. 35:4) e os dias de consagração (Levítico 8:5 e 9:6). Da mesma forma, a lei de que uma mulher que herda uma herança não deve se casar com um homem de outra tribo (adiante 36:6-8) só foi praticada naquela geração, e isso é aprendido a partir da linguagem introdutória “Foi isto” (ver TB Babá Batrá 120a). A exceção é a porção dos sacrifícios abatidos fora dos perímetros do Templo (Levítico 17:2), que também é introduzida pela linguagem “Foi isto”, embora a Escritura diga ali explicitamente (“estatuto perpétuo” – ibid. versículo 7) que esse mandamento deve ser praticado em todas as gerações.
Se nos lembrarmos de que um mandamento que deve ser praticado imediatamente, naquele exato momento, requer a concentração de todos os poderes de compreensão e vontade do homem, poderemos explicar o uso dessa linguagem num lugar em que ela abre um mandamento praticado em todas as gerações, uma vez que essa linguagem de abertura enfatiza o significado e a importância desse mandamento.
A porção dos votos também é praticada em todas as gerações, como aprendemos a partir da similaridade entre a linguagem do nosso versículo e do que fala sobre os sacrifícios abatidos fora dos perímetros do Templo (TB Babá Batrá 120b). Portanto, aqui, o uso da linguagem de abertura “Foi isto” indica a importância especial dessa porção.
Também aprendemos a partir da similaridade entre a linguagem da porção dos votos e a dos sacrifícios abatidos fora dos perímetros do Templo (ibid.) que o apelo aos cabeças das tribos também é direcionado a Aarão e a seus filhos e a todo o povo de Israel, mencionados na porção dos sacrifícios oferecidos fora do perímetro do Templo. Daí aprendemos que a revogação de votos pode ser feita por qualquer grupo de três pessoas, mesmo que não sejam especialistas no assunto. De acordo com o Maimônides (Leis de Juramentos 6:5), um indivíduo especialista, qualificado para revogar votos, não precisa sequer ser “ordenado por um rabino”, como é o caso nas demais leis, bastando que seja um “sábio comprovado”, e o Rabênu Nissim (TB Nedarim 78b) explica que isso é aprendido a partir da linguagem “cabeças das tribos”, visto que não foi usado aqui o termo elohim, como em outras leis onde esse termo é interpretado como “um sábio ordenado”.
Todas essas leis estão alinhadas com a nossa concepção da porção dos votos, de que se trata de mandamentos que uma pessoa recebe sobre si voluntariamente e de costumes que ela passa a praticar. Portanto, ela difere das porções que tratam dos mandamentos ordenados ao homem por Deus e é secundária a elas.
Também aprendemos a partir da similaridade entre a linguagem da porção dos votos e a dos sacrifícios abatidos fora dos perímetros do Templo (TB Babá Batrá 120b) que a revogação de votos se aplica mesmo a artigos sagrados – “Há apelo para artigos sagrados”. O paralelismo entre essas duas porções parece se basear numa profunda proximidade íntima que pode ser observada na declaração dos nossos sábios: “Aquele que promete, é como se tivesse construído um altar, e aquele que cumpre sua promessa, é como se tivesse oferecido sobre ele um sacrifício” (TB Nedarim 22a). O altar e o voto têm um lado em comum. Ambos confirmam uma vontade subjetiva arbitrária, externa e lateral à Torá. Os sacrifícios abatidos fora do Templo e os palcos para oferendas conferem uma aprovação geral a essa subjetividade, e a Torá rejeita essa prática completamente. Assim, a lei dos votos dá a essa subjetividade apenas um espaço limitado e contingente.
Brevíssima coletânea de comentários sobre a PORÇÃO MATOT extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.