Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção KI TISSÁ extraída da obra torá interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer
Êxodo, Capítulo 32
1 E o povo viu que Moisés demorava em descer do monte, e se juntou o povo a Aarão e disse‑lhe: Levanta‑te, faz‑nos deuses que andem diante de nós, porque a este Moisés, o homem que nos fez subir da Terra do Egito, não sabemos o que lhe aconteceu!
- Com o mandamento referente ao serviço do Tabernáculo e a entrega das tábuas do testemunho, foi concluída a outorga da Torá por parte dos Céus. Agora, era necessário plantar dentro do povo a Torá, a alma da nação. Do Tabernáculo, a Torá deve espalhar sua luz para toda a nação, e o espírito de sua missão Divina deve preencher o coração de cada integrante do povo, para que, assim, seja cumprida a promessa: “E Me farão um Santuário e morarei entre eles” (acima 25:8).
No entanto, mesmo enquanto tudo isso acontecia no alto do monte Sinai, ocorriam coisas no acampamento embaixo, que atestavam – para todas as gerações e da maneira mais concreta possível – a grande distância que havia entre a realidade histórica do povo na entrega da Torá e o nível supremo e ideal da Torá que estava prestes a receber.
Esta distância já havia sido trazida à atenção do povo com toda a seriedade por meio de atos ricos em significado simbólico durante os preparativos para o recebimento da Torá, como “Vai ter com o povo, e santifica-o (…) E demarcarás limites para o povo (…) E também os sacerdotes (…) que eles se santifiquem” (acima 19:10-22). E como observamos acima, este trabalho envolve resultados fundamentais que são a base da nossa fé.
Esta nação, que não pôde tolerar a ausência de seu líder Moisés por 40 dias, e que foi capaz de criar um Bezerro de Ouro antes mesmo que o fogo e os relâmpagos da outorga da Torá tivessem esfriado, e enquanto a voz poderosa e clara do comando de “Não farás para ti imagem de escultura” (acima 20:3) ainda soava em seus ouvidos – este povo ainda estava tão longe das verdades e exigências desta Torá, que era totalmente impossível que ela tivesse emergido de dentro dele como um fruto de seu espírito e do espírito da época, como foi o caso de todas as outras religiões e sistemas de leis.
Simultaneamente, esses eventos nos mostram a natureza absoluta da Torá – tanto em virtude de sua origem Divina, quanto de seu propósito eterno e inevitável de se manifestar e conquistar um lugar na terra. Durante o início da chegada da Torá ao mundo, a nação que devia recebê-la encontrou-se inapropriada para isso, o que deixou claro que uma das duas coisas devia perecer: ou a Torá ou toda aquela geração da nação à qual a Torá fora destinada. A decisão foi imediata: desistir de toda essa geração, criar uma nova geração, capaz de receber essa Torá – e esperar!
A declaração de Deus a Moisés “os consumirei, e farei de ti um grande povo” (versículo 10) – de que o povo escolhido e preparado para receber a Torá deve ser destruído, ao passo que a Moisés e à Torá será assegurado um futuro diferente – expressa, desde o primeiro momento, a natureza absoluta da missão estabelecida para esta Torá, originada em Deus e cuja eternidade deriva Dele. Ninguém ousaria pensar que a Torá deve ser adaptada às épocas em constantes mudanças; pelo contrário, cada geração tem direito ao presente e ao futuro apenas na medida em que se adapta à Torá. Ela é o derradeiro e absoluto objetivo da nação de Israel, e a geração da entrega da Torá ainda estava muito distante desse objetivo. Mas se, apesar disso, a Torá desceu àquela geração, com suas exigências supremas e inalteráveis, a implicação clara disto é que a Torá não foi dada ao povo de Israel para que ele a adapte aos tempos que mudam ou à sua própria conveniência, mas para que esta nação mude e se ajuste até se elevar às alturas da moralidade e do espírito desta Torá.
Em suma, no momento que a Torá desceu ao povo de Israel, a quem ela supostamente devia governar com mão erguida, o Bezerro de Ouro colocou diante dele seu primeiro teste: a Torá deve demonstrar seu poder Divino educando esse povo para que a receba com total submissão, e o Templo da Torá deve ser antes e acima de tudo um lugar de expiação e de educação incessante em direção a um futuro melhor e mais puro.
Antes de o Templo da Torá ser estabelecido, era dever do povo e dos sacerdotes perceberem que precisavam de expiação. Temos a audácia de dizer que isso era um dever, pois todo este acontecimento do Bezerro de Ouro é de suma importância para a compreensão da natureza objetiva da Torá, do significado do Templo da Torá e da relação do povo com ambos. Em vista das questões gerais indicadas acima e das questões específicas que discutiremos a seguir, esta ocorrência ocupa um lugar de tão grande importância que podemos supor que toda essa ausência de Moisés durante 40 dias foi concebida precisamente para servir de teste para o povo, e com ele o povo devia aprender – pelos eventos históricos reais vividos antes da chegada da Torá e do estabelecimento de seu Templo – uma verdade cujo conhecimento é um pré-requisito para a influência educativa da Torá e do Templo sobre nós.
E o povo viu que Moisés demorava (boshesh). Boshesh é uma derivação do verbo bosh, cujo significado original é se sentir desapontado (ver comentário sobre Gênesis 2:25). Similarmente, em “E esperaram até bosh” (Juízes 3:25), eles esperaram até verem que sua expectativa foi desapontada e não seria atendida. Verifica-se que boshesh significa desapontar tanto a expectativa de uma pessoa, ao ponto de ela desistir de sua realização. Moisés ficou ausente por tanto tempo que eles desistiram de seu retorno.
e se juntou (vaicahel al) o povo a Aarão. “Juntar-se a” (hicahel al) significa reunir-se numa multidão contra alguém, superar alguém com o poder de uma reunião em massa. Esta linguagem é encontrada na Escritura em dois outros lugares (Números 16:3 e 20:2) e em ambas as ocasiões Moisés e Aarão não mostram qualquer resistência, nem sequer respondem às alegações. Durante a disputa de Côrach, Moisés caiu sobre o seu rosto, e só depois de ter ouvido a palavra de Deus se impôs diante daqueles que se ergueram contra ele. No segundo caso, Moisés e Aarão se salvaram da congregação caminhando até a tenda da reunião. Portanto, “juntar-se a” indica sempre o domínio sobre uma pessoa contra sua vontade, e isso também é indicado pelo versículo que conclui o episódio do bezerro: “porque fizeram o bezerro que Aarão fez” (adiante, versículo 35), no qual fica provado que o povo era a força motriz por trás do ato de Aarão. O povo mandou, e Aarão foi forçado a obedecê-lo.
Encontramos exatamente a mesma forma de expressão no Gênesis (39:22): “e tudo o que faziam ali, por sua ordem se executava” (literalmente, “ele fazia”), como sequência do início do versículo: “E o chefe do cárcere deu, nas mãos de José, todos os presos que estavam na prisão.” O significado de “e tudo o que faziam…” é que tudo era feito segundo o comando de José, pois todos deviam obedecer às suas ordens. O intelecto e o desejo eram seus; todas as outras pessoas eram usadas como ferramentas para a sua vontade. De acordo com isso, o que eles executavam ali eram realmente os feitos dele. Aqui também, o que Aarão executou era, na verdade, um feito do povo.
faz-nos deuses que andem diante de nós, porque a este Moisés, o homem. A partir do objetivo – “que andem diante de nós” – e da razão – “porque a este Moisés, o homem” – fica claramente provado que este não foi um ato de idolatria no sentido usual, bem como não foi uma traição a Deus. A coisa que o povo queria que Aarão fizesse seria usada como um substituto de Moisés – e não um substituto de Deus. Eles supuseram que Moisés havia morrido por causa de algum acidente, e exigiram que Aarão fizesse para eles uma “imagem de Moisés” que nunca seria destruída. No entanto, depositar toda a esperança do futuro na existência de uma “imagem de Moisés”, e a ideia distorcida de que uma pessoa é capaz e está autorizada a fazer uma “figura de Moisés”, e que isto é, de fato, o que ela deve fazer – estas são ideias opostas às verdades fundamentais da crença judaica sobre a essência de Deus e a relação mútua entre Ele e o homem. Estas verdades foram esclarecidas para o povo por meio do aviso de Deus imediatamente após a Revelação no Sinai: “Vós vistes que dos céus falei convosco. Não fareis diante de Mim deuses de prata nem deuses de ouro para vós” (acima 20:18-19).
“Não fareis diante de Mim (…) Um altar da terra farás para Mim”! Estas palavras de advertência, que se complementam, representam a encruzilhada entre a visão Divina judaica e a perspectiva idólatra não judaica a respeito da relação entre o ser humano e Deus. É um pensamento vão achar que o homem é capaz de fazer um deus para si mesmo – ou seja, que ele mesmo tenha a capacidade de colocar diante de si uma imagem, propriedade, poder, instituição ou pessoa que representará seu próprio valor supremo, e que sobre essa coisa que ele escolheu servir será revestido um poder Divino vindo do poder supremo que governa o mundo, que doravante será o senhor de seu destino.
A que isso se assemelha? A uma barra de metal que não possui força magnética. É um pensamento vão achar que, segundo as leis da Física, é necessário apenas colocá-la sempre no sentido magnético correto para que ela receba o poder do magnetismo e se torne um ímã.
Equivoca-se quem pensa que o homem precisa criar um Deus para si – ou seja, que, a fim de garantir o seu futuro, ele deva colocar diante de si coisas que tenha escolhido e feito, e que elas representarão a manifestação de seu próprio princípio supremo em relação à força suprema que governa o mundo da qual ele tem uma percepção fraca e turva. O idólatra pensa que, por meio dessas coisas, ele mostra sua submissão a esse poder supremo, torna-se digno de sua graça e cumpre sua obrigação reconhecendo sua dependência dele. É uma grande besteira e um pensamento tolo e vão pensar numa pessoa que seja fundamentalmente dependente de um deus ou de uma força que ela julga ser seu deus, em conceitos de destino ou passivos de relações humanas. Isso é uma visão equivocada que sempre dominou as aspirações supremas do mundo não judaico e que o conduziu à idolatria de coisas de madeira e pedra, tanto em sua forma bruta como em sua forma espiritual.
Em contraste com essas visões equivocadas está a verdade do judaísmo, que deve pôr fim a todas as ilusões da idolatria subjetiva em todas as suas formas.
O ser humano não é capaz de fazer um deus para si mesmo; ele não precisa fazê-lo e está proibido de fazê-lo. O ser humano não consegue atrair Deus para mais perto de si por meio da representação da essência Divina na forma de um corpo. O que o homem deve fazer é aproximar a si mesmo de Deus em todos os aspectos de sua vida, preenchendo todo o seu ser com conteúdo espiritual e moral e submetendo todas as suas atividades aos mandamentos de Deus.
A fim de conquistar a proximidade de Deus e assegurar Sua proteção e orientação, a pessoa não deve direcionar suas influências a Deus, mas a si mesma. Ela deve colocar sua atenção, não em como mudará seu destino, mas em como mudará suas ações, pois a única maneira pela qual ela poderá exercer influência sobre seu destino é adaptando seu modo de vida à vontade de Deus.
Porém, antes de tudo, a pessoa deve reconhecer que Deus não possui qualquer traço material sobre o qual ela possa exercer sua influência de modo a coagi-Lo – por meio de um ato subjetivo de qualquer tipo – para tirar vantagem desse traço e usá-lo para a sua própria vontade subjetiva. Deus – abençoado seja! – é uma Entidade em si, com absoluta liberdade, livre-arbítrio e poder ilimitado; um Ser que governa o mundo com liberdade e que revelou ao homem a Sua vontade como o padrão absoluto de todas as coisas e a medida absoluta do livre-arbítrio dos seres humanos.
À vontade de Deus, o homem deve entregar todo o seu ser – com alegria, com liberdade, com todo o poder de sua personalidade. Só então a abundância das bênçãos da Providência Divina virá sobre ele e trará prosperidade aos seus atos. Ouvir a voz de Deus por livre-arbítrio é tudo que é necessário para trazer bênçãos ao homem – o indivíduo e o público – em todos os lugares e em todos os momentos, e não há nada que possa substituí-lo.
Qualquer tipo de arbitrariedade subjetiva é como uma idolatria e um culto a outras forças, porque se baseia na falsa concepção de que o homem é capaz de exercer, segundo a arbitrariedade de seu coração, uma influência dominante sobre o formato do seu futuro, uma concepção comparada à crença de que a pessoa é capaz de influenciar a vontade Divina. Verifica-se que o homem coloca seu “eu” como algo que é equiparado – e até contrário – à vontade de Deus. Esta é a essência do que o profeta Samuel disse ao rei Saul em tempos antigos (1 Samuel 15:22-23): “Eis que obedecer (é melhor) do que sacrificar, e atender (é melhor) do que a gordura de carneiros! Porque a rebelião é como o pecado da feitiçaria, e a teimosia, como iniquidade e idolatria!”
Aquelas pessoas que disseram a Aarão “Levanta-te, faz-nos deuses que andem diante de nós, porque a este Moisés, o homem que nos fez subir da Terra do Egito, não sabemos o que lhe aconteceu” foram possuídas pela ilusão equivocada da idolatria subjetiva. Elas viam Moisés não como uma ferramenta da vontade de Deus, escolhida por Deus e enviada por Ele, mas como uma pessoa que transcendera a natureza humana comum por mérito próprio e se tornara um tipo de divindade. Elas acreditavam que Moisés tinha tal poder de influência, que era capaz de coagir a vontade Divina e que sua própria existência assegurava a proteção de Deus. Aos olhos delas, não fora o Eterno que os tirara do Egito por intermédio de Moisés, mas sim, que Moisés provocara que Deus realizasse esse ato de redenção. Na opinião delas, a conexão eterna com Deus não fora criada pela Torá Divina dada a elas por intermédio de Moisés. A garantia eterna da proteção de Deus e da proximidade a Ele que cada pessoa pode alcançar, sem intermediários, também não fazia parte, na opinião delas, das regras Divinas que permaneceriam com elas, mesmo quando seu transmissor temporário já as tivesse deixado. Elas consideravam a personalidade de Moisés, o homem que estava próximo de Deus, como um elo indispensável no relacionamento entre elas e Deus, e somente enquanto ele estivesse vivo elas poderiam ter certeza da proteção Dele.
Elas acreditavam que o relacionamento de Moisés com Deus não viera do lado de Deus, mas fora iniciado por Moisés, e, portanto, elas acreditavam que, se Moisés não estivesse mais vivo, elas poderiam, e até mesmo deveriam, fazer algo por conta própria para forçar a mão de Deus. Elas ainda não haviam entendido completamente a visão judaica de que uma pessoa tem acesso direto a Deus sem a necessidade de um mediador, desde que ela se conduzisse de acordo com a vontade de Deus. Também é possível que o medo de que, a partir daquele momento, elas teriam que vagar pelo deserto sem um líder para guiá-las as levou a questionar essa verdade.
“Que andem diante de nós.” Essas palavras dificilmente podem ser interpretadas literalmente. Afinal, elas jamais tinham experienciado qualquer coisa que as fizesse acreditar que uma escultura pudesse lhes servir como guia. Há apenas uma maneira de entender essa exigência: ao colocarem à frente delas uma estátua desse tipo, elas buscavam se assegurar da liderança de Deus no futuro também.
Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção KI TISSÁ extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.


