Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção MISHPATIM extraída da obra torá interpretada À luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch recém-publicada pela Editora Sêfer
Êxodo, Capítulo 21
1 “E estas são as leis que porás diante deles: 2 Quando comprares um escravo hebreu (…)
7 E quando um homem vender sua filha como serva…
- E estas são as leis. Nos versículos anteriores (acima 20:21-22), o texto falou sobre a construção do altar, que serve como expressão simbólica de um princípio básico: Todas as nossas relações com Deus devem ser compreendidas como algo que fornece uma base sólida e inabalável para a construção de uma sociedade com espírito de justiça e humanidade (“porque a tua espada levantarias sobre ele e assim o profanarias”) e para o fortalecimento de cada indivíduo no espírito da pureza da moralidade (“para que não seja descoberta tua nudez sobre ele”).
A conjunção conectiva “e” de “E estas” liga as “leis” a esse princípio, pois são essas leis que propiciarão a construção de uma sociedade judaica com base na justiça e na humanidade. Dessa forma, a espada – isto é, a violência e a crueldade – será afastada da sociedade do Estado judaico, e somente então é que essa sociedade será digna de construir um altar para Deus no seu meio. Portanto, as “leis” precedem a construção do Tabernáculo.
Mais tarde, no Levítico, serão trazidas as leis dedicadas à remoção de todo tipo de promiscuidade em seu sentido mais amplo e ao controle e restrição da bestialidade humana que impede a “ascensão às alturas do altar” – em outras palavras, as leis dedicadas ao aprimoramento do indivíduo pelo princípio de pureza e moralidade.
que porás diante deles. A Escritura utiliza a expressão “que porás diante deles”, e não “que falarás a eles” ou “que ordenarás a eles”. “Pôr diante de” – que aqui se refere à transmissão das leis de Deus a Israel por Moisés – é usado em outros contextos apenas com um único sentido: servir a comida preparada diante do convidado, como em “E foi posto diante dele comida” (Gênesis 24:33), “E o cozinheiro ergueu a espádua, com o que havia nela, e a pôs diante de Saul” (1 Samuel 9:24), bem como em “e porei diante de ti uma fatia de pão e comerás” (ibid. 28:22). Assim, quando a expressão se refere à transmissão das leis, ela denota uma transmissão tão clara e abrangente, que as leis são apresentadas diante de nós com plena clareza, sendo possível compreendê-las totalmente e cumpri-las com facilidade. De acordo com isso, o comentário do Rashi – “como uma mesa posta diante do homem, pronta para ser comida” – que se origina na Mechiltá, expressa o significado literal da expressão.
O título que está acima dessas leis, portanto, determina claramente que as coisas escritas a seguir contêm apenas declarações curtas e abrangentes, mas o modo exato de cumprir na prática e a sua explicação plena são deixados para a Tradição Oral e sua transmissão. Em outras palavras, esses versículos da Torá Escrita não apresentam a Torá em sua totalidade; isso nós entenderemos apenas por meio da Tradição Oral.
- Quando comprares um escravo hebreu. Para um intelecto que não foi subornado, não há maior evidência da veracidade da Tradição Oral do que essas duas primeiras partes – versículos 2-6 e 7-11 – que abrem a “Torá de Moisés”.
Aqui, a Torá vem estabelecer a ordem da lei civil e penal da nação, e colocar diante dela os princípios e as diretrizes de justiça e humanidade que regularão as relações entre o homem e seu próximo dentro do Estado. Como seria de se esperar, a primeira parte dessa ordem trata dos direitos pessoais. Mas de que maneira começa essa parte? Com as leis relativas a uma pessoa que vende outra pessoa, e um homem que vende sua própria filha como escrava!
Essa abertura, de fato, seria inconcebível, e não seria possível acreditar nela se a Torá Escrita fosse verdadeiramente o “livro de leis” do povo judeu e a principal e única fonte da “lei judaica”. Provavelmente, algumas regras e princípios legislativos já haviam sido ditos e decididos, avaliados e esclarecidos antes que a Torá pudesse sequer abordá-los, que certamente são casos excepcionais! Mas é precisamente com esses versículos, que limitam o mais sagrado dos direitos humanos e negam o direito à liberdade pessoal, que a Torá abre!
Porém, a principal fonte da “lei judaica” não são as palavras escritas, o “livro”, mas as palavras vivas da Torá da Tradição Oral; o “livro” serve apenas como um auxílio para a memória e uma fonte para aprofundamento e referência quando surgem dúvidas. O próprio “livro” estabelece como algo claro e conhecido o fato de que a Torá inteira já fora transmitida ao povo e que sua marca já fora gravada nele, e que ele já vivera segundo os seus ensinamentos durante 40 anos, mesmo antes de Moisés ter dado a ele a Torá, pouco antes de sua morte. De acordo com isso, foram principalmente esses casos de exceção à regra que foram registrados no texto, pois é precisamente deles que os princípios da vida cotidiana podem ser aprendidos mais claramente.
De modo geral, não foram registrados no “livro” os princípios da lei e as “regras gerais”, mas sim, casos particulares e concretos, e eles foram registrados de maneira tão “inteligente” que é facilmente possível deduzir a partir deles os princípios confiados à consciência viva da Tradição Oral. A linguagem desse “livro” foi escolhida com habilidade tão grande que, em muitos lugares, uma expressão incomum, uma alteração na construção sintática, a posição de uma palavra na frase ou uma letra supérflua ou ausente, entre outras coisas, podem sugerir uma série de conceitos haláchicos – ou seja, relacionados à lei judaica, a halachá.
Esse “livro” não foi concebido para ser a principal fonte da Torá. Destina-se àqueles que já são bem versados na Torá, a fim de servir como um meio de preservar e refrescar em sua memória as informações já contidas nela. Ele é destinado a servir como uma ajuda de estudo aos mestres da Torá e como uma referência para a Lei Oral, para tornar mais fácil aos alunos, por meio da ajuda do texto escrito diante deles, voltar a pensar novamente nos conhecimentos que receberam oralmente.
A relação entre a Torá Escrita e a Torá Oral é como a relação entre resumos escritos de uma palestra científica e a própria palestra. Os alunos que participaram da palestra oral precisam apenas de suas notas curtas para se lembrar de toda a palestra em todos os momentos. Eles geralmente descobrem que lhes basta apenas uma palavra, um ponto de interrogação, um ponto de exclamação, um ponto ou uma palavra enfatizada para relembrar toda uma série de ideias, comentários, argumentos e assim por diante. Mas para aqueles que não ouviram a palestra do professor, essas notas não agregam muito benefício. Se tentarem reconstruir a palestra a partir dessas anotações, eles inevitavelmente cometerão muitos erros. Palavras, sinais etc. utilizados pelos alunos que ouviram a palestra como marcações inteligentes para memorizar os assuntos explicados pelo professor pareceriam totalmente sem sentido para aqueles que não atingiram a “base” do assunto. Se uma pessoa de fora tentasse usar as mesmas anotações para recriar para si mesma a palestra a qual ela não assistiu – diferentemente de uma reconstituição, onde se reconstrói algo que a pessoa já ouviu – certamente eliminaria da palestra tudo aquilo que não está claro, que lhe parece falta de esforço mental e sofismas inúteis que não levam a lugar nenhum.
A Torá de Deus quer implantar entre nós os princípios de justiça e humanidade segundo os quais nos ordena respeitar os direitos humanos. Ela abre com o criminoso, especialmente aquele que tomou uma propriedade de seu amigo, um crime que, em todos os outros países, é punido com uma severa punição corporal e prisão. Vejamos o que deve ser feito com um criminoso desses de acordo com a Torá de Deus no Estado de Deus.
Brevíssima coletânea de comentários sobre a Porção MISHPATIM extraída da obra Torá Interpretada à luz dos comentários do Rabino Samson Raphael Hirsch, recém-publicada pela Editora Sêfer.