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Calendário Judaico Pêssach

Portas para a Liberdade

Portas para a Liberdade

O Rabino Pinchás H. Peli (1930-1989) ocupou lugar de destaque na vida intelectual e religiosa de Israel. Foi amigo e discípulo do Rabino Joseph B. Soloveitchik e de Abraham Joshua Heschel, bem como chefe do Departamento de Literatura Hebraica da Universidade Ben Gurion, em Beer Shéva. Escritor e palestrante renomado nos meios judaicos e não judaicos, um de seus 11 livros – “Torá Hoje” – no qual apresenta seus modernos e inspirados comentários sobre as porções semanais da Torá, foi publicado pela Editora Sêfer.

Além de seus nomes bíblicos, há também outro nome para Pêssach, pelo qual nos referimos à festa na tradicional liturgia do dia, isto é, zeman cherutênu, a época de nossa liberdade. A liturgia visa enfocar, no presente, as experiências e lembranças do passado. Leva-nos à importância real da celebração – seu Significado para nós, hoje.

Pêssach não deve ser abordada como uma comemoração de um passado longínquo, mas como um marco histórico significativo atual em nossas vidas hoje. O significado é a mensagem. Vem para infundir em nós o valor da liberdade como elemento básico da fé e da experiência judaicas.

A liberdade é também a principal mensagem da Hagadá de Pêssach, a “narrativa” que é o tema central na celebração de Pêssach. A Hagadá transmite a todos, a nós e aos nossos filhos, a ideia de que a liberdade não deve ser considerada como uma garantia inerente, que surge do nada. Nascemos livres, mas com a tendência de perder nossos direitos de liberdade e nos deixar escravizar. Devemos falar sobre a liberdade, discuti-la em detalhe e “quanto mais se fala sobre ela, tanto melhor” (Col hamarbê, harê ze meshubách).

Devemos discutir a liberdade longamente, a fim de assegurar que ela não ficará apenas como uma idéia sublime no plano teórico. Durante a “época de nossa liberdade” e especialmente durante a noite de Pêssach, devemos incorporar o conceito de liberdade e transformá-la em um fator constante em nossas vidas.

Lemos na Hagadá: “Em cada geração, é dever de cada pessoa sentir-se como se ela própria tivesse saído do Egito.”

Se essa pessoa tivesse saído do Egito, ela teria então experimentado a dor e o sofrimento da escravidão. Os autores da Hagadá sabiam bem que a liberdade só será inteiramente apreciada, se opressão da escravidão for relembrada e revivida. Por isso é que as passagens de dor, sofrimento, vergonha e humilhação não são suprimidas, mas relatadas, mesmo durante a celebração festiva da noite do Sêder.

A liberdade deve ser analisada e compreendida. Pode ser doce, mas também perigosa. Relembrar o sofrimento da escravidão nos fará perceber os riscos do abuso da liberdade, se causarmos dor aos que estão sob nossas ordens.

Há muito para aprender, a partir do conceito judaico de liberdade. O resultado da libertação do Egito não foi conseguir uma vida de liberalidade e anarquia. O caminho da libertação levou ao Sinai, onde os israelitas aceitaram a Torá, considerada pelos rabinos (Ética dos Pais 6:3) como a “verdadeira liberdade”, um conjunto de obrigações e princípios autoimpostos, que exigem responsabilidade e compromisso.

É também sob este prisma que Viktor Frankl, fundador da Logoterapia, uma corrente de psicologia, vê a liberdade. Ele escreve que “a liberdade ameaça degenerar-se em mera arbitrariedade se não for vivida em termos de responsabilidade”. A Estátua da Liberdade, na Costa Leste dos EUA, sugere Frankl, deveria ser complementada por uma Estátua da Responsabilidade, na Costa Oeste.

A liberdade, sobre a qual falamos em Pêssach, é posta em prática, o ano todo. Entra no domínio da lei judaica, Halachá, de vários modos. O Rabi Iochanan ben Zacai (sábio do século 1) pergunta: Por que, de todas as partes do corpo, a orelha (do escravo hebreu que rejeita a liberdade) é que deve ser furada? (ver Êxodo 21:6). Resposta: porque foi com sua orelha que esse escravo ouviu Deus dizer, no Monte Sinai:

Porque eles são Meus servos (escravos), aos quais tirei da terra do Egito; não se venderão como são vendidos os servos. (Levítico 25:42)

O objetivo da libertação do Egito foi o de destinar os libertos ao serviço de Deus. Esta sublime servidão ao Senhor de todos nós é a única garantia contra o ser escravizado pelos senhores de carne e sangue.

O mesmo versículo, exigindo servidão absoluta a Deus e não ao homem, é a base legal para o direito de um trabalhador fazer greve (Talmud Babilônico, Tratado Baba Metsia 10a), porque nenhum ser humano pode ser dono da vida ou do trabalho de outro. Há muitas outras leis semelhantes que trazem a liberdade da teoria para a prática.

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Dizem que o hebraico é a “língua materna” da liberdade. Assim, não foi por acaso que os fundadores da mais famosa nação pela busca de liberdade se voltassem para a Bíblia Hebraica, ao procurar uma máxima que melhor expressasse o seu ideal. Inscrito no Sino da Liberdade, na torre do Independence Hall da Filadélfia (fundido no ano de 1753), está o versículo do Levítico (25:10): “Proclamareis liberdade (para os escravos) em toda a terra.”

As palavras gravadas em outro famoso monumento americano à liberdade, a Estátua da Liberdade, são de autoria da poetisa judia Emma Lazarus (1849-1887). Milhões, que chegaram à procura da liberdade nos Estados Unidos, contemplaram maravilhados, rendendo graças, “uma poderosa mulher com uma tocha, seu nome mãe dos exilados… Sua mão que ilumina irradia boas-vindas ao mundo”:

Dai-me os extenuados, os pobres,

Os que anseiam pela liberdade

Mandai-nos os desabrigados, os atirados pelas tormentas

Ergo minha luz junto à porta dourada.

New Colossus, de Emma Lazarus, escrita em 1889 e afixada ao pedestal da Estátua da Liberdade em 1903, pertence agora aos grandes pronunciamentos da história americana. Contudo, poucos sabem que a conhecida poetisa tem raízes judaicas e que suas traduções dos grandes poetas espanhóis (Iehudá Halevi, Ibn Gabirol) ainda hoje são divulgadas.

Após a morte de Emma Lazarus, sua irmã proibiu a inclusão de “qualquer coisa judaica” na edição publicada em 1889, que reuniu suas obras. Mal sabia ela, o que nos parece óbvio: que a idéia de liberdade da poetisa foi sem dúvida inspirada nos versos iniciais da tradicional narrativa judaica da liberdade, a Hagadá de Pêssach:

Col dichfin… “Venham juntar-se a nós todos o que têm fome e conosco comer, todos os necessitados venham compartilhar conosco o Pêssach… Agora estamos aqui – no próximo ano estaremos em nossa terra… Agora escravos – no ano que vem, seremos livres.”

Em muitas comunidades judaicas existe o costume de não se fechar a porta da casa, na noite do Sêder. Ela é mantida aberta para acolher – “os extenuados e os pobres, os que anseiam pela liberdade, os desabrigados e os atirados pelas tormentas”. Não seria a porta de um lar judaico, celebrando a liberdade nessa noite, a mesma “porta dourada” da inspirada visão da poetisa?


Torá Hoje - Um encontro renovado com a Escritura Sagrada, de Pinchas H. Peli - Editora SêferSaiba mais:

Torá Hoje
Um encontro renovado com a Escritura Sagrada
Autor: Pinchas H. Peli
Páginas: 252

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