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Contos e parábolas

Pequenos Milagres Judaicos VI

de Yitta Halberstam e Judith Leventhal

 

O pesadelo acabara e a reconstrução já fora iniciada.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, Simon Wiesenthal era um jovem já envelhecido. Ele havia sobrevivido aos
campos de concentração e estava se recuperando, aos poucos, em um campo de refugiados na Alemanha. Apesar
de sua juventude ter ficado para trás, seu futuro ainda estava por ser moldado.
Nos campos de concentração, ele secretamente desenhou imagens das atrocidades cometidas; ele
comprometeu-se com as faces brutais e os nomes dos assassinos, cujos crimes hediondos e atos abomináveis
estavam estampados na mente de Simon. E, assim que a guerra acabou, ele se aproximou de seus libertadores e
ofereceu-se para, ele mesmo, caçar os criminosos nazistas. Todas as peças do quebra-cabeça foram sendo
encaixadas ao longo de sua vida, mas a peça final ainda iria ser encontrada.
No inverno de 1946, o rabino americano que servia como capelão do campo de refugiados no qual Wiesenthal
estava internado perguntou se ele gostaria de acompanhá-lo em uma angustiante expedição. O exército soubera que
um castelo, localizado na Bavária, fora designado pelos nazistas como “Museu da Extinta Raça Judaica” e que o
local estava cheio de artigos judaicos e livros de rezas roubados de lares de judeus de toda a Europa. O exército
perguntara ao capelão, um especialista em assuntos judaicos, se ele poderia inspecionar o local e relatar suas
descobertas. Mas o rabino temia que a missão fosse traumática demais para ir sozinho, explicou a Wiesenthal. Mais
ainda: era uma tarefa excessivamente amedrontadora. Será que Wiesenthal poderia acompanhá-lo?
Os dois homens estavam introspectivos ao adentrarem no castelo e analisarem o cenário diante deles. Ficaram
sem fôlego diante das relíquias de uma vida que não existia mais. Uma variedade de objetos judaicos os cercava:
objetos de culto, filactérios, pinturas, pratas, Torás, xales de reza, livros sagrados etc. Silenciosos, eles
contemplavam os fantasmas ausentes dos donos daqueles objetos que os circundavam: o orgulhoso jovem que fazia
bar-mitsvá (cerimônia de maioridade religiosa realizada aos treze anos de idade) e que jamais recitaria a prece do
kidush (bênção sobre o vinho) com o copo de prata que lhe fora presenteado; a noiva enrubescida que jamais veria
as chamas do fogo dançando em seu candelabro de shabat (sábado) no qual sua face refletia; o velho avô, cujo beijo
o veludo da Torá jamais sentiria novamente. Todos eles foram exterminados, reduzidos a cinzas. Perversamente,
suas possessões, meros objetos, continuaram… em um testemunho mudo, em uma reprovação silenciosa.
Os dois percorreram juntos o recinto, Wiesenthal e o capelão, acariciando os objetos com as pontas dos dedos,
tocando-os com reverência, murmurando exclamações silenciosas, até que se separaram, explorando o local
individualmente. Simon encontrava-se longe do capelão quando ouviu o grito deste.
Quando Simon alcançou-o, a cabeça do rabino estava abaixada, as lágrimas escorrendo por sua face.
Silenciosamente, o rabino entregou o objeto que estava em suas mãos. Era um simples livro de rezas judaico, de um
tipo comum na Europa daquela época. Simon se perguntava por que tal objeto despertara uma reação tão
emocionada por parte do capelão.

Sem proferir uma palavra, o capelão apontou para uma inscrição dentro do livro.
Parecia ser a letra de uma mulher.
Ela havia escrito: “Eu imploro para quem quer que encontre este livro de rezas, que vingue a morte dos judeus da
Europa.”
Ela assinara seu nome completo embaixo da inscrição, mas aquele nome não significava nada para Simon. Na
verdade, significava muito para o capelão.
— Minha irmã – disse ele.
Ele conseguira escapar da Europa a tempo, mas sua irmã havia caído nas garras de Hitler. Já nos Estados
Unidos, ele tentara desesperadamente saber notícias dela, mas não obtivera nenhuma. Até aquele momento.
Aparentemente, ela havia escrito aquele bilhete em desespero, alguns momentos antes de sua morte. Eles estão
vindo, ela rabiscou apressadamente. Os assassinos estão entre nós… posso ouvi-los na casa ao lado. Vingue nossas
mortes!
Os fantasmas chacoalharam seus sabres e o recinto se encheu com seus silenciosos gemidos. Para o capelão, a
descoberta era uma mensagem da sepultura. Para Simon Wiesenthal, representava a missão que guiaria a sua vida.
“Os Assassinos entre Nós” tornou-se o título de seu primeiro livro sobre os criminosos de guerra nazistas – um
memorial à mulher cujas palavras assombraram suas noites e tomaram seus dias, e cujo clamor por justiça tornou-se
seu objetivo de vida.

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